Morreu hoje, dia 8 de Janeiro de 2017, aos 88 anos, o Dr. Daniel Serrão, um Ser Humano raro, que tive o privilégio de conhecer, e que me marcou profundamente. Com ele aprendi a dar valor à Vida, seja de quem for essa Vida, e a não temer a morte, porque a morte não é o fim…
Dizia Daniel Serrão que é difícil acreditar que chegamos ao fim da vida com tanto saber acumulado, para tudo acabar ali...
Obrigada, Dr. Daniel Serrão, por tudo o que me ensinou sobre a Vida, a Morte, a Ética e a Bioética...
Muito do que sou hoje, e do que hoje defendo, devo-o aos ensinamentos deste Homo Sapiens Sapiens, que é o orgulho e um exemplo maior para toda a Humanidade.
Até sempre... meu Mestre…
Fotografia: Egídio Santos
Tive o privilégio de conhecer pessoalmente o Dr. Daniel Serrão, um Homem fascinante, pela sua postura humanista, pelo seu raro saber, pela sua extraordinária lucidez e sensibilidade, pela sua capacidade de cativar uma plateia com a humildade que caracteriza os grandes sábios. Não foi por mero acaso que o Papa Francisco o convidou para seu conselheiro e para integrar a Academia Pontifícia para a Vida.
A primeira vez que o vi e ouvi, foi na cerimónia de entrega do Prémio Especial Europeu de Jornalismo/91, que me foi atribuído pelo Conselho de Prevenção de Tabagismo, com o apoio do Programa Europa Contra o Cancro, pelo contributo prestado à luta antitabágica em Portugal, destinada às crianças, no Cantinho do Nicolau, no Jornal O Comércio do Porto, em que ele proferiu uma palestra sobre este tema, extremamente lúcida, profunda e tão perturbante que, se eu fosse fumadora, deixá-lo-ia de o ser naquele mesmo dia, com toda a certeza.
De tal modo fiquei fascinada pelo seu saber que nunca mais o perdi de vista, seguindo-o onde quer que ele apresentasse uma palestra. Era como se frequentasse um Curso Superior de cada vez que o ouvia…
Mas a que mais me marcou, foi a que proferiu em 1992, na Póvoa de Varzim, convidado pelo Rotary Clube daquela cidade, onde apresentou uma palestra subordinada ao tema «Implicações da Moderna Bioética para a Deontologia Profissional Médica».
Transcreverei aqui parte do texto que escrevi na altura, para um jornal poveiro sobre esta palestra, que constituiu uma viragem no meu entendimento da Vida, de todas as Vidas, que passei a defender como se fosse a minha própria Vida.
INTERVENÇÃO DO HOMEM SOBRE A NATUREZA
O Professor Daniel Serrão começou por salientar que a Bioética é uma noção que se espalhou pelo mundo, chegando rapidamente a Portugal, constituindo uma preocupação mais do âmbito da sociedade civil do que dos governantes.
Quais as suas origens?
As investigações da segunda metade do nosso século tornaram possível a capacidade de intervenção dos cientistas nos sistemas biológicos (plantas e animais).
Esta possibilidade fez nascer uma primeira nova ciência – a ECOLOGIA – que apareceu quando o homem começou a preocupar-se com a sua intervenção sobre a Natureza (na produção em série de batata, trigo, leite, entre outras).
Começou-se então a considerar que esta intervenção poderia ser prejudicial, e os problemas da natureza inquietam o homem quando o seu equilíbrio é comprometido.
Todo o processo da vida resultou do mecanismo da adaptação. Os seres sobrevivem se se adaptam ao meio ambiente, e perecem quando essa adaptação falha. Daí nem sempre ser producente pretender manter vivos seres que não podem viver (é esta por vezes a falha das posições ecologistas).
No entanto, o que levou ao avanço da Bioética foi o facto de se começar a aplicar as técnicas de intervenção no próprio homem (e temos os exemplos do bebé proveta e o da transplantação de tecidos). Tal situação originou problemas de natureza ética.
Ora a Ética, segundo o Professor Dr. Daniel Serrão, é uma categoria do pensamento (tal como a lógica), que leva a avaliar as situações segundo valores. E os valores não são absolutamente bons nem absolutamente maus, daí que a sua utilização não seja igual, e tomar decisões segundo valores estabelecidos pode provocar complexos casos de consciência.
Como não somos um, mas milhões de seres, os valores éticos devem ser definidos pela maioria das pessoas, o que constitui, à partida, um imperativo ético.
De acordo com o Dr. Daniel Serrão, as sociedades mudam, bem como mudam as pessoas, e essas mudanças vão do universo ético ao universo do Direito transformando-o em norma jurídica. Na Bioética a norma religiosa não tem cabimento, pois ela vai buscar o seu fundamento fora do homem, e quando a norma religiosa se transforma em norma jurídica, temos aqui uma perversão profunda (tal como o é o fundamentalismo islâmico).
Para o Dr. Daniel Serrão, a morte do homem pelo homem não se justifica. Então como modificar essa perversão de valores? Pela reconversão através do sistema educativo.
PENSAR EM TERMOS DOS VALORES DA HUMANIDADE
Um terceiro ponto focado pelo Dr. Daniel Serrão e que levou ao desenvolvimento da Bioética foi o de que as tecnologias avançadas no campo da Ciência Biológica estão hoje à disposição dos próprios médicos, e isso começa a assustar as pessoas.
Os médicos (incluindo os veterinários) têm nas mãos o poder de transformar os sistemas biológicos do homem (e também de todos outros animais) daí ser necessário que os profissionais tenham regras fixas de deontologia e possam ser responsabilizados pelas suas intervenções nesse campo.
O conjunto dos três pontos já referidos criou a Bioética que nasceu em 1970, o que conduz à necessidade de uma nova disciplina que aprofunde o conhecimento da Biologia e faça pensar estes problemas sob uma perspectiva de reflexão ético-cultural.
NOVO HUMANISMO BASEADO NA SOLIDARIEDADE
A Bioética, ainda de acordo com o Dr. Daniel Serrão, não tem fundamento jurídico, nem religioso. Onde se poderá encontrar então o seu fundamento?
Em primeiro lugar, o homem é um animal cuja evolução nos trouxe desde os antropóides (de há 600 mil anos atrás) até aos nossos dias, sendo que a inteligência reflexiva existente nos homens os distingue de todos os outros animais, igualmente inteligentes.
A Ética nasce então, quando reconhecemos que os outros são exactamente iguais a nós.
O Novo Humanismo deverá ser o da Solidariedade Humana, condição única que poderá levar à sobrevivência da Humanidade. Por conseguinte, o primeiro princípio da Bioética é o do respeito pela própria estrutura biológica de cada ser vivo.
Isabel A. Ferreira