Um magnífico texto que destrói mitos tauromáquicos e as mentiras que, ao longo de séculos, os aficionados de tauromaquia acreditaram, por simples ignorância, serem verdades.
Um magnífico texto escrito por um Biólogo experiente e sapiente na questão animal. E se depois de lerem este texto, os aficionados optarem por continuar a teimar na sua ignorância, melhor é atiraram-se ao mar, pois não servem para serem seres humanos.
Um texto precioso para desfazer em cacos a tauromaquia.
(O negrito do texto de Luís Vicente é da minha lavra. I.A.F.)
por Luís Vicente
Patrícia Caeiro·Segunda-feira, 16 de Outubro de 2017
Aqui vai um longo longo longo comentário que por ser longo longo longo tem que ir dividido por pontos, porque o fb não aceita comentários longos longos longos...
1 - Começo a ficar cansado da argumentação balofa, hipócrita, ignorante e desonesta em defesa das touradas. Andava aqui a cuscar o mural da Patrícia e a minha irritação cresceu ao ler este post a respeito dos actos corajosos do Sr. João Almeida, insigne deputado da Nação pelo CDS-PP. Aproveito então (desculpa, Patrícia, o espaço que te ocupo) para responder aos pseudo-argumentos dos aficionados. Advirto que possivelmente utilizarei alguma linguagem um pouco mais hermética, mas trata-se de um assunto sério que quero tratar com rigor e seriedade. De qualquer forma, se houver palavras “mais difíceis”, o seu significado será facilmente encontrado com recurso à internet. Antes, contudo, como sou eu a contra-argumentar, quero deixar claras as minhas limitações. Todos nós somos construções sociais e temos, por isso, limitações culturais (no sentido antropológico) condicionadas pelo ambiente social em que crescemos. Eu sou biólogo e tenho 42 anos de ensino e investigação em comportamento animal, neurobiologia e história e filosofia da ciência na Universidade de Lisboa e em várias outras universidades em países estrangeiros. Isto serve apenas para lhe explicar que o meu pensamento é limitado e constrangido pela minha experiência de vida e, por isso, vale o que vale. Uma das coisas que todo o meu trabalho de investigação me ensinou foi que os seres humanos são animais, nem mais nem menos que todos os outros que povoam e viajam nesta nave especial que é a Terra. São apenas diferentes, porque é a diferença que caracteriza cada uma das espécies. Mas não existe qualquer argumento científico que permita estabelecer uma hierarquia de importância ou de valores que, quantitativamente, diferencie umas espécies de outras. Nem tal faria sentido. O próprio Darwin afirma em “The Descent of Man” que as diferenças entre os humanos e os outros animais são qualitativas e não quantitativas. Esta afirmação de Darwin é conhecida na comunidade científica por “Lei da Continuidade de Darwin”.
2 - Não há muitos anos não era considerado crime matar um negro porque simplesmente era considerado um ser inferior. É elucidativo constatar que a última exposição de um negro enjaulado num jardim zoológico foi em Bruxelas em 1958. Hoje, a isto, chama-se racismo e é altamente condenado. Só em 20 de Novembro de 1963 a Assembleia Geral das Nações Unidas na sua resolução 1904-XVIII proclama a Declaração sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, na qual se afirma, entre outras coisas “que qualquer doutrina de diferenciação ou superioridade racial é cientificamente falsa, moralmente condenável, socialmente injusta e perigosa, e que não existe qualquer justificação para a discriminação racial, quer na teoria, quer na prática”. Negros, brancos, asiáticos, índios, etc., etc., etc., pertencem todos a uma única espécie: Homo sapiens.
Mas porquê por o limite na espécie? Poderíamos pôr a fasquia nos grandes símios. Assim ficaríamos nós, bonobos, chimpanzés, orangotangos e gorilas no saco dos “superiores”. Seria feio tratar mal os grandes símios e quem o fizesse seria legitimamente acusado de “simiísmo”, o que seria considerado moralmente muito feio.
E por que ficar pelos grandes símios? Poderiam ser todos os Primatas, ou mesmo todos os Mamíferos ou até todos os Vertebrados… e a história não teria fim até que chegaríamos ao especismo, vocábulo introduzido por Richard Ryder em 1975, num livro intitulado “Victims of Science”.
Porquê pensarmos que a nossa espécie é o centro do universo? Simplesmente porque é um constrangimento cultural sem base científica de raiz muito antiga e de reforço judaico-islâmico-cristão. No princípio Deus criou o Homem à sua imagem e semelhança, logo abaixo dos anjos, para dominar a Terra. Podemos substituir “Homem” por “Grandes Símios”, por “Primatas”, por “Mamíferos”, por “Vertebrados”, por “Cordados” (para incluir as lampreias), ou por “animais” (para incluir os polvos). O sentido seria o mesmo!
3 - E vamos aos touros e o que escreverei sobre os touros é válido para, pelo menos, todos os Vertebrados. Começo por alguns dos argumentos deles, aficionados, num texto lapidar intitulado “Tauromaquia: a indústria responsável pela vida feliz dum dos animais mais protegidos em Portugal” da autoria de um conjunto de aficionados do Departamento de Fisiologia da Faculdade de Ciência Veterinária da Universidade Complutense de Madrid e referido na página da net "O TOURO - Tudo o que precisa saber sobre o Touro Bravo"
(http://www.touradas.pt/tauromaquia/otouro)
Cá vai: “De acordo com os estudos científicos mais recentes sobre o touro bravo, sabemos que este tem reacções hormonais únicas no reino animal. Sabemos, por exemplo, que este tem um hipotálamo (parte do cérebro que sintetiza as neurohormonas encarregues, nomeadamente, da regulação das funções de stress ou de defesa), 20% superior ao de todos os outros bovinos, e que, por isso, tem uma capacidade superior de segregação de beta-endorfinas (hormona e anestesiante natural encarregada de bloquear os receptores da dor) o que faz com que o touro perante a colocação de uma bandarilha redobre as suas investidas em vez de fugir, que é a reacção natural de qualquer animal à dor. O touro é seleccionado tendo em conta a sua combatividade, sendo um animal que tem evoluído, ao longo dos séculos, estando fisiologicamente adaptado para a lide”. O TOURO - Tudo o que precisas saber sobre o Touro Bravo
4 - E agora começo a responder. Tanto quanto sei, nunca nenhuma revista científica credível aceitou publicar o manuscrito dos indivíduos do Departamento de Fisiologia da Faculdade de Ciência Veterinária da Universidade Complutense de Madrid, manuscrito no qual se baseia o texto do referido site. O texto começa por referir uma hipertelia intracefálica ao nível do infundíbulo do terceiro ventrículo. Pergunte aos autores onde leram tal coisa? Qual a base amostral? Fundamenta-se num nível alfa inferior a 0,05? Esclareçam-me. Mais, eles que demonstrem que as hipertelias estruturais têm consequências metabólicas. Se mo demonstrarem proporei à Academia de Estocolmo que lhes seja atribuído o Prémio Nobel.
Continuando. A beta-endorfina que é um polipéptido de cadeia curta (31 aminoácidos) é produzida não só ao nível hipotalâmico, mas também ao nível hipofisário e noutras zonas. Aliás ela foi descoberta em 1976 ao nível hipofisário e não ao nível hipotalâmico. Os autores da descoberta foram Choh Hao Li e David Chung. O seu a seu dono!
Um dos erros formais do texto é a afirmação de que algo no organismo está encarregue de alguma coisa. É um raciocínio teleológico aceite em religião, mas inaceitável no discurso científico. Não está “encarregue”, mas “tem por consequência”, o que é totalmente diferente. A teleologia demonstra uma ignorância avassaladora sobre os processos evolutivos.
Uma das principais inconsistências do manuscrito e que leva ao seu “chumbo” pela comunidade científica, é afirmar que o touro, uma vez lidado (ou seja, já cadáver) apresenta níveis de cortisol (hormona do stress) inferiores aos que apresenta um touro transportado num camião, deduzindo os autores que o touro sofre mais no camião do que durante a tourada. Erro crasso. Falam de touros durante a tourada, mas a maior parte dos touros estavam mortos durante a extracção do sangue. Um estudo que se realiza no cadáver de um animal não nos diz rigorosamente nada sobre o que se passava quando o animal estava vivo.
5 - Outro disparate vem logo na frase seguinte: “o touro perante a colocação de uma bandarilha redobra as suas investidas em vez de fugir, que é a reacção natural de qualquer animal à dor”.
Não, meus caros, em qualquer animal a reacção é a fuga se tiver condições para isso. Se estiver encurralado como o touro na arena, portanto se não tiver condições de fuga, só tem duas alternativas: ou luta ou fica estático. Nesta situação o animal avalia o inimigo. Se considera que tem condições para vencer, luta. Se considera que não tem, inibe a acção e fica estático. O que é que o leva a lutar? É activado um conjunto de feixes nervosos denominado “sistema periventricular” que o leva a lutar. O sistema periventricular é constituído por vias eferentes hipotalâmicas (na parede do terceiro ventrículo) que atingem principalmente os núcleos supra-ópticos posterior e tuberal e confinam com a substância cinzenta periventricular. Uma das consequências da activação do sistema periventricular (atenção, só há estudos em humanos) é a produção do neuropéptido-y que, ao que tudo indica, pode estar associado à resiliência em relação ao stress pós-traumático e à resposta de medo, permitindo aos indivíduos uma melhor resposta sob stress extremo (Julie Steenhuysen, 2009).
E o que é que leva a inibir a acção? Os poucos estudos conhecidos levados a cabo pela equipa de Laborit (1974, 1977) foram realizados em ratos. Em situações em que não pode lutar nem fugir é activado um conjunto de feixes nervosos denominado “sistema inibidor de acção” (área septal média, hipocampus, amígdala lateral e hipotálamo ventromediano).
Tanto quanto sei são desconhecidos os mecanismos neuroquímicos envolvidos, apesar de existirem algumas conjecturas sobre isso.
6 - Bom, e vamos discutir um pouquinho o valor de sobrevivência da inibição dos centros de dor. Antes de mais a dor tem um imenso valor de sobrevivência. Se não houvesse dor o animal não se aperceberia da gravidade dos seus ferimentos e morreria. Assim, ao longo do processo evolutivo, foi seleccionada a capacidade de produção de endorfinas. Esta anestesia endógena é de curta duração e é uma atenuação e não uma eliminação da dor (não existe um único estudo que refira “eliminação”).
Os neuropeptídos que constituem as endorfinas são neuropéptidos de vida curta (short-term). Permitem ao animal, num curto período após o trauma, a serenidade necessária à organização de uma resposta adequada à situação. Dou um exemplo humano. Uma pessoa está a cortar pão e a faca resvala cortando-lhe um dedo. É muito doloroso. Mas, após algumas fracções de segundo, o seu sistema nervoso responde com a produção de endorfinas. A sua dor é significativamente atenuada. Pensa, vai desinfectar a ferida, decide ir ao hospital para a suturar, etc.. Se tivesse uma dor insuportável não teria a serenidade necessária para encontrar uma solução. As endorfinas permitem-lhe essa serenidade por um curto período mas, passado pouco tempo, vai sentir imensa dor. Contudo o problema está resolvido e sobreviveu. Mas as endorfinas são de vida curta. Apenas lhe dão tempo para resolver o problema, e muito pouco tempo.
Quando uma gazela é caçada por uma leoa, o seu sistema neuro-endócrino produz endorfinas. A dor diminui à espera de uma solução para o problema. Diz-se que a gazela sofre pouco. Mas isso será porque a morte é suficientemente rápida, mais rápida que o tempo de vida das endorfinas produzidas.
O período de lide de um touro na arena é demasiado longo. Não há endorfina que persista durante todo o tempo da lide.
7 - E vamos agora ao resto, à lide. As bandarilhas? Em Portugal espetadas ou a cavalo, ou a pé. Para quem não sabe, são varas de madeira com uma ponta de aço de 6 cm que se prendem à área dorsal do touro e que aí se mantêm pelo facto de, na sua ponta, possuírem um arpão de 16 mm. Existem ainda o matador e os forcados. O matador faz uma série de passes com a capa e também espeta bandarilhas no animal. Os forcados desafiam o touro e, em grupo, agarram-no toldando-lhe a visão e tentando imobilizá-lo. Nesta parte poderá não ser causada dor física ao animal, embora lhe seja imposto um enorme esforço físico e psicológico.
As bandarilhas, pela força da gravidade e do movimento do touro, causam danos aos nervos, músculos e vasos sanguíneos. No caso dos danos causados nos vasos sanguíneos, é significativamente reduzida a irrigação sanguínea dos músculos importantes para o movimento. Além do mais, as bandarilhas podem ferir os ramos nervosos dorsais da medula espinal, o que causa claudicação temporária e leva à inibição reflexa do plexo braquial (o centro nervoso que inerva as extremidades anteriores).
Podem ainda causar hemorragias no canal medular e ferir a parte superior das costelas. Portanto, o sistema nervoso do touro sofre danos significativos durante a tourada, tornando uma resposta normal impossível em termos de libertação de ACTH e cortisol.
8 - O “estudo” dos aficionados do Departamento de Fisiologia da Faculdade de Ciência Veterinária da Universidade Complutense de Madrid “conclui”, entre outras coisas sem qualquer fundamento científico credível, que os touros que só tenham sido transportados ou que estão na arena sem ser toureados, portanto sem danos físicos, produzem mais cortisol do que aqueles que sofreram danos. Portanto é maior o stress de não ser toureado do que o de ser toureado. Fantasticamente ilógico!!!
O que se passa na realidade é que o seu sistema nervoso está intacto, o que é essencial para a resposta hormonal.
9 - José Laguía, membro do Colégio Oficial de Veterinários de Espanha refere que em pessoas envolvidas em acidentes com grandes lesões na coluna vertebral, a resposta hormonal que resultaria na liberação de cortisol é reduzida ou mesmo ausente. Pode haver alguma situação mais stressante para alguém do que pensar que poderá passar o resto da vida numa cadeira de rodas? É que o que se passa na realidade é que o sistema nervoso está de tal modo danificado que se torna impossível a resposta adequada.
A outra parte do estudo dos indivíduos do Departamento de Fisiologia da Faculdade de Ciência Veterinária da Universidade Complutense de Madrid refere-se à produção de beta-endorfina que, como referi atrás, é produzida em situações de dor. Segundo esses senhores, durante a tourada, o animal, aparentemente, liberta uma enorme quantidade de beta-endorfina. Então os ditos senhores concluem que neste caso a beta-endorfina seria capaz de evitar a dor do touro. Dizem esses senhores que o touro liberta dez vezes a quantidade de beta-endorfina do que um ser humano. Fantástico!
Para o mínimo de credibilidade científica desta afirmação, os ditos seres humanos, para que o estudo comparativo fosse fidedigno, teriam que estar sujeitos rigorosamente às mesmas condições que o touro. É o controlo de variáveis – chama-se método científico.
Portanto o ser humano teria que ser toureado, bandarilhado, pegado, etc.. Tanto quanto sabemos isso não foi feito e, portanto, as conclusões não têm qualquer validade. Ainda por cima, como já referi, os níveis hormonais foram medidos no sangue recolhido em touros mortos, por isso é impossível saber em que altura da tourada a beta-endorfina foi libertada.
10 - Numa crítica ao manuscrito dos senhores da Universidade Complutense de Madrid, o atrás referido José Laguía defende que a resposta hormonal depende da “integridade das estruturas nervosas, pois sabe-se que, quando há um dano neurológico, a beta-endorfina pode ser libertada no local da dor, devido a determinados mecanismos celulares, sem o envolvimento do sistema nervoso. (…) quando a agressão é repetida frequentemente ou tem lugar durante um período prolongado de tempo, e quando os recursos do animal para alcançar o nível de adaptação são inadequados (…) as respostas hormonais à dor, ou seja, a liberação de grandes quantidades de beta-endorfina tais como são encontradas no sangue de touros após uma tourada, são a resposta normal do organismo a grande dor e stress, e têm muito pouco a ver com capacidade para os neutralizar; Na verdade, ao contrário, os níveis de hormona indicam o grau de dor experimentada e não a capacidade do animal para a neutralizar”.
11 - Portanto os cérebros, nossos e dos touros, são praticamente iguais (outra coisa seria estranha). Hoje já sabemos alguma coisa sobre o funcionamento do sistema nervoso (ou dos sistemas nervosos). Permitem a nossa sobrevivência e o nosso relacionamento com o meio. E o nosso relacionamento com o meio permite-nos matar a fome e a sede, ter medo, fugir, defendermo-nos, amarmo-nos uns aos outros, por vezes odiarmo-nos, ser felizes ou infelizes, estar tristes, etc., etc., etc..
O sistema nervoso funciona através de mecanismos físicos e químicos a que chamamos normalmente neuro-químicos ou neuro-endócrinos. Os nossos e os dos touros são rigorosamente os mesmos. As substâncias químicas implicadas nos processos são rigorosamente as mesmas, as áreas do cérebro estimuladas por cada sensação são rigorosamente as mesmas, as áreas de interpretação cerebrais são afectadas exactamente da mesma forma. É o que sabemos.
Portanto não se pode afirmar que o touro não sofre como nós sofreríamos exactamente na mesma situação. Seria enfiar a cabeça na areia (informo que nunca foi vista uma avestruz fazê-lo).
Sim, há casos interessantes. Aparentemente os nossos cães são capazes de um amor muito mais profundo do que aquele que nós alguma vez seremos capazes de sentir? A quantidade de oxitocina (hormona do amor, aquela que nós, vertebrados, produzimos quando sentimos amor por alguém) que os nossos cães produzem quando estão connosco é significativamente superior à nossa. Estou certo de que nunca nenhum de nós será capaz de imaginar quanto os nossos cães nos amam. Nunca pelo simples facto de um ser humano não ser capaz de amar tão intensamente como um cão. E tenho que terminar referindo o ilustre deputado do CDS-PP João Almeida: “Não foi a primeira vez que saltei a uma arena. Já tinha saltado também à do Campo Pequeno, há dois ou três anos, numa Festa do Forcado. Também não foi a primeira vez, nem há-de ser a última, que salto em defesa da tauromaquia. Faz todo o sentido fazê-lo. Na Assembleia da República, representamos os portugueses e não podemos esquecer que há muitos portugueses, muitos mesmo, que se revêem da tradição tauromáquica e a apoiam. Somos muitos!”.
Saiba que o especismo é moralmente uma generalização do racismo. É narcisismo, é considerarmo-nos entes superiores, que não somos. Somos apenas diferentes. Racismo seria senhor deputado ser caucasiano e considerar negros, judeus, palestinianos, asiáticos, etc., seres inferiores. Sendo seres inferiores considerava-se, não há muitos anos, que não tinham alma e, portanto, podiam ser mortos em campos de concentração ou noutros processos genocidas.
Por generalização, o especismo consiste em considerar que os outros animais, cães, gatos, porcos, touros, burros, etc. não têm alma e que, portanto, podem ser mortos. Pessoas congratularem-se com a tortura pública de um outro animal é um sentimento baixo, reles, primitivo, repugnante. Nem se trata de matar um ser vivo numa situação de fome para comer, trata-se de torturar e matar por puro prazer.
Se estas pessoas que se comprazem com o sofrimento dos animais tivessem vivido nos séculos XVI, XVII ou XVIII, certamente que se divertiriam com os Autos de Fé no Rossio em que pessoas eram queimadas na fogueira. Talvez tivessem um imenso prazer na matança dos cristãos-novos. Se tivessem vivido na antiga Roma, muito se divertiriam com os cristãos lançados aos leões para gáudio da população.
E era tradição, e as tradições devem ser acarinhadas, protegidas e mantidas. Provavelmente, como o senhor deputado diz, haveria muitos portugueses que se reveriam e apoiariam estas tradições.
E outras. O apedrejamento de mulheres na Nigéria e as mutilações genitais em muitos países de África. Vivam as tradições.
Também devem pensar que Deus colocou o homem no centro do universo à sua imagem e semelhança logo abaixo dos anjos.
Divirtam-se nas vossas touradas, divirtam-se nos autos de fé no Rossio, divirtam-se na praça da revolução em Paris enquanto as cabeças dos guilhotinados rolam para um cesto de serradura, divirtam-se nos circos romanos, divirtam-se nos fornos crematórios de Auschwitz, vão à República Árabe Sahraui Democrática e regalem-se com o massacre do povo saharaui pelo governo de Marrocos. Ainda vos sugiro um espectáculo mais recente, levado à cena em Agosto do ano passado na Faixa de Gaza. Os bombardeamentos sionistas que, só crianças palestinas, mataram 408. E ainda me ia esquecendo, Guernica. Deveriam regozijar-se naquele dia 26 de Abril de 1937 em que os aviões nazis da Legião Condor arrasaram aquela povoação massacrando quase toda a população. Ainda devem haver lugares na plateia. Aproveitem. Divirtam-se com a morte e o sofrimento dos outros, sejam cúmplices!!! Façam o favor de serem felizes com as vossas mãos conspurcadas de sangue alheio! A mim certamente o senhor deputado não me representa no parlamento.
Em resposta a: https://protouro.wordpress.com/2016...
Luis Vicente é licenciado em Biologia, doutorado em Evolução e agregado em Comportamento Animal pela Universidade de Lisboa. Professor na Universidade de Lisboa, foi também professor convidado em várias universidades (ISPA, U. Aberta, U. Madeira, U. Açores, U. Nottingham, U. Paris VI, Museu Nacional de História Natural de Paris, U. Montpellier, NATO Advanced Studies Institute, USALMA, U. Nova de Lisboa, U. Badajoz) onde leccionou várias matérias, entre as quais: Comportamento Animal, Cognição Animal, Ecologia, História do Pensamento Biológico, Neurobiologia, Bioética. É actualmente membro do Centro de Filosofia das Ciências da Universidade de Lisboa onde preside à linha “Ciências da Vida”, é presidente do Instituto de Gestão e Reordenamento do Território e membro da presidência do Conselho Português para a Paz e Cooperação. É activista pelo bem-estar animal e por uma relação sustentável entre as comunidades humanas e a natureza.
***
Obrigada Luis Vicente pelas tuas palavras e pelo facto de lutares incansavelmente contra a injustiça!
Um magnífico texto que destrói mitos tauromáquicos e as mentiras que, ao longo de séculos, os aficionados de tauromaquia acreditaram, por simples ignorância, serem verdades.
Um magnífico texto escrito por um Biólogo experiente e sapiente na questão animal. E se depois de lerem este texto, os aficionados optarem por continuar a teimar na sua ignorância, melhor é atiraram-se ao mar, pois não servem para serem seres humanos.
Um texto precioso para desfazer em cacos a tauromaquia.
(O negrito do texto de Luís Vicente é da minha lavra. I.A.F.)
por Luís Vicente
Patrícia Caeiro·Segunda-feira, 16 de Outubro de 2017
Aqui vai um longo longo longo comentário que por ser longo longo longo tem que ir dividido por pontos, porque o fb não aceita comentários longos longos longos...
1 - Começo a ficar cansado da argumentação balofa, hipócrita, ignorante e desonesta em defesa das touradas. Andava aqui a cuscar o mural da Patrícia e a minha irritação cresceu ao ler este post a respeito dos actos corajosos do Sr. João Almeida, insigne deputado da Nação pelo CDS-PP. Aproveito então (desculpa, Patrícia, o espaço que te ocupo) para responder aos pseudo-argumentos dos aficionados. Advirto que possivelmente utilizarei alguma linguagem um pouco mais hermética, mas trata-se de um assunto sério que quero tratar com rigor e seriedade. De qualquer forma, se houver palavras “mais difíceis”, o seu significado será facilmente encontrado com recurso à internet. Antes, contudo, como sou eu a contra-argumentar, quero deixar claras as minhas limitações. Todos nós somos construções sociais e temos, por isso, limitações culturais (no sentido antropológico) condicionadas pelo ambiente social em que crescemos. Eu sou biólogo e tenho 42 anos de ensino e investigação em comportamento animal, neurobiologia e história e filosofia da ciência na Universidade de Lisboa e em várias outras universidades em países estrangeiros. Isto serve apenas para lhe explicar que o meu pensamento é limitado e constrangido pela minha experiência de vida e, por isso, vale o que vale. Uma das coisas que todo o meu trabalho de investigação me ensinou foi que os seres humanos são animais, nem mais nem menos que todos os outros que povoam e viajam nesta nave especial que é a Terra. São apenas diferentes, porque é a diferença que caracteriza cada uma das espécies. Mas não existe qualquer argumento científico que permita estabelecer uma hierarquia de importância ou de valores que, quantitativamente, diferencie umas espécies de outras. Nem tal faria sentido. O próprio Darwin afirma em “The Descent of Man” que as diferenças entre os humanos e os outros animais são qualitativas e não quantitativas. Esta afirmação de Darwin é conhecida na comunidade científica por “Lei da Continuidade de Darwin”.
2 - Não há muitos anos não era considerado crime matar um negro porque simplesmente era considerado um ser inferior. É elucidativo constatar que a última exposição de um negro enjaulado num jardim zoológico foi em Bruxelas em 1958. Hoje, a isto, chama-se racismo e é altamente condenado. Só em 20 de Novembro de 1963 a Assembleia Geral das Nações Unidas na sua resolução 1904-XVIII proclama a Declaração sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, na qual se afirma, entre outras coisas “que qualquer doutrina de diferenciação ou superioridade racial é cientificamente falsa, moralmente condenável, socialmente injusta e perigosa, e que não existe qualquer justificação para a discriminação racial, quer na teoria, quer na prática”. Negros, brancos, asiáticos, índios, etc., etc., etc., pertencem todos a uma única espécie: Homo sapiens.
Mas porquê por o limite na espécie? Poderíamos pôr a fasquia nos grandes símios. Assim ficaríamos nós, bonobos, chimpanzés, orangotangos e gorilas no saco dos “superiores”. Seria feio tratar mal os grandes símios e quem o fizesse seria legitimamente acusado de “simiísmo”, o que seria considerado moralmente muito feio.
E por que ficar pelos grandes símios? Poderiam ser todos os Primatas, ou mesmo todos os Mamíferos ou até todos os Vertebrados… e a história não teria fim até que chegaríamos ao especismo, vocábulo introduzido por Richard Ryder em 1975, num livro intitulado “Victims of Science”.
Porquê pensarmos que a nossa espécie é o centro do universo? Simplesmente porque é um constrangimento cultural sem base científica de raiz muito antiga e de reforço judaico-islâmico-cristão. No princípio Deus criou o Homem à sua imagem e semelhança, logo abaixo dos anjos, para dominar a Terra. Podemos substituir “Homem” por “Grandes Símios”, por “Primatas”, por “Mamíferos”, por “Vertebrados”, por “Cordados” (para incluir as lampreias), ou por “animais” (para incluir os polvos). O sentido seria o mesmo!
3 - E vamos aos touros e o que escreverei sobre os touros é válido para, pelo menos, todos os Vertebrados. Começo por alguns dos argumentos deles, aficionados, num texto lapidar intitulado “Tauromaquia: a indústria responsável pela vida feliz dum dos animais mais protegidos em Portugal” da autoria de um conjunto de aficionados do Departamento de Fisiologia da Faculdade de Ciência Veterinária da Universidade Complutense de Madrid e referido na página da net "O TOURO - Tudo o que precisa saber sobre o Touro Bravo"
(http://www.touradas.pt/tauromaquia/otouro)
Cá vai: “De acordo com os estudos científicos mais recentes sobre o touro bravo, sabemos que este tem reacções hormonais únicas no reino animal. Sabemos, por exemplo, que este tem um hipotálamo (parte do cérebro que sintetiza as neurohormonas encarregues, nomeadamente, da regulação das funções de stress ou de defesa), 20% superior ao de todos os outros bovinos, e que, por isso, tem uma capacidade superior de segregação de beta-endorfinas (hormona e anestesiante natural encarregada de bloquear os receptores da dor) o que faz com que o touro perante a colocação de uma bandarilha redobre as suas investidas em vez de fugir, que é a reacção natural de qualquer animal à dor. O touro é seleccionado tendo em conta a sua combatividade, sendo um animal que tem evoluído, ao longo dos séculos, estando fisiologicamente adaptado para a lide”. O TOURO - Tudo o que precisas saber sobre o Touro Bravo
4 - E agora começo a responder. Tanto quanto sei, nunca nenhuma revista científica credível aceitou publicar o manuscrito dos indivíduos do Departamento de Fisiologia da Faculdade de Ciência Veterinária da Universidade Complutense de Madrid, manuscrito no qual se baseia o texto do referido site. O texto começa por referir uma hipertelia intracefálica ao nível do infundíbulo do terceiro ventrículo. Pergunte aos autores onde leram tal coisa? Qual a base amostral? Fundamenta-se num nível alfa inferior a 0,05? Esclareçam-me. Mais, eles que demonstrem que as hipertelias estruturais têm consequências metabólicas. Se mo demonstrarem proporei à Academia de Estocolmo que lhes seja atribuído o Prémio Nobel.
Continuando. A beta-endorfina que é um polipéptido de cadeia curta (31 aminoácidos) é produzida não só ao nível hipotalâmico, mas também ao nível hipofisário e noutras zonas. Aliás ela foi descoberta em 1976 ao nível hipofisário e não ao nível hipotalâmico. Os autores da descoberta foram Choh Hao Li e David Chung. O seu a seu dono!
Um dos erros formais do texto é a afirmação de que algo no organismo está encarregue de alguma coisa. É um raciocínio teleológico aceite em religião, mas inaceitável no discurso científico. Não está “encarregue”, mas “tem por consequência”, o que é totalmente diferente. A teleologia demonstra uma ignorância avassaladora sobre os processos evolutivos.
Uma das principais inconsistências do manuscrito e que leva ao seu “chumbo” pela comunidade científica, é afirmar que o touro, uma vez lidado (ou seja, já cadáver) apresenta níveis de cortisol (hormona do stress) inferiores aos que apresenta um touro transportado num camião, deduzindo os autores que o touro sofre mais no camião do que durante a tourada. Erro crasso. Falam de touros durante a tourada, mas a maior parte dos touros estavam mortos durante a extracção do sangue. Um estudo que se realiza no cadáver de um animal não nos diz rigorosamente nada sobre o que se passava quando o animal estava vivo.
5 - Outro disparate vem logo na frase seguinte: “o touro perante a colocação de uma bandarilha redobra as suas investidas em vez de fugir, que é a reacção natural de qualquer animal à dor”.
Não, meus caros, em qualquer animal a reacção é a fuga se tiver condições para isso. Se estiver encurralado como o touro na arena, portanto se não tiver condições de fuga, só tem duas alternativas: ou luta ou fica estático. Nesta situação o animal avalia o inimigo. Se considera que tem condições para vencer, luta. Se considera que não tem, inibe a acção e fica estático. O que é que o leva a lutar? É activado um conjunto de feixes nervosos denominado “sistema periventricular” que o leva a lutar. O sistema periventricular é constituído por vias eferentes hipotalâmicas (na parede do terceiro ventrículo) que atingem principalmente os núcleos supra-ópticos posterior e tuberal e confinam com a substância cinzenta periventricular. Uma das consequências da activação do sistema periventricular (atenção, só há estudos em humanos) é a produção do neuropéptido-y que, ao que tudo indica, pode estar associado à resiliência em relação ao stress pós-traumático e à resposta de medo, permitindo aos indivíduos uma melhor resposta sob stress extremo (Julie Steenhuysen, 2009).
E o que é que leva a inibir a acção? Os poucos estudos conhecidos levados a cabo pela equipa de Laborit (1974, 1977) foram realizados em ratos. Em situações em que não pode lutar nem fugir é activado um conjunto de feixes nervosos denominado “sistema inibidor de acção” (área septal média, hipocampus, amígdala lateral e hipotálamo ventromediano).
Tanto quanto sei são desconhecidos os mecanismos neuroquímicos envolvidos, apesar de existirem algumas conjecturas sobre isso.
6 - Bom, e vamos discutir um pouquinho o valor de sobrevivência da inibição dos centros de dor. Antes de mais a dor tem um imenso valor de sobrevivência. Se não houvesse dor o animal não se aperceberia da gravidade dos seus ferimentos e morreria. Assim, ao longo do processo evolutivo, foi seleccionada a capacidade de produção de endorfinas. Esta anestesia endógena é de curta duração e é uma atenuação e não uma eliminação da dor (não existe um único estudo que refira “eliminação”).
Os neuropeptídos que constituem as endorfinas são neuropéptidos de vida curta (short-term). Permitem ao animal, num curto período após o trauma, a serenidade necessária à organização de uma resposta adequada à situação. Dou um exemplo humano. Uma pessoa está a cortar pão e a faca resvala cortando-lhe um dedo. É muito doloroso. Mas, após algumas fracções de segundo, o seu sistema nervoso responde com a produção de endorfinas. A sua dor é significativamente atenuada. Pensa, vai desinfectar a ferida, decide ir ao hospital para a suturar, etc.. Se tivesse uma dor insuportável não teria a serenidade necessária para encontrar uma solução. As endorfinas permitem-lhe essa serenidade por um curto período mas, passado pouco tempo, vai sentir imensa dor. Contudo o problema está resolvido e sobreviveu. Mas as endorfinas são de vida curta. Apenas lhe dão tempo para resolver o problema, e muito pouco tempo.
Quando uma gazela é caçada por uma leoa, o seu sistema neuro-endócrino produz endorfinas. A dor diminui à espera de uma solução para o problema. Diz-se que a gazela sofre pouco. Mas isso será porque a morte é suficientemente rápida, mais rápida que o tempo de vida das endorfinas produzidas.
O período de lide de um touro na arena é demasiado longo. Não há endorfina que persista durante todo o tempo da lide.
7 - E vamos agora ao resto, à lide. As bandarilhas? Em Portugal espetadas ou a cavalo, ou a pé. Para quem não sabe, são varas de madeira com uma ponta de aço de 6 cm que se prendem à área dorsal do touro e que aí se mantêm pelo facto de, na sua ponta, possuírem um arpão de 16 mm. Existem ainda o matador e os forcados. O matador faz uma série de passes com a capa e também espeta bandarilhas no animal. Os forcados desafiam o touro e, em grupo, agarram-no toldando-lhe a visão e tentando imobilizá-lo. Nesta parte poderá não ser causada dor física ao animal, embora lhe seja imposto um enorme esforço físico e psicológico.
As bandarilhas, pela força da gravidade e do movimento do touro, causam danos aos nervos, músculos e vasos sanguíneos. No caso dos danos causados nos vasos sanguíneos, é significativamente reduzida a irrigação sanguínea dos músculos importantes para o movimento. Além do mais, as bandarilhas podem ferir os ramos nervosos dorsais da medula espinal, o que causa claudicação temporária e leva à inibição reflexa do plexo braquial (o centro nervoso que inerva as extremidades anteriores).
Podem ainda causar hemorragias no canal medular e ferir a parte superior das costelas. Portanto, o sistema nervoso do touro sofre danos significativos durante a tourada, tornando uma resposta normal impossível em termos de libertação de ACTH e cortisol.
8 - O “estudo” dos aficionados do Departamento de Fisiologia da Faculdade de Ciência Veterinária da Universidade Complutense de Madrid “conclui”, entre outras coisas sem qualquer fundamento científico credível, que os touros que só tenham sido transportados ou que estão na arena sem ser toureados, portanto sem danos físicos, produzem mais cortisol do que aqueles que sofreram danos. Portanto é maior o stress de não ser toureado do que o de ser toureado. Fantasticamente ilógico!!!
O que se passa na realidade é que o seu sistema nervoso está intacto, o que é essencial para a resposta hormonal.
9 - José Laguía, membro do Colégio Oficial de Veterinários de Espanha refere que em pessoas envolvidas em acidentes com grandes lesões na coluna vertebral, a resposta hormonal que resultaria na liberação de cortisol é reduzida ou mesmo ausente. Pode haver alguma situação mais stressante para alguém do que pensar que poderá passar o resto da vida numa cadeira de rodas? É que o que se passa na realidade é que o sistema nervoso está de tal modo danificado que se torna impossível a resposta adequada.
A outra parte do estudo dos indivíduos do Departamento de Fisiologia da Faculdade de Ciência Veterinária da Universidade Complutense de Madrid refere-se à produção de beta-endorfina que, como referi atrás, é produzida em situações de dor. Segundo esses senhores, durante a tourada, o animal, aparentemente, liberta uma enorme quantidade de beta-endorfina. Então os ditos senhores concluem que neste caso a beta-endorfina seria capaz de evitar a dor do touro. Dizem esses senhores que o touro liberta dez vezes a quantidade de beta-endorfina do que um ser humano. Fantástico!
Para o mínimo de credibilidade científica desta afirmação, os ditos seres humanos, para que o estudo comparativo fosse fidedigno, teriam que estar sujeitos rigorosamente às mesmas condições que o touro. É o controlo de variáveis – chama-se método científico.
Portanto o ser humano teria que ser toureado, bandarilhado, pegado, etc.. Tanto quanto sabemos isso não foi feito e, portanto, as conclusões não têm qualquer validade. Ainda por cima, como já referi, os níveis hormonais foram medidos no sangue recolhido em touros mortos, por isso é impossível saber em que altura da tourada a beta-endorfina foi libertada.
10 - Numa crítica ao manuscrito dos senhores da Universidade Complutense de Madrid, o atrás referido José Laguía defende que a resposta hormonal depende da “integridade das estruturas nervosas, pois sabe-se que, quando há um dano neurológico, a beta-endorfina pode ser libertada no local da dor, devido a determinados mecanismos celulares, sem o envolvimento do sistema nervoso. (…) quando a agressão é repetida frequentemente ou tem lugar durante um período prolongado de tempo, e quando os recursos do animal para alcançar o nível de adaptação são inadequados (…) as respostas hormonais à dor, ou seja, a liberação de grandes quantidades de beta-endorfina tais como são encontradas no sangue de touros após uma tourada, são a resposta normal do organismo a grande dor e stress, e têm muito pouco a ver com capacidade para os neutralizar; Na verdade, ao contrário, os níveis de hormona indicam o grau de dor experimentada e não a capacidade do animal para a neutralizar”.
11 - Portanto os cérebros, nossos e dos touros, são praticamente iguais (outra coisa seria estranha). Hoje já sabemos alguma coisa sobre o funcionamento do sistema nervoso (ou dos sistemas nervosos). Permitem a nossa sobrevivência e o nosso relacionamento com o meio. E o nosso relacionamento com o meio permite-nos matar a fome e a sede, ter medo, fugir, defendermo-nos, amarmo-nos uns aos outros, por vezes odiarmo-nos, ser felizes ou infelizes, estar tristes, etc., etc., etc..
O sistema nervoso funciona através de mecanismos físicos e químicos a que chamamos normalmente neuro-químicos ou neuro-endócrinos. Os nossos e os dos touros são rigorosamente os mesmos. As substâncias químicas implicadas nos processos são rigorosamente as mesmas, as áreas do cérebro estimuladas por cada sensação são rigorosamente as mesmas, as áreas de interpretação cerebrais são afectadas exactamente da mesma forma. É o que sabemos.
Portanto não se pode afirmar que o touro não sofre como nós sofreríamos exactamente na mesma situação. Seria enfiar a cabeça na areia (informo que nunca foi vista uma avestruz fazê-lo).
Sim, há casos interessantes. Aparentemente os nossos cães são capazes de um amor muito mais profundo do que aquele que nós alguma vez seremos capazes de sentir? A quantidade de oxitocina (hormona do amor, aquela que nós, vertebrados, produzimos quando sentimos amor por alguém) que os nossos cães produzem quando estão connosco é significativamente superior à nossa. Estou certo de que nunca nenhum de nós será capaz de imaginar quanto os nossos cães nos amam. Nunca pelo simples facto de um ser humano não ser capaz de amar tão intensamente como um cão. E tenho que terminar referindo o ilustre deputado do CDS-PP João Almeida: “Não foi a primeira vez que saltei a uma arena. Já tinha saltado também à do Campo Pequeno, há dois ou três anos, numa Festa do Forcado. Também não foi a primeira vez, nem há-de ser a última, que salto em defesa da tauromaquia. Faz todo o sentido fazê-lo. Na Assembleia da República, representamos os portugueses e não podemos esquecer que há muitos portugueses, muitos mesmo, que se revêem da tradição tauromáquica e a apoiam. Somos muitos!”.
Saiba que o especismo é moralmente uma generalização do racismo. É narcisismo, é considerarmo-nos entes superiores, que não somos. Somos apenas diferentes. Racismo seria senhor deputado ser caucasiano e considerar negros, judeus, palestinianos, asiáticos, etc., seres inferiores. Sendo seres inferiores considerava-se, não há muitos anos, que não tinham alma e, portanto, podiam ser mortos em campos de concentração ou noutros processos genocidas.
Por generalização, o especismo consiste em considerar que os outros animais, cães, gatos, porcos, touros, burros, etc. não têm alma e que, portanto, podem ser mortos. Pessoas congratularem-se com a tortura pública de um outro animal é um sentimento baixo, reles, primitivo, repugnante. Nem se trata de matar um ser vivo numa situação de fome para comer, trata-se de torturar e matar por puro prazer.
Se estas pessoas que se comprazem com o sofrimento dos animais tivessem vivido nos séculos XVI, XVII ou XVIII, certamente que se divertiriam com os Autos de Fé no Rossio em que pessoas eram queimadas na fogueira. Talvez tivessem um imenso prazer na matança dos cristãos-novos. Se tivessem vivido na antiga Roma, muito se divertiriam com os cristãos lançados aos leões para gáudio da população.
E era tradição, e as tradições devem ser acarinhadas, protegidas e mantidas. Provavelmente, como o senhor deputado diz, haveria muitos portugueses que se reveriam e apoiariam estas tradições.
E outras. O apedrejamento de mulheres na Nigéria e as mutilações genitais em muitos países de África. Vivam as tradições.
Também devem pensar que Deus colocou o homem no centro do universo à sua imagem e semelhança logo abaixo dos anjos.
Divirtam-se nas vossas touradas, divirtam-se nos autos de fé no Rossio, divirtam-se na praça da revolução em Paris enquanto as cabeças dos guilhotinados rolam para um cesto de serradura, divirtam-se nos circos romanos, divirtam-se nos fornos crematórios de Auschwitz, vão à República Árabe Sahraui Democrática e regalem-se com o massacre do povo saharaui pelo governo de Marrocos. Ainda vos sugiro um espectáculo mais recente, levado à cena em Agosto do ano passado na Faixa de Gaza. Os bombardeamentos sionistas que, só crianças palestinas, mataram 408. E ainda me ia esquecendo, Guernica. Deveriam regozijar-se naquele dia 26 de Abril de 1937 em que os aviões nazis da Legião Condor arrasaram aquela povoação massacrando quase toda a população. Ainda devem haver lugares na plateia. Aproveitem. Divirtam-se com a morte e o sofrimento dos outros, sejam cúmplices!!! Façam o favor de serem felizes com as vossas mãos conspurcadas de sangue alheio! A mim certamente o senhor deputado não me representa no parlamento.
Em resposta a: https://protouro.wordpress.com/2016...
Luis Vicente é licenciado em Biologia, doutorado em Evolução e agregado em Comportamento Animal pela Universidade de Lisboa. Professor na Universidade de Lisboa, foi também professor convidado em várias universidades (ISPA, U. Aberta, U. Madeira, U. Açores, U. Nottingham, U. Paris VI, Museu Nacional de História Natural de Paris, U. Montpellier, NATO Advanced Studies Institute, USALMA, U. Nova de Lisboa, U. Badajoz) onde leccionou várias matérias, entre as quais: Comportamento Animal, Cognição Animal, Ecologia, História do Pensamento Biológico, Neurobiologia, Bioética. É actualmente membro do Centro de Filosofia das Ciências da Universidade de Lisboa onde preside à linha “Ciências da Vida”, é presidente do Instituto de Gestão e Reordenamento do Território e membro da presidência do Conselho Português para a Paz e Cooperação. É activista pelo bem-estar animal e por uma relação sustentável entre as comunidades humanas e a natureza.
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Obrigada Luis Vicente pelas tuas palavras e pelo facto de lutares incansavelmente contra a injustiça!