Sexta-feira, 16 de Fevereiro de 2024
... este texto que lhe dediquei, na passagem do seu 80º aniversário, em 2007, e que aqui trago à luz, simplesmente porque quero repetir tudo o que lhe escrevi, para dizer da minha admiração e do meu afecto.
DEIXANDO FLUIR A VIDA…
Oitenta anos, Luísa Dacosta!
Uma vida.
Mas o que são oitenta anos, quando se tem a eternidade urdida numa obra, escrita com palavras feiticeiras, que nos prendem, como correntes de afecto?
Oitenta anos, vividos intensamente, sempre em busca de algo que lhe foge, perseguindo sonhos por sonhar, procurando uma luz que nunca viu, trilhando caminhos escarpados, com o Marão à frente, e depois descida a serra, olhar alongado num mar de águas generosas, que lhe mostrou como das palavras fazer barcos, que nos levam a muitos lugares.
Contudo, a busca e a fuga, o sonho e a descoberta de mundos secretos, nos lugares da infância, ou em povoados raros, como A-Ver-o-Mar, não farão parte do percurso daqueles que nascem com a grafia das palavras já desenhadas no seu destino?
Luísa viveu sempre suspensa por um fio frágil, sobre grandes abismos, que foi ultrapassando, em voos de águia, grifando os seus sonhos nas margens desses abismos, para que não se perdessem, e depois seguiu em frente, como se o futuro não existisse. O que diz da sua perseverança e devoção à liberdade, uma das suas mais amadas circunstâncias.
O que poderei dizer de uma escritora de quem já disse tudo o que tinha para dizer, num livro que lhe dediquei, por amor às suas palavras, lançado precisamente há um ano, no dia do seu 79º aniversário, no Correntes d’Escritas, na Póvoa de Varzim?
Em «Luísa Dacosta – «no sonho, a liberdade…» – uma viagem pela sua vida, pela sua obra e pelo seu pensamento – prestei o meu tributo àquela que é reconhecida, pelos estudiosos, como uma das maiores estilistas da Língua Portuguesa, do século XX, e, no entanto, tão mal-amada pelos seus editores, tão pouco divulgada, nos órgãos de comunicação social, tão afastada das montras das livrarias, o que constitui um verdadeiro insulto à Cultura culta.
Ainda assim, todas as palavras já foram ditas, sublinhando a sua qualidade literária e a sublimação que nos provoca a leitura das suas obras.
Entrei no universo de Luísa Dacosta pelos anos 80, depois de ler «A-Ver-o-Mar – Crónicas», um livro que me foi oferecido por um amigo comum, Manuel Ferreira Lopes, então director da Biblioteca Municipal da Póvoa de Varzim, falecido recentemente.
Manuel era o mais dedicado amante da prosa de Luísa, e conseguiu transmitir-me esse entusiasmo, ficando eu, também prisioneira das palavras luminosas da autora de «Nos Jardins do Mar», talvez o livro mais representativo da sua prosa poética, um mergulho em águas míticas, onde um amor verdadeiro, ainda que improvável, acontece…
Um dia, Manuel apresentou-me Luísa, e a partir de então formámos uma tríade, assente em afectos e partilhas. Com Manuel, entrei pela primeira vez no ninho das palavras de Luísa, o moinho de A-Ver-o-Mar, onde os fotografei em amena cavaqueira, depois de um almoço delicioso, confeccionado pela própria Luísa, aliás, uma excelente cozinheira – polvo frito, à moda de Trás-os-Montes, província da sua origem.
Depois de almoçar, percorremos, os três, a praia, vazia, imensa, com o mar a embalar-nos os sentidos. A conversa fluiu e de tudo um pouco falámos. E a trindade fez-se una.
Depois dessa primeira vez, muitas outras vezes regressei ao moinho, e de todas as vezes, consenti-me confundir com as personagens de Luísa, para melhor me aninhar naquele útero, onde foram geradas as mais belas palavras com sabor a sal.
Foram muitas também as vezes que nós os três viajámos até à Galiza, hospedando-nos no Mosteiro de Oseira, onde Luísa aproveitava o silêncio e a paz dos claustros, para ultimar algumas das suas obras.
Com Manuel e o seu entusiasmo contagiante, acompanhei o percurso literário de Luísa a partir de 1984. Ambos partilhávamos o seu afecto e a paixão pelas suas palavras, e as nossas conversas, por muitas voltas que dessem, acabavam por envolver Luísa e a nossa grande mágoa de a ver tão distante das luzes da ribalta, enquanto outras autoras eram largamente divulgadas, dando-se relevo à mediocridade e à incultura, num país já de si tão pequenino.
No dia da morte de Manuel, em 14 de Agosto de 2006, Luísa e eu visitámo-lo na clínica onde foi internado de urgência. Não nos encontrámos, por escassos quinze minutos. Mas ambas estivemos lá, nos últimos momentos do nosso amigo comum. Ele não pôde ver-nos, com os olhos físicos, mas sentiu, com toda a certeza, a nossa presença, naquele quarto, onde a sua alma já pairava, recebendo o nosso adeus silencioso.
Escrevo estas linhas como se fossem também as de Manuel, para celebrar o seu 80º aniversário, Luísa Dacosta, como sei que ele gostaria.
Nunca se diz o suficiente sobre alguém que tem uma obra escrita com palavras cerzidas como quem faz renda de bilros.
Contudo, quero deixar aqui apenas o testemunho de um afecto e um recado, para si, querida amiga: quando se percorre tão intensamente, durante 80 anos, todas as voltas de um destino, e se escreve uma obra tão magistral, como é a sua, olha-se para o futuro como se ele fosse eterno, e para o passado como se ele começasse ontem, porque hoje, a vida é, se a deixamos fluir…
Isabel A. Ferreira
Luísa Dacosta:
N - 16 de Fevereiro de 1927, Vila Real
F - 15 de Fevereiro de 2015, Matosinhos
Quinta-feira, 7 de Maio de 2009
Copyright © Isabel A. Ferreira 2009
Lá... entre o Bosque e o Riacho, onde Deus vive...
Imagem do Monsterio de Santa María de Oseira (Oseira- Ourense)
Tudo começou com um convite de Manuel Ferreira Lopes*:
«Não gostaria de visitar o Mosteiro Cisterciense de Oseira, em Ourense, entre a montanha dourada dos carvalhais galegos, onde se respira a espiritualidade dos monges brancos que o habitam?»
Não hesitei. Como poderia eu recusar a oportunidade de fugir da selva de cimento e da incivilização que a caracteriza, e embrenhar-me num bosque, algures entre as montanhas, onde os riachos cantam como as aves; onde a vida se renova, em cada madrugada; onde as velhas pedras conservam o segredo dos tempos e a memória dos homens?...
A principal razão desta minha primeira visita a Oseira foi a de contactar a comunidade dos monges brancos e dela dar conhecimento, podendo com isso, despertar, porventura, novas vocações entre os jovens portugueses, para que seja possível activar um mosteiro cisterciense, no nosso país, onde existem tantos mosteiros em ruínas, ao contrário (para não ir mais longe) do nosso país irmão: a Espanha.
Estávamos em 1992.
Gostaria hoje de reviver o Encontro e a Descoberta, que fiz então, pois em tudo (como sempre) pensou Manuel Lopes, ao dar-me a conhecer a existência do Mosteiro de Oseira, cravado nos montes da Galiza.
Falar de Deus ou das coisas de Deus é concebível apenas quando nos abstraímos do mundo materialista tal como ele se nos apresenta hoje: vazio do tão necessário espiritualismo que nos conduz ao Supremo Ser, ao Criador de todas as coisas – visíveis e invisíveis.
Quem ainda não se deu conta de que Darwin começou o estudo da sua teoria da evolução, a partir precisamente do ponto em que Deus deu por terminada a Sua intervenção na criação do Universo?
Esse espiritualismo não o encontro eu nos templos que por aí abundam, onde o mundanismo, o materialismo e um exacerbado consumismo imperam, esvaziando toda a essência divina do sentimento religioso.
Deus, encontrei-O eu em Oseira, no sorriso dos seus monges; na sua simplicidade; na sua bondade; no seu labor de cada dia; nas suas orações; nos seus cânticos gregorianos; nos seus rituais litúrgicos; no seu absoluto despojamento das coisas supérfluas; na vida contemplativa que escolheram viver.
Deus, encontrei-O eu entre as velhas pedras do Mosteiro, resgatado das cinzas pelos próprios monges; nas águas cantantes do riacho que o contorna; no bosque dourado que lhe dá a sombra; nos prados verdes, onde tranquilamente o gado pasta; nas montanhas que o protegem dos ventos agrestes; e do silêncio que nos abraça com ternura.
Na verdade, estes monges cistercienses, afectos a São Bernardo, um dos reformadores da Ordem de Cister, representam os mais preciosos valores de que este nosso mundo conturbado necessita para sobreviver, segundo as regras humanas.
Com eles os crentes fortalecem a sua fé, e os não crentes são seduzidos por uma luz tentadora; pela profunda espiritualidade que deles emana, e por um silêncio que, inevitavelmente, nos catapulta para um mundo que não o terreno.
E foi lá, no seio daqueles monges brancos, entre o bosque e o riacho que, naquele tempo, encontrei Deus, há muito perdido de mim.
♥
Depois de ter assistido ao Ofício de Completas, à hora em que os monges celebram o cair da noite e o fim de um dia de labor, e, solenemente, entoam a Salvé Cisterciense, numa cerimónia que remonta ao Século XIII, colocando nas mãos da Santíssima Virgem o mérito de uma vida de total consagração a Deus; e antes de me recolher, Manuel Lopes, discretamente, levou-me para um canto do claustro e ofereceu-me um pequeno livro, para ler antes de adormecer, com a seguinte dedicatória: «À Isabel Ferreira, esta leitura elegíaca da tranquilidade espiritual que buscamos neste lugar de criativo e dulcificante silêncio…»
Foi então que descobri o poeta Alain Bosquet, no Mosteiro de Oseira, entre o conforto simples, despojado de luxo, da cela n.º 17, envolvida pelo místico silêncio, que aquelas velhas pedras tornam ainda mais misterioso.
«O Tormento de Deus» – assim se chamava o livro de poemas, que tinha entre as mãos, numa edição precisamente daquele ano, 1992, da Quetzal Editores.
Hoje, posso afirmar com grande lucidez, que nenhuma outra leitura poderia ter sido mais oportuna do que esta, àquela hora e naquele lugar. Tão bem o sabia Manuel Lopes!
Deus disse: Se tal vos repugna,
não acrediteis em mim,
mas ficaria feliz
se encontrásseis algum encanto
num ou noutro ser da minha lavra:
o búzio, onde dorme a música,
o plátano, que cresce para lá das estrelas,
o mar, que diz cem vezes: «Eu sou o mar».
Sinto-me muito humilde:
O meu universo não é mais belo
do que um poema perdido.
Eu acabara de descobrir um Poeta.
Um poeta que me falava do tormento de Deus – o ser mais solitário entre todos os seres que Ele próprio criou:
«Estou triste», disse Deus,
«por ter nascido adulto.
Jamais tive uma infância
nem alguma vez me permitiram
a descoberta de um mundo
já formado.
Não encontrei ninguém
a quem dizer: “Bom dia, meu pai!”
Nem “Minha mãe, como é que tem passado?”
Não me sinto sem culpa.
Todos eles – o sílex, a lava, a peónia,
o mosquito, o homem, o zéfiro,
exigiam que eu fosse activo e responsável.
Estou triste:
Falta-me um passado.»
Descobri um Poeta que me falava de um Deus inseguro:
Deus disse: «Entre mim mesmo e eu,
sinto que falta
uma espécie de doçura;
eis porque improviso um colibri,
algum orvalho,
uma ligeiríssima ilha,
um cântico de amor e um sonho intermitente
onde se passeia um outro deus.»
Descobri um Poeta, que ao falar do tormento de Deus, me falava do seu próprio tormento:
O homem queixa-se:
«Tu deste-me um corpo
mais pequeno que o corpo da montanha.
Deste-me um cérebro
com que não posso compreender-me.
Deste-me um coração
que não serve para me aceitar.
Deste-me palavras,
que são um luxo na minha desordem.
Deste-me um deus
o qual não sei quem é, se eu, se tu.»
E foi assim que, num mesmo dia, conheci os monges brancos de Oseira, que me devolveram a crença numa espiritualidade que eu julgava perdida; tive um encontro com Deus, entre aquelas velhas pedras do Mosteiro, rodeadas pelo riacho, o bosque, os prados e a montanha; e descobri um Poeta, no silêncio da cela onde pernoitei.
E o mundo pareceu-me então feito à medida da minha compreensão.
…
Hoje, «O Tormento de Deus» acompanha-me, para onde quer que eu vá.
É um livro de uma erudição belíssima, independentemente de se crer ou não em Deus. A sua leitura serena as nossas inquietações.
O seu tradutor (um excelente tradutor), Jorge Guimarães, diz de Alain Bosquet, na introdução: «A ideia de Deus habita esse espírito tanto no temor, como no ódio, como na indiferença». Bosquet «improvisa, discorre, ironiza, perdoa, comove-se e exalta-se, e tudo na mesma palavra, e tudo no mesmo olhar».
As palavras de Bosquet deslizam serenamente pela nossa alma e diz-nos da dimensão do imensurável… E Deus disse ao seu poeta:
«Eu escolhi-te para que me informes
sobre a minha identidade».
O poeta é travesso: escreve uma palavra,
depois uma segunda, depois risca-as.
Deus mostra-se apressado:
«Diz aos homens como hão-de venerar-me:
criei-te para isso.»
O poeta sorri, escrevendo rosa,
e azul, e tucano,
e silêncio, e deus.
E diz:
«Todas as palavras são intermutáveis.»
Alain Bosquet nasceu na Rússia, antes da Revolução, oriundo de uma família judaica da alta burguesia, imigrado depois em França…
* Manuel Ferreira Lopes, nascido na Póvoa de Varzim, foi Director da Biblioteca Rocha Peixoto, naquela cidade. Um grande homem do Saber e da Cultura, o qual lá… entre o Bosque e o Riacho, onde Deus vive, tal como eu, encontrou o caminho da espiritualidade cisterciense.
E entre o Poeta Alain Bosquet e o Homem de Cultura Manuel Lopes sinto-me aquela que crê e nada sabe, e ama as palavras e com elas traça um trilho em areias movediças, ainda desconhecido…
Isabel A. Ferreira
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Segunda-feira, 15 de Setembro de 2008
Copyright © Isabel A. Ferreira 2008
Repara: no mundo das plantas não existe Racismo. Nem Xenofobia. Todas as espécies coexistem pacificamente... Civilizadamente...(Foto Isabel A. Ferreira: Bosque do Mosteiro de Oseira - Ourense)
Todos os homens nascem iguais e morrem mais iguais ainda
Sabes o que distingue Homem de “omem”? É a letra H, claro.
Se me falas do Homem, evidentemente, escrevo a palavra com H de Humanidade (humano); com H de Hombridade (digno); com H de Honestidade (íntegro); e com H de Honra (distinto), para mim, qualidades de quem é civilizado.
Se me vens falar de alguém que não é civilizado, isto é, de um “omem”, então escrevo a palavra com O de obscuro (arrevesado); com O de oblíquo (vesgo); com O de obsoleto (desusado); e com O de obtuso (ignorante).
Mas se das palavras passarmos às pessoas, podemos claramente distinguir quem é quem, pelo seu modo de ser e de estar na vida, isto é, pelos seus actos. Um Homem, porque é humano, digno, íntegro e distinto, é sempre um Homem, assim como um cão é sempre um cão, independentemente da sua raça ou da sua origem.
Um “omem”, porque é arrevesado, vesgo, desusado e ignorante, não é um Homem, até porque se dedica, entre muitas outras iniquidades, ao culto do Racismo e da Xenofobia, assim como um verme se dedica a um cadáver.
E o que é isso de Racismo?
Trata-se da ideia de que umas raças de homens são superiores a outras raças também de homens, por isso, ao longo da história da humanidade os que se julgam “superiores”, vêm escravizando, exterminando, discriminando ou simplesmente desprezando quem dizem ser “inferiores”.
E a Xenofobia, o que é?
É antipatizar com pessoas ou com coisas estrangeiras, como se cada um, na terra do outro, não fosse estrangeiro também.
Ai gostas de viajar? E és xenófobo?!...
Ora que eu saiba, apenas os excrementos humanos e a malvadez dos “omens” são coisas inferiores e execráveis, por isso, passíveis de desprezo.
E em que é que um negro, um amarelo, um vermelho ou um branco diferem de ti? Pretendes uma resposta? No meu pensar, diferem na Humanidade, na Hombridade, na Honestidade e na Honra que eles têm e tu não tens, caso sejas apenas um “omem”.
Todos os Homens nascem iguais e morrem mais iguais ainda. Todos nascem nus do ventre da mãe. Para a sepultura uns vão mais vestidos do que outros, porém, quando se transformam em ossos, como distinguir, a olho nu, a ossada de um branco da ossada de um negro?...
Repara: no mundo das plantas não existe Racismo. Nem Xenofobia. Todas as espécies coexistem pacificamente... Civilizadamente...
in Manual de Civilidade (12 €)
Este livro pode ser adquirido através do e-mail: