Segunda-feira, 6 de Maio de 2013

«Touradas, garraiadas e (pseudo) tradições: feminismo faz pega de caras ao Patriarcado»

 

«Contra as touradas, contra garraiadas, contra abusos. Estas tradições e outras pseudo-tradições peguemo-las de caras».

 

(Um texto que dispensa comentários e diz tudo o que há a dizer sobre a idiotice das touradas e garraiadas)

 

 

 

A pega de caras

 

Por Paula Sequeiros (Investigadora em Sociologia da Cultura)

 

«O garbo, a pose, o traje de luzes! O cheiro a sangue a borbotar do cachaço do touro ferido pela espada, pelas bandarilhas. O homem macho feito espetáculo [espeCtáculo - PT]. Que melhor nome podia ter? O marialva, o matador. O touro bravo, a natureza bruta, dominada, jaz aos pés.

 

Versão mais soft (?), sem morte do animal. À vista. Morte assegurada, muitas horas mais tarde, fora da arena. Versão espetáculo [espeCtáculo - PT] do sofrimento de animais, de todas as maneiras. Dos touros, mas também dos cavalos treinados para enfrentar outro animal, tornado inimigo pela tourada.

 

O dicionário define garraio: 1. Touro novo (que ainda não foi corrido). 2. [Figurado] Homem inexperiente.i

 

Touro não é animal em estado natural. É produto de apuramento genético para fabricar animal de aspeto [aspeCto - PT] fero, inimigo-ator, [aCtor - PT] animal-espetáculo [espeCtáculo- PT], animal-para-morrer. Produto, portanto, mais que animal. Garraio: produto incipiente na linha de produção, pretérito do produto final.

 

Homem domina animal, civilização domina natureza – duplamente. Recria-a por capricho, cria-a para morrer à mão. Tradição ancestral. Imagem dum passado em caixilho dourado, pechisbeque. História-mito, almofada onde adormece a consciência do animal humano para esquecer que o é, para ascender a diferente, superior animal com direito à vida e à morte de todos os outros. Mito caprichado da supremacia. Retirado da natureza, estádio vil em que animal mata animal para comer.

 

Dentro da civilização duma natureza-objeto [objeCto - PT], no abuso por gozo puro, requinte cultural do homem-macho. Natureza criada pelo patriarcado e pelo industrialismo à sua própria imagem. No mundo há muitas outras naturezas. A tradição estava criada. A tradição está servida.

 

«Civilização, obviamente, refere-se a um padrão complexo de dominação de pessoas e de toda a gente (todas as coisas) mais, atribuído frequentemente à tecnologia – fantasiada como «a Máquina». Natureza é um símbolo tão potente de inocência em parte porque 'ela' é imaginada como privada de tecnologia, para ser o objeto [objeCto - PT] da visão e assim uma fonte tanto de saúde como de pureza. Homem não está na natureza em parte porque não é visto, não é espetáculo».ii

 

Praxe académica, garraiada, queima-das-fitas.

 

«A praxe, enquanto ritual iniciático, transmite todo o tipo de valores reacionários [reaCcionários - PT] . Valores como a submissão, o sexismo, a homofobia e o corporativismo são exaltados, numa 'escola de vida' na qual se ensina a supressão do pensamento crítico, a obediência cega à ordem estabelecida e a necessidade de impor hierarquias de tipo militarista na sociedade». iii

 

Garraiada vai bem com praxe. Praxe também é tradição, ou não? Faz-se correr animal jovem (também podia ter sido aluno, como antigamente, outro garraio), enquanto outros maltratam, batem, puxam o rabo. Não o fariam se fosse outro animal, talvez. Garraio existe para ser garraiado.

 

Caloiro existe para ser praxado.

 

Morreu? Foi sem querer. Bicho é coisa, bicho é não-homem, bicho é apenas natureza. Feito para isso. Homem-macho opõe-se a bicho, não tem 'coisas' por animais, não é abichanado. Civilização é homem-macho.

 

Praxe rima com abuso. Praxe rima com macho.

 

Abusos sobre raparigas? Não é praxe, é exagero. Acontece é muito.

 

«A contestação da Praxe em Portugal não é coisa recente. Em textos que datam da primeira metade do século XVIII, já alguns estudantes atacam, por vezes em forma versificada, as assuadas rituais ou verbais: canelões e investidas».iv

 

A tradição reinventa-se, justifica-se todos os dias. Ou transforma-se.

 

Que tem feminismo a ver com touradas e garraiadas? Tem tudo.

 

O pensamento feminista associa natureza e humanidade, não as opõe. Forjado na luta contra a opressão de género, opõe-se a todo o género de opressões.

 

Contesta a história patriarcal, as tradições de negar direitos, de naturalizar maus-tratos. Celebra a reinvenção do quotidiano, sonha outras tradições.

 

Contra as touradas, contra garraiadas, contra abusos.

 

Estas tradições e outras pseudo-tradições peguêmo-las de caras.

 

***

Bibliografia:

i Dicionário Priberam da Língua Portuguesa

ii Haraway, Donna. 1994. “Teddy bear patriarchy: taxidermy in the garden of Eden, New York city, 1908-1936.” P. 49-95 in Culture power history: a reader in contemporary social theory, edited by Nicholas B. Dirks, Geoff Eley, and Sherry B. Ortner. Princeton, N.J.: Princeton University Press.: Princeton University.

iii Coelho, Ricardo. 2012. A praxe como escola de vida. Esquerda.net. 22 abril [Abril - PT].

iv Frias, Aníbal. 2003. “Praxe académica e culturas universitárias em Coimbra. Lógicas das tradições e dinâmicas identitárias.” Revista Crítica de Ciências Sociais, 2003 (66, Outubro):81-116.»

 

Fonte:

http://www.esquerda.net/opiniao/touradas-garraiadas-e-pseudo-tradi%C3%A7%C3%B5es-feminismo-faz-pega-de-caras-ao-patriarcado/23123

 

 

publicado por Isabel A. Ferreira às 15:45

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