Se o Orçamento de Estado já é MAU, e se a esse MAU acrescentarmos o facto de estar escrito em MIXORDÊS, o que diz da gigantesca tragédia linguística que assola o nosso desventurado país, que faz-de-conta-que-tem-uma-língua, então o OE2020 é péssimo.
Uma vez mais as palavras VERGONHA e VERGONHOSO podem ser aplicadas com toda a propriedade, porque em mais nenhum país do mundo, tal insulto a uma Língua Materna, acontece.
A quem querem os governantes portugueses fazer de parvos?
Deixo-vos com o texto de Francisco Miguel Valada, que começa por citar o escritor, filósofo, semiólogo, linguista e bibliófilo italiano Umberto Eco, que diz o seguinte:
«Ora, questa frenesia dell’apparire (e la notorietà a ogni costo, anche a prezzo di quello che un tempo era il marchio della vergogna) nasce dalla perdita della vergogna o si perde il senso della vergogna perché il valore dominante è l’apparire, anche a costo di vergognarsi?»
«Ora, esse frenesi de aparecer (e notoriedade a todo custo, mesmo ao custo do que antes era a marca da vergonha) nasce da perda da vergonha ou perde-se o sentido da vergonha, porque o valor dominante é a aparência, mesmo à custa de se envergonhar?» (Umberto Eco)
Isabel A. Ferreira
Foto: Tiago Petinga/Lusa [http://bit.ly/36HQkRp]
Um texto de Francisco Miguel Valada
«Contra o Orçamento do Estado para 2020»
«É impossível alguém rever-se no OE2020, a não ser que ande a espalhar o caos ortográfico. Efectivamente, a mixórdia de 1990 tem um dos seus pontos altos anuais no momento em que o ministro das Finanças entrega ao presidente da Assembleia da República um texto que o primeiro obviamente não escreveu e o segundo certamente não lerá. Baseio esta minha hipótese num facto: estes são exactamente os mesmos protagonistas dos momentos simbólicos do OE2016, do OE2017, do OE2018 e do OE2019.
Se Mário Centeno e Eduardo Ferro Rodrigues tivessem escrito ou lido as propostas de 2016, 2017, 2018 e 2019, provavelmente não teríamos o caos de 2020 que aqui vos deixo, sob a forma de pequena amostra:
caráter geral (p. 231) e carácter geral (p. 123);
setor público (p. 194) e sector público (p. 188);
atualizações dos escalões (p. 249) e actualizações salariais (p. 62);
despesa efetiva (p. 73) e despesa efectiva (p. 70);
Programas Orçamentais e Políticas Públicas Setoriais (p. 61) e Programas Orçamentais e Políticas Públicas Sectoriais (p. 61): sim, na mesma página;
setores e funções (p. 84) e entre sectores (p. 136);
acordos coletivos (p. 17) e serv. colectivos (p. 91);
exigência da fatura (p. 197) e remanufactura (p. 198)- sim, rimavam: mas isso era antigamente;
eletricidade (p. 194) e electricidade (p. 207);
largo espetro (p. 157) e espectro internacional (p. 211);
gestão de ativos (p. 292) e gestão de activos (p. 294);
proteção social (p. 170) e protecção social (p. 114);
ação social (p. 100) e acção social (p. 91);
Direção (p. 224) e Direcção (p. 220). (*)
Como este exercício de entrega e recepção é meramente simbólico, pois as personagens deste ritual (já interpretadas por duplas como Vítor Gaspar e Assunção Esteves, Maria Luís Albuquerque e Assunção Esteves ou Centeno e Ferro Rodrigues) não dão o devido valor ao texto (o valor intrínseco de qualquer texto só pode ser extraído se ele for de facto lido), não vale a pena insistir no exercício de leitura e de escrita.
Portanto, convém que o poder político dê o único passo lógico para termos uma ortografia clara, sem ambiguidades, uma ortografia com carácter, com sector, com sectores, com facturas, com protecção, com acção e com direcção.
Como o Acordo Ortográfico de 1990 falhou (cf. 2012, 2013, 2014, 2015, 2016, 2017, 2018, 2019 e 2020), regressemos à ortografia de 1945, sff.
Obrigado e até para o ano.»
Fonte:
https://aventar.eu/2019/12/17/oe2020/#comments
(*) Questão: quem é capaz de afirmar conviCtamente que as palavras grafadas a vermelho pertencem à Língua Portuguesa? E se não pertencem, como todos sabemos que não, o que estão a fazer num documento oficial do governo português? (Isabel A. Ferreira)