Que um homem de cultura venha reduzir a questão ortográfica a uma “luta de religiões” é o que realmente indigna.
22 de Março de 2018, 7:30
Deu-se o ministro da Cultura ao trabalho, em entrevista recente (Diário de Notícias, 10 de Março), de falar do acordo ortográfico (AO). Não o fez de forma clara nem convicta, fê-lo contrariado, como se estivesse a tomar um remédio obrigatório, mas de difícil ingestão. E o que disse? Que o acordo não é perfeito. Ora isto transporta a mesma novidade do que anunciar, em pleno século XXI, que a Terra é redonda. Mesmo assim, não sendo perfeito, segue-o. Porquê? Ele explica (eis, na íntegra, o parágrafo onde o faz): “Não considero que este Acordo Ortográfico seja perfeito e penso que há coisas suscetíveis [sic] de melhoria, mas sendo o que se utiliza oficialmente achei que seria hipócrita não o fazer. Isto sem criticar outras pessoas, até porque não tenho ideias tão fortes sobre ortografia como elas. O acordo não é o melhor possível mas está vigente e segui-o para horror e espanto de muitos amigos. Não porque lhe tenha um grande amor, mas porque para mim a ortografia é uma convenção e não considero que a anterior seja a maior das maravilhas. Tudo se pode aperfeiçoar, é a minha opinião. Enquanto estiver em vigor vou segui-lo e lamento os meus amigos que consideram isto uma traição. Há como que uma luta de religiões em torno do acordo, só que eu não tenho religião. Acredito que esta opção vá ser muito criticada, mas é assim.”.
Convém explicar que tal justificação se deve, não a comunicados do seu ministério ou a qualquer discurso oficial, mas a um livro de poesia dele próprio. Nem sequer um livro novo, escrito agora, mas uma colectânea de 800 páginas onde, segundo o entrevistador, citando o ministro, “os poemas estão tal como apareceram na altura em que foram publicados.” Bom, “tal como apareceram” não é verdade, agora estão filtrados pelo acordo ortográfico.
O que mais espanta, aqui, não é o facto de o ministro-poeta (ou o poeta-ministro, o que vai dar ao mesmo) usar a ortografia que entende. É sobretudo a displicência e o pálido relativismo com que encara esse facto. Não considera o acordo perfeito, mas usa-o; não lhe tem grande amor, mas, caramba, afinal a ortografia é uma convenção e tanto se lhe dá; não tem ideias fortes sobre ortografia, mas considera-se capaz de dizer (com base em quê?) que a anterior convenção não é a maior das maravilhas; lamenta o horror e espanto dos amigos, diz até que alguns o acusam de traição, mas continuará a seguir o AO. Porquê? Porque sim. Não haverá, da parte do ministro-poeta, algo sólido? Um objectivo patriótico, uma miragem utópica? Nada, apenas qualquer coisa como um triste “não lhe tenho grande amor, mas o casamento mantém-se porque me colaram a aliança ao dedo.” Mas há pior. Sobretudo quando ele sugere que isto não passará de “uma luta de religiões”, uma luta na qual ele, que nem tem religião, não cabe nem se imiscui. Extraordinário. A levar a sério as suas palavras, uma “religião” pô-lo a escrever assim e ele não se importa; outra “religião” aponta-lhe o dedo e grita “traidor”; e ele, que até nem tem religião, veste resignadamente a “farda” da primeira.
Temos aqui, portanto, um homem decidido. Resoluto. Com ideias firmes. Um ministro verdadeiramente poético ou um poeta indubitavelmente ministeriável. Um homem que até diz: “Tudo se pode aperfeiçoar, é a minha opinião.” É verdade. Podemos começar pela política do seu ministério, e isto já sem ortografias nenhumas; ou pelo comportamento de muitos políticos, do Governo à oposição. Afinal, com tanta coisa lamentável, há muito por onde melhorar, aqui e em todo o planeta Terra. Mas se descermos ao chão inicial da ortografia, por onde este texto começou, a conversa do aperfeiçoamento é já insuportável. Há anos, mesmo há décadas, que se fala em aperfeiçoar o acordo ortográfico; mas tirando o voluntarioso (mas até agora sem consequências práticas) gesto da Academia das Ciências, nenhum responsável mexeu uma só palha para cumprir tal desiderato. Percebe-se: a maioria não sabe no que nos meteram, e por isso cala-se. Mas que um homem de cultura, poeta, com vários livros publicados e ainda por cima nomeado ministro, venha reduzir a uma “luta de religiões” aquilo que é, pelo contrário, uma causa de bases científicas, mais do que justificadas em milhares e milhares de páginas, em tratados, pareceres, artigos, abaixo-assinados, é o que realmente indigna. Por isso, senhor ministro, leia e informe-se. Se para isso tiver coragem.
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