… mas de uma espantosa actualidade, o que significa que, em 123 anos, Portugal manteve-se quase estagnado, no que que respeita à evolução de mentalidade.
Um fabuloso texto, numa escrita portuguesa escorreitíssima.
Qualquer semelhança com a actualidade portuguesa (2019) não é mera coincidência, é a realidade mais pura, mais dura, mais vergonhosamente vigente...
«Um povo imbecilizado e resignado, humilde e macambúzio, fatalista e sonâmbulo, burro de carga, besta de nora, aguentando pauladas, sacos de vergonhas, feixes de misérias, sem uma rebelião, um mostrar de dentes, a energia dum coice, pois que nem já com as orelhas é capaz de sacudir as moscas; um povo em catalepsia ambulante, não se lembrando nem donde vem, nem onde está, nem para onde vai; um povo, enfim, que eu adoro, porque sofre e é bom, e guarda ainda na noite da sua inconsciência como que um lampejo misterioso da alma nacional, reflexo de astro em silêncio escuro de lagoa morta. [...]
Uma burguesia, cívica e politicamente corrupta até à medula, não descriminando já o bem do mal, sem palavras, sem vergonha, sem carácter, havendo homens que, honrados na vida íntima, descambam na vida pública em pantomineiros e sevandijas, capazes de toda a veniaga e toda a infâmia, da mentira a falsificação, da violência ao roubo, donde provem que na política portuguesa sucedam, entre a indiferença geral, escândalos monstruosos, absolutamente inverosímeis no Limoeiro.
Um poder legislativo, esfregão de cozinha do executivo; este criado de quarto do moderador; e este, finalmente, tornado absoluto pela abdicação unânime do País.
A justiça ao arbítrio da Política, torcendo-lhe a vara ao ponto de fazer dela saca-rolhas.
Dois partidos (***) sem ideias, sem planos, sem convicções, incapazes, vivendo ambos do mesmo utilitarismo céptico e pervertido, análogos nas palavras, idênticos nos actos, iguais um ao outro como duas metades do mesmo zero, e não se malgando e fundindo, apesar disso, pela razão que alguém deu no parlamento, de não caberem todos duma vez na mesma sala de jantar.
Guerra Junqueiro, in 'Pátria (1896)'
Guerra Junqueiro (Freixo de Espada à Cinta, 15 Setembro 1850 — Lisboa, 7 Julho 1923) foi alto funcionário administrativo, político, deputado, jornalista, escritor e poeta português. Poeta panfletário, confidencial, satírico e também religioso, a sua poesia ajudou a criar o ambiente revolucionário que conduziu à implantação da República.
Guerra Junqueiro, in 'Pátria' (1896)»
Fonte:
https://portugalglorioso.blogspot.com/2014/04/historia-de-ontem.html
(***) Leia-se (à luz da actualidade) PS e PSD (PSD/CDS) que, alternadamente, se mantêm no Poder, mantendo Portugal em banho-maria, e o povo, entorpecido com as mentiras que lhe são contadas com um ar tão sério, tão sério que até passam por verdades. (I.A.F.)