A suspeita e a preocupação de José Mendonça da Cruz, é também a minha suspeita e a minha preocupação.
A ver vamos.
O "filme" já começou.
Já temos um infectado confirmado. Talvez a caminho de dois.
E os muitos que estão confinados em casa, segundo recomendação de suas excelências, a fazerem autoterapia, para não se agitar as águas?
Se não fosse trágico, seria hilariante o que se tem passado com os "suspeitos", trancados nos lugares mais improváveis, sem que os "serviços" funcionem como deviam funcionar, em casos destes.
Mas não podemos esquecer-nos de que estamos em Portugal.
Isabel A. Ferreira
«Assustador»
por José Mendonça da Cruz, em 29.02.20
«Quando constato que o coronavírus alastrou a toda a Europa e em Portugal ninguém sabe de caso nenhum, eu preocupo-me.
Quando ouço os discursos patéticos e supostamente apaziguadores da directora geral da saúde, eu sinto-me tudo menos apaziguado. Quando verifico que se refere a China, Itália, Irão, e fala de «cenarizações», e manda não andar aos beijos, e descreve com ligeireza eventuais mutações e características do vírus, mas de Portugal não tem ideia, fico preocupado.
Quando ouço o inefável primeiro-ministro e a ministra da saúde inenarrável dizerem que o vírus vem de certeza, mas por enquanto andam claramente aos papéis, fico receoso.
Quando leio que uma senhora suspeita de infecção ficou fechada horas na casa de banho de um centro de saúde, e depois foi mandada embora porque não havia instruções da DGS para fazer análises, não sei se deva rir se praguejar.
Quando compreendo que há casos suspeitos, mas diagnóstico nenhum, e mais casos suspeitos, mas sabe-se lá; quando comparo a gravidade dos alertas da OMS e o tom confuso e atrabiliário das advertências que se fazem cá, fico com a suspeita de que as coisas cá vão correr muito, muito mal.»
Fonte:
https://corta-fitas.blogs.sapo.pt/assustador-6879812?imt=ssc&view=34413380#t34413380
«A viverem na Grande Lisboa, as guineenses Aissatu, Cadidja, Filó e Yasmin contam como a luta contra a mutilação genital feminina está longe do fim. Uma questão de direitos humanos. De igualdade. E de saúde»
Teresa Campos
(Origem da foto: Internet)
«Eu me ergo!
Pela menina que fui um dia,
Pela infância interrompida por um amanhã em que o Fanado deixe de ser o nosso fado»
***
Poema de Rita Lé, lido na cerimónia do Dia da Mulher Guineense, na Casa da Achada, Mouraria, a 30 de Janeiro.
A voz a estas mulheres.
Oiça-se Aissatu Camará, a lembrar-se do dia em que a tia pedira, e a mãe deixara, que a levassem para a barraca, na mata, onde enfiam as meninas que vão ao sacrifício, ao fanado.
«Só me disse para não fugir e que, se tentasse, podia morrer." Tinha uns seis ou sete anos. Ficou naquela mata durante três meses, a dormir no chão e à chuva. Era tempo de férias, no verão tropical sempre cheio de intempéries. Quando chegou a sua hora, obrigaram-na a ir para a barraca.
Aissatu conta que chorava com todas as suas forças. "Fiquei sem voz." Não lhe valeu de muito. Pouco tempo depois, a mãe imigrava, deixando-a ao cuidado dessa tia, em Bissau, até ao início da adolescência.
Com as mãos trémulas, e a garganta embargada, não esconde que a invade uma série de sentimentos contraditórios. "A minha tia só me mandou para aquilo por causa da festa." Ainda tentou desculpar a mãe. Mas, na verdade, nem o tempo que passou, Aissatu tem hoje 27 anos, a mãe 47, a tia 54, apaziguou a mágoa entre as mulheres da família.
«Continuam a defender que é bom, para se ficar pura", desespera a jovem, que só há pouco tempo confessou o seu drama às melhores amigas.
«Porque se não se fala, nunca mais acaba.» É uma realidade profundamente enraizada no mundo africano, que ultrapassou fronteiras, galgou continentes e hoje se cruza connosco, na rua apesar de, desde 1979, a Convenção para a Eliminação de Todas as Formas de Tortura contra as Mulheres ter sido ratificada por 185 países. No globo, o drama atinge proporções gigantescas: em 2010, a Organização Mundial de Saúde (OMS) estimava que já tivesse vitimado mais de 100 milhões de meninas, em 28 países (entre estes, a Guiné-Bissau). Mas, segundo a mesma OMS, Portugal e o resto da Europa são actualmente países de risco, com a prática a reinstalar-se devagarinho, devido aos fluxos migratórios.
Sabemos que a sexta maior comunidade de estrangeiros em Portugal é a da Guiné. Segundo o Censo de 2011, há 7,2 mil milhões de mulheres guineenses. Não se sabe quantas sofrem escondidas: decorre, até ao final do ano, um estudo para conhecer a prevalência do fenómeno, coordenado pela Comissão pela Igualdade de Género. Mas, segundo o retrato que se segue, entre a comunidade feminina que veio da Guiné, uma grande maioria será vítima de uma prática cercada de silêncios e vivida em segredo. Fanado, s.m., apertado, muito justo. Mas também amputado, mutilado. Ritual de iniciação na Guiné Bissau, frequente tanto nos bairros da periferia dos centros urbanos como nas aldeias. É executado sempre em terreno sagrado, com a aceitação da divindade.
Ali, uma mãe africana não é uma malfeitora, manda as filhas para a festa porque é um costume. Na comunidade, todas as mulheres são excisadas.
Em questão, diz a definição da OMS, estão todas as intervenções que envolvem a remoção, parcial ou total, dos órgãos genitais femininos externos ou neles provoquem lesões, por razões não médicas. Procede-se ao corte total ou parcial do clítoris e do seu capuz, a raspagens, perfurações, cortes. É realizada por fanatecas, as excisadoras, de alto estatuto na comunidade. Os alvos são raparigas entre os 4 e os 12 anos mas podem ser meninas mais novas. Sejam pedaços de vidro, sejam canivetes, lâminas de barbear, tesouras ou navalhas, tudo serve para cortar.
A esterilização dos materiais não faz parte da intervenção, a anestesia não é uma prática corrente. A excisão é socialmente compreendida como um ritual de passagem à idade adulta, que permite a integração social da menina e fortalece a coesão do grupo a que pertence.
Isso vê-se na festa, a celebração que se segue, e nas oferendas, em bens ou dinheiro.
A excisão tem também, como objectivo, o controlo da sexualidade da mulher. Em sociedades onde o prazer feminino não é permitido e a virgindade é valorizada, a cicatrização pós-excisão, fechando o acesso ao canal vaginal, acaba por funcionar como um "selo de garantia" extra para os homens. É também o único tipo de violência de género feita pelos familiares, convictos de que assim, mais tarde, as meninas não serão ostracizadas. Estão convictos de que é um acto de amor. Independentemente das hemorragias, das infecções e, tantas vezes, da morte...
Autoconsciência
Apostado em mudar este mundo, um grupo de jovens ganha força em vários países europeus: Reino Unido, Irlanda, Holanda e Portugal.
«Queremos ser agentes da mudança», assume Diana Lopes, 28 anos, coordenadora, na Associação para o Planeamento da Família, de projectos para esta área.
«Queremos dar ferramentas às mulheres para que o fanado não se torne uma desculpa para conquistar poder na comunidade ou para sobreviver.»
A história de Cadidjatu Baldé, 28 anos, já reflecte uma mudança. Há três anos em Portugal, não esquece o grande marco da sua infância.
Foi uma avó que a excisou. Quando o assunto se tornou tema nacional, há pouco mais de uma década, o pai chamou-a a ela e às irmãs e pediu-lhes desculpa. "Disse que não sabia bem como era, que, se soubesse, nunca teria aceitado." Agora, na sua família, mais ninguém será excisado as sobrinhas, pequeninas, já foram poupadas. «Mas a mentalidade de muita gente ainda não mudou...»
Neste activismo crescente, uma das vozes mais destacadas é a de Filomena Djassi, que já cresceu em Portugal mas nem por isso escapou à tradição: vem de uma família em que corre o sangue dos fulas e dos mandingas, etnias adeptas do fanado, com a ideia de proteger os filhos e garantir a sua sobrevivência.
A fazer um doutoramento, Filomena não quer falar de dramas, mas do caminho de saída, do apoio às mulheres encaminhando-as para a escola.
Para isso, criou a Musqueba, movimento que visa a educação e valorização de mulheres africanas nos contextos onde se inserem.
«Temos de lhes dar o poder de comandarem a sua vida, de assumirem a responsabilidade do seu sustento.» Esse é um ponto muitas vezes esquecido: «Passar por uma excisão tem consequências físicas e psicológicas mas também sociais.» É por isso, defende, que há mulheres a trabalhar nas Nações Unidas que são oficialmente contra a prática mas cujas filhas são mutiladas. Filomena não desarma: «Não podemos ficar indiferentes a este holocausto silencioso.» O primeiro programa português contra a mutilação genital foi lançado há cinco anos.
Em Fevereiro passado, um outro rosto entrou na campanha. É o de uma rapariga que segura um cartão em que se lê: "Muda®". Chama-se Yasmin Sissé e tem 20 anos. Há 12 que não vai à Guiné. Na família, o fanado era normal. Ela prefere falar do assunto na terceira pessoa.
Mas não hesitou em dar a cara: "Sou contra, como sou contra cortar o dedo a uma pessoa. É algo que faz parte do nosso corpo.»
Tal como Filó, Yasmin sabe que a tradição não tem nada de religioso: «Há pessoas que inventam muitas coisas, são como os terroristas dizem que é tudo em nome de Deus, mas não está no Corão.» Ambas também sabem que, para muitas mulheres, ir contra a tradição significa rejeição.
Peças-chave
«E como vivemos, se formos rejeitadas?» O repto é lançado por Anabela Rodrigues, do grupo do Teatro do Oprimido, na festa da Casa da Achada, no Dia da Mulher Guineense.
A peça chama-se «Assim, quem vos vai querer?» Da plateia, Adiato responde prontamente: «Fazemos uma sociedade de rejeitadas » e é chamada ao palco. Primeiro, veste a camisola, uma t-shirt branca com a frase Muda® a Realidade da Excisão.
Depois, atira: «Sou uma mulher livre, faço o que quiser com o meu corpo». Adiato Baldé, 24 anos, vice-presidente da Associação de Estudantes da Guiné-Bissau em Lisboa, é filha da presidente do Comité para o Abandono de Práticas Tradicionais Nefastas à Saúde da Mulher e da Criança, na Guiné-Bissau.
Está muito atenta à comunidade residente em Portugal: «Muitas meninas vão de férias e, no regresso, acabam no médico, porque estão com infecções.» Em 2009, Portugal assumiu, formalmente, um compromisso relativamente à eliminação da excisão, inscrito no Plano Nacional para a Igualdade Cidadania e Género. Esses votos são renovados, hoje dia 6, Dia Internacional da Tolerância Zero à Mutilação Genital Feminina.
Tanto na acção de prevenção prevista para a Escola Secundária da Baixa da Banheira, na área do projecto Informar para a Sensibilização e Intervenção (ISI) contra a Violência de Género, promovido pela associação Uma, como na cerimónia no Hospital Amadora-Sintra para alertar os profissionais de saúde.
A estas iniciativas, junta-se a campanha Pelo fim da Mutilação Genital Feminina, conduzida pela Amnistia Internacional a partir de Bruxelas, como pressão sobre as instituições europeias para providenciarem protecção às mulheres e crianças que fogem dos seus países, com medo de serem mutiladas.
Para já, sabemos que os homens são peça-chave: se o fanado deixar de ser pré-requisito para o casamento, tende a desaparecer.
Ussumane Mandjam, 33 anos, já decidiu: «As minhas filhas não serão excisadas.» Foi essa postura que fez a diferença, em casa de Fatumata Djaló, 54 anos, há 23 a viver na linha de Sintra, em tempos uma defensora da prática.
Quis excisar a filha, o marido não deixou.
Hoje sabe que «não há razão para cortar».
É verdade que tanto cá como na Guiné, onde o Parlamento assinou uma lei específica em 2011, a prática é crime. É punida com penas dos oito aos dez anos de prisão. Mas quem está na luta insiste que só a lei é insuficiente: 80% da população guineense é analfabeta e sente as campanhas como um ataque às suas convicções mais profundas. Fica o alerta de Miguel Areosa Feio, da Associação para o Planeamento da Família: «Passou a ser feito com crianças muito pequeninas, bebés, e de uma forma ainda mais escondida.»
Fonte:
http://visao.sapo.pt/quando-a-tradicao-e-um-crime=f768518