A tua vida poderia ter sido breve, mas perdura na obra que deixaste.
Eras Poeta, e os Poetas são imortais.
Hoje quero celebrar-te e já não tenho palavras, porque ao longo dos últimos 15 anos, desde que partiste para as estrelas, em 22 de Novembro de 2008, gastei todas as palavras para te homenagear.
Hoje vou repetir-me.
Mas que importância tem isso, desde que esteja a celebrar-te?
***
A António Monteiro dos Santos devo o meu conhecimento e afecto que me ligou a Vila do Conde, à sua História, aos seus Poetas, a José Régio e família (o irmão Apolinário, e sobrinhos com quem privei). A Vila do Conde, para onde fui dar aulas, no ano lectivo de 1973/74, na Escola Frei João de Vila do Conde, era ainda Bacharel.
Mais tarde, já como Correspondente dos Jornais «O Primeiro de Janeiro» e «O Comércio do Porto» conheci António Monteiro dos Santos, na Biblioteca Municipal de Vila do Conde, onde fui buscar o conhecimento das coisas daquela cidade.
Ele era um poço de saber. Um excelente paleógrafo. Pedi-lhe ajuda para que me introduzisse na História da cidade, da sua gente, dos seus hábitos, e o que A. Monteiro dos Santos me ensinou fez-me apaixonar por «Vila do Conde espraiada/entre pinhais, rio e mar!» (José Régio)
Depois vieram os seus livros de Poesia: «Por Ti Pintei a Lua» e “Se Eu Fosse Dono da Vida», sob o nome de Dário Marujo, «um nome que cheira a docas, um nome que cheira a cais», um nome que vem do tempo em que era Marinheiro, filho de um mar de gaivotas»…

A. Monteiro dos Santos, no Diana Bar (Póvoa de Varzim), à mesa onde José Régio costumava sentar-se e escrever os seus poemas.
Até sempre, meu amigo!
Isabel A. Ferreira
Era o dia 22 de Novembro de 2008.
E o Poeta morreu.

Retrato de A. Monteiro dos Santos, por TEREZA
Na véspera tinha estado no Hospital de Vila do Conde a visitá-lo. A última visita. O último adeus. Ele estava numa espécie de coma, já envolto naquela luz que orienta as almas no caminho até ao outro lado.
Não sei se me ouviu, mas despedi-me dele com “um até um dia, amigo, e que encontres a serenidade que tanto procuraste em vida”.
É sempre muito triste despedirmo-nos de alguém que parte.
A António Monteiro dos Santos devo o meu conhecimento e afecto que me ligou a Vila do Conde, à sua História, aos seus Poetas, a José Régio e família (o irmão Apolinário, e sobrinhos com quem privei). A Vila do Conde para onde fui dar aulas, no ano lectivo de 1973/74, na Escola Frei João de Vila do Conde, era ainda Bacharel.
Mais tarde, já como Correspondente dos Jornais «O Primeiro de Janeiro» e «O Comércio do Porto» conheci António Monteiro dos Santos, na Biblioteca Municipal, onde fui buscar o conhecimento das coisas de Vila do Conde.
Ele era um poço de saber. Um excelente paleógrafo. Pedi-lhe ajuda para que me introduzisse na História da cidade, da sua gente, dos seus hábitos, e o que Monteiro dos Santos me ensinou fez-me apaixonar por «Vila do Conde espraiada/entre pinhais, rio e mar!» (José Régio).
Depois veio a Poesia: «Por Ti Pintei a Lua» e “Se Eu Fosse Dono da Vida», sob o nome de Dário Marujo, «um nome que cheira a docas, um nome que cheira a cais», um nome que vem do tempo em que era Marinheiro, “filho de um mar de gaivotas»…
É de “Se Eu Fosse Dono da Vida”, com uma pintura (de Carlos Touguinhó) o poema «Até Onde» com que direi uma vez mais: «Até um dia, amigo»…

«ATÉ ONDE»
Até onde nos vai levar
Esta poesia? Se for feia e agreste
Como rigoroso dia de Inverno
O mais certo é que nos leve
À profundeza do inferno.
Se dor quente como o Verão,
Se cair nos lábios como mel,
Se souber a mosto,
Se for radiosa,
Como o sol de Agosto,
Se for nossa
Se falar de nós,
Se for sem véu,
Há-de levar-nos ao céu.
***
Lamento que Vila do Conde ainda não tenha celebrado este seu Poeta.
Isabel A. Ferreira
Agonia Sampaio foi meu colaborador no tempo em que, e durante vinte anos, mantive no Jornal «O Comércio do Porto» um suplemento dominical infanto-juvenil, por mim criado, intitulado «Cantinho do Nicolau».
A partir de amanhã, Agonia Sampaio estará presente neste Blogue com os seus magníficos desenhos, por isso, aqui vos deixo uma pequena nota do seu percurso artístico, à laia de introdução...

Agonia Sampaio
António Manuel Agonia Sampaio, nasceu em Luanda a 16 de Março de 1970, residente na Póvoa de Varzim, começou desde muito cedo a desenhar. Aos 11 anos de idade fazia BD para distrair um primo seu, mas a partir dos 12 anos, na escola, na disciplina de Educação Visual teve de fazer uma banda desenhada e nunca mais parou. A partir de então começou a somar prémios a nível nacional. Aos 16 anos ganhou no Seixal o 3º prémio de um concurso a nível nacional; aos 17 ganha vários como por exemplo o do Comicarte do Porto (2º Prémio ex aequo); o 1º Prémio do Clube Português de BD de Lisboa, e um 1º prémio num concurso em Espanha.
Aos 17 anos é convidado a colaborar (durante 14 anos) no Jornal «O Comércio do Porto» no suplemento «O Cantinho do Nicolau», criado pela autora do Blogue «Arco de Almedina», Isabel A. Ferreira, e, nesse ano, junta o Troféu do Rotary Club Póvoa de Varzim, "O mais da BD".
Em 1990 e 1991 vence por 2 vezes o prémio Rafael Bordalo Pinheiro, e em 1992 o 1º prémio em Moura, juntamente com várias menções honrosas. Para além da colaboração em vários jornais (O Comércio do Porto, Público, Jornal de Notícias,, O Primeiro de Janeiro, A Voz da Póvoa, O Comércio da Póvoa e Mankicu (Angola), colaborou em várias exposições nacionais e internacionais.
Tem oito livros publicados, destacando-se "A História da Cerejinha"; «A partida do Zequinha"; "Á descoberta do arquivo"; "A maior prova de Amor"... e quatro fanálbuns de edição de autor.
Ganhou o galardão jovem em 1995 na Tertúlia de BD organizada por Geraldes Lino (militante dos fanzines, crítico e estudioso de BD).
O nome de Agonia Sampaio vem incluído no dicionário de cartoons e autores de banda desenhada. Actualmente é colaborador em algumas editoras.
Os desenhos de Agonia Sampaio são, enfim, os "seus filhos".
Copyright © Isabel A. Ferreira 2009

Era um melancólico fim de tarde, já no longínquo mês de Setembro de 1991. Havia chovido e a rua encontrava-se cheia de poças de água, onde se reflectiam as nuvens.
Eu descia a Rua da Junqueira, na Póvoa de Varzim, em direcção a casa, tentando não molhar os pés, pois calçava sapatilhas. Seguia distraída com o leve burburinho que me rodeava.
De súbito, fui despertada por um assobio harmonioso, cristalino, fascinante, e depois uma voz doce e ao mesmo tempo vigorosa: «Ne me quitte pas, ne me quitte pas, ne me quitte pas...».
Segui aqueles sons, já completamente rendida à perfeição daquela interpretação, que não sendo do inigualável Jacques Brel, deveria ser de alguém com um espírito semelhante, ou sofredor de um mal de amor.
Uns passos mais adiante, deparei-me, então, com o dono daquela voz, que me fascinou, rodeado de uma pequena multidão. O som que me entrava na alma pregou-me ao chão, e ali fiquei, com os pés enfiados numa poça de água, escutando o Trovador, a interpretar Brel, magnificamente.
Que importava a rua, cheia de poças de água! Que importava o chão, o cimento, os ladrilhos feios, se estava diante de um Trovador, dos autênticos, daqueles que cultivam a música e a poesia, com amor!
Que importava a fealdade que me rodeava se eu tinha diante de mim a arte personificada?
Esqueci-me de tudo. E ali fiquei cativa da voz daquele menestrel do século XX, até que um aguaceiro me despertou para a realidade.
Havia descoberto um artista? Não resisti e aproximei-me do jovem, que entretanto se abrigara debaixo do toldo de uma ourivesaria. Precisávamos de conversar, disse-lhe.
Soube então, logo ali, que outros antes de mim o haviam descoberto: já fora duas vezes à televisão (aos programas «Às Dez» e «Bom Dia»); já saíra nas páginas d’ O Primeiro de Janeiro, do Diário de Coimbra e do Miroir de Paris.
Sim, era possível, porém, os “outros” haviam descoberto o cantor de rua, o goliardo leigo (que ele dizia não ser).
A mim coube-me descobrir, para além daquele olhar azul, límpido e pleno de nostalgia, o verdadeiro, o autêntico Trovador. O mensageiro da liberdade, da fraternidade, da igualdade. O arauto da paz, do amor, da paixão, mas também da raiva e da revolta contra as injustiças de uma sociedade imensamente desequilibrada e desarmoniosa.
Entrámos numa pastelaria, enquanto chovia, e foi aí que, subtilmente, fui entrando no mundo de Jack Deska, o Trovador.
Jack Deska nascera em Villepinte, uma pequena aldeia perto de Paris, em 1 de Maio de 1963. Depois de uma infância um tanto atribulada, decidiu correr mundo, levando consigo a sua viola (violão ou guitarra clássica), um amplificador e a sua arte de rua.
Um dia descobrira que a música era a chave para a felicidade e para a comunicação. Tímido, por natureza, sem a sua viola não conseguia comunicar.
Depois de ter vivido em grandes cidades como Amesterdão e Berlim, Jack passou por Ibiza, onde um agente da lei lhe sugeriu que “desandasse” dali e fosse para o «lixo da Europa», isto é, Portugal.
O Trovador pôs-se então a caminho. Quis conhecer o “lixo” de que lhe falara o agente. E foi nesse “lixo” (que Jack considerou o paraíso) que se fixou, durante cinco anos. Tinha vindo para ficar. Viveu durante algum tempo na “Pensão do Norte”, no Porto. Gostava do nosso país, porém, sentia que os jovens portugueses eram psicologicamente velhos.
Para muitos deles, a liberdade tinha o significado de “libertinagem”, o que para Jack era extremamente lamentável.
O Trovador cultivava a liberdade, tal como os pássaros. Não com asas físicas, mas com as asas do pensamento. Ele não era um marginal, só porque cantava na rua. Nem sequer um mendigo, pois nada pedia, quem quisesse atirava-lhe uma moeda para a caixa da viola.
Jack Deska era, sobretudo, um sonhador. Um idealista. Temia o sucesso (se algum dia viesse a tê-lo), porque a sua privacidade ficaria comprometida. Por isso, preferia as ruas para cantar Jacques Brel, Joe Dassin, Edith Piaf, Gilbert Becaud e as suas próprias composições. O sucesso talvez o privasse de ir comprar o seu queijo, todas as manhãs, um ritual que Jack não dispensava. E isso amedrontava-o.
Gostaria, sim, como qualquer cantor, de gravar um CD. E um dos seus sonhos era actuar no palco do Coliseu do Porto, onde Rui Veloso (de quem era um grande admirador) já actuara tantas vezes.
Eu, como sabia o que era sonhar e realizar sonhos, se ninguém o fizesse antes de mim, levá-lo-ia eu a actuar no Coliseu, num dos espectáculos que, anualmente, lá organizava para o público mais jovem. Era um sonho que o Trovador veria realizado. Prometi-lhe. Ele delirou.
Contudo, o seu sonho ficou por realizar. Morreu poucos meses antes de subir ao palco do Coliseu, como já estava programado.
Jack Deska tinha um companheiro: o seu inseparável ratinho branco, a quem carinhosamente chamava o Trovadorzinho, que, aninhado junto ao seu pescoço, de olhinhos fechados, ouvia, como que hipnotizado, a actuação do seu amigo, e a sua voz de menestrel e o seu fascinante assobio, semeando arte pelas ruas.
Um Trovador atravessou aquela tarde. Foram muitos aqueles que o viram e ouviram. Porém, de entre essa multidão, que lhe ia enchendo a caixa da viola com moedas, talvez ninguém tivesse se apercebido de que estava diante de uma alma poética, de um sonhador, de uma mensageiro da arte, e não de um simples “mendigo”, como o consideraram.
Um Trovador passou pela cidade, num fim de tarde, no já longínquo mês de Setembro de 1991 e, nesse dia, a arte enfeitou a rua...
***
Depois daquele encontro, eu e o Jack tornámo-nos grandes amigos. Vivemos impensáveis peripécias kafkianas, numa esquadra de polícia, onde estive detida por uns escassos dez minutos, por defender a Arte do Trovador.
Do Trovadorzinho, para quem o Jack arranjou uma companheira, fiquei com a recordação do meu Ratolinha, igualzinho ao pai, e também muito amoroso, que gostava de partilhar comigo a maçã do meu pequeno- almoço, e aninhar-se no meu pescoço, enquanto eu escrevia.
Um dia, Jack Deska conseguiu comprar um carro velho, para mais facilmente poder deslocar-se pelo país. Perdi-lhe o rasto, durante uns dois anos. Tinha ido para a Alemanha, de onde me enviou um postal, a dizer de si e das suas mágoas.
Passou-se algum tempo mais, já não me lembro quanto, descia eu a mesma rua, também num fim de tarde, talvez no ano de 1997, e tornei a ouvir um assobio, que me era familiar. Segui-o, como outrora. E lá estava o Jack, numa esquina, a cantar Et si tu n'existais pas, de Joe Dassin. Estava mais magro, mais velho, mais esfarrapado, mais amargurado.
Quando me viu, parou de cantar Dassin e passou imediatamente para Brel, com Ne me quitte pas... A minha canção preferida. E ali fiquei novamente pregada ao chão, rendida à voz e às palavras do Trovador.
Fomos depois lanchar à “nossa” pastelaria, onde me contou as suas desventuras por terras alemãs. Andava perdido. Fora para esquecer o seu amor impossível. Um músico de rua não convinha à “professorinha” que ele amava. A família dela era absolutamente contra aquele romance, e estávamos numa época em que o peso de uma sociedade conservadora impedia um amor assim, tal como no tempo de Romeu e Julieta.
Porém, a saudade da sua amada trouxera-o de volta a Portugal. Tinha esperança, agora que os tempos eram outros. Mas não resultou, uma vez mais. E uma vez mais ia partir. Desta vez para sempre. Confidenciou-me. E aquela foi a última conversa que tivemos, e a última vez que o vi.
Partiu para Villepinte, sua terra natal, na sua carripana.
Mais um tempo se passou, sem notícias. No dia 10 de Outubro de 1998, já ao fim da tarde, recebi um telefonema da sua “professorinha” (como ele amorosamente tratava a sua amada) a contar-me da sua morte, dias antes, no dia 7 daquele mês.
Desta vez, vinha de vez, para ficar com ela. Iam viver juntos em Coimbra. Ao atravessar Espanha, porém, numa auto-estrada, Jack sentir-se-ia mal e encostou o carro na berma, não muito distante de um Posto de Gasolina. Alguém reparou que aquele carro, já estava ali parado há demasiado tempo, e foram averiguar.
Jack Deska estava morto, debruçado sobre o volante.
A rua fora o seu lugar de vida. A estrada o seu lugar de morte. Talvez a emoção de vir, finalmente, ao encontro do seu grande amor, lhe provocasse o enfarte de miocárdio que o vitimou.
Devido à burocracia e à recusa da sua família em que fosse enterrado em Coimbra (como ele um dia preconizara, para ficar mais perto da sua amada) o seu enterro realizou-se quase um mês depois.
O féretro foi acompanhado ao som das canções que Jack celebrizara em vida e que o grupo de amigos, que o velou, cantou em sua homenagem, a caminho de uma campa, onde ficou sepultado, no Cemitério da Conchada, em Coimbra.
***
Por que evoquei, Jack Deska?
Porque foi num dia assim, como o de hoje, que o conheci. E hoje, ao descer aquela rua, não ouvi o seu assobio, nem aquele Ne me quittes pas, cantado com o coração em chamas, tal como Jacques Brel o cantava, por sofrerem ambos do mal de amor.
Além disso, este é um modo de manter vivo um Trovador excepcional, condenado ao esquecimento, por temer o sucesso, que o impediria de ir comprar o queijo, que partilhava com o seu Trovadorzinho, todas as manhãs...
Isabel A. Ferreira