Um texto que subscrevo e aplaudo, pela coragem do colonista ousar dizer a verdade, que ninguém quer ouvir.
Hoje em dia, são poucos os que ousam ousar.
Só lamento que estas ousadias não sejam tidas em conta pelos que querem, podem e mandam, para que Portugal possa avançar no tempo, evoluir e transformar-se num País onde o seu Povo tenha o direito de ter alguma felicidade.
Por enquanto, apenas os turistas e os milionários são plenamente felizes em Portugal.
Isabel A. Ferreira
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(José Pacheco Pereira, in PÚBLICO, 21/01/2023)
Fonte da imagem: https://beira.pt/portal/noticias/debate-imagem-e-memoria-a-face-dos-livros-hoje-com-jose-pacheco-pereira/
Muitos professores já foram “educados” na mesma ecologia que torna os seus alunos impossíveis de educar. O problema complementar é que muitos pais são exactamente iguais.
Apalavra “respeito” tem tido um papel relevante no protesto dos professores, representando um pedido e um protesto que está muito para além das reivindicações salariais e de carreira. É provável que seja essa componente existencial a mais significativa na mobilização destes últimos meses que, em bom rigor, parece ter sido uma surpresa para todos, ministério e mesmo os professores e, certamente, para o sindicalismo tradicionalmente dominante da Fenprof.
Quando me perguntavam a profissão, mesmo quando era deputado, sempre respondi que era professor. Na verdade, fui professor de todos os graus de ensino menos o básico, e conheci muito daquilo que era a instabilidade da vida de professor “provisório”. Dei aulas em Boticas, Espinho, Coimbra, Vila Nova de Gaia, Porto e Lisboa. Em Espinho dei aulas na Escola Preparatória Sá Couto conhecida como “o Triciclo”, porque estava sediada em três edifícios em locais diferentes e era possível ter uma aula às 9h num, às 10h no outro, e às 11h de novo no primeiro, ou seja, não havia intervalos.
Para se chegar a Boticas, quando lá estive, a viagem a partir do Porto demorava cerca de cinco horas e qualquer trajecto era péssimo, difícil e, nalgumas alturas do ano, perigoso, para se atravessar as serras, o Marão, o Alvão ou o Barroso a seguir às barragens. Tenho as melhores recordações de Boticas, mas compreendia muito bem o mal-estar dos meus colegas que não viviam em Chaves, uma das quais vinha de Coimbra e que ansiava por se ir embora logo que podia. Mas à distância, tendo em conta o que é dar aulas hoje, tudo isto era um paraíso.
Estamos obviamente a falar da escola pública, aquela que não pode escolher os seus alunos. Na altura, há poucas décadas, a escola competia com a família na socialização dos alunos e, nalgumas áreas mais pobres, competia com a rua. A droga ainda estava longe de ser o problema que é hoje, e não havia a epidemia do “défice de atenção”, nem dos factores que o explicam. É certo que nos subúrbios de Lisboa e Porto os estudos já revelavam o enfraquecimento da socialização familiar, com crianças de idade pré-escolar a já estarem muito pouco tempo com os pais e, quando estavam com eles, estavam a ver televisão, que acabava por ter um papel crescente na sua socialização.
Havia nas escolas o que sempre houve, uma considerável violência e, também como sempre, não era a mesma coisa viver numa casa com livros, com espaço e razoável conforto, ou num bairro degradado, pobres no meio de pobres. A educação reproduzia as desigualdades sociais, embora fosse ela própria um dos raros mecanismos de elevador social num país muito desigual. Tudo isto era tão antigo e tão denso como era o nosso atraso nacional, e, se a democracia, o fim da guerra e a entrada para a Europa mitigaram esse fundo de atraso, estão longe de o diminuir de forma significativa.
Sobre este fundo veio a “tempestade perfeita” que ameaça seriamente o papel da escola, incapaz de competir com uma ecologia social cada vez mais hostil, que põe em causa a capacidade da escola de ser um factor eficaz de socialização, já para não falar de aprendizagem. A droga, as novas formas de violência a que chamamos “bullying”, a destruição da capacidade de atenção pela rapidez da imagem dos jogos desde a infância, a deseducação do valor do tempo lento, do silêncio, do saber, da leitura, a ignorância agressiva das redes sociais, a substituição da privacidade pela exibição fácil do corpo, quer como chantagem, quer como vingança, quer como vaidade e sedução fácil, a presentificação absoluta no mundo das mensagens, do Instagram, do Facebook, do Tik-Tok, a utilização de devices como os telemóveis como instrumentos de controlo, a construção de uma sexualidade perversa ou imatura, entre a pornografia e a moda das identidades da moda, a obsessão pela explicação psicologista, a completa inadequação de programas de há muito oscilando entre o facilitismo “para não assustar os meninos”, ou um saber abstracto inadequado à realidade actual, tudo isto torna as escolas, principalmente no secundário, um dos sítios de pior viver nas sociedades contemporâneas. Ninguém sabe disso melhor do que os professores.
Por isso, têm razão em pedir “respeito”, se o sentido desse pedido implicar a enorme dificuldade que hoje é ser professor e o reconhecimento que a sociedade lhes deve, permitindo-lhes melhores condições materiais, menos burocracia, estabilidade e uma carreira com regras.
Mas para se ter respeito é preciso “dar-se ao respeito” e muitos professores já foram “educados” na mesma ecologia que torna os seus alunos impossíveis de educar. Já estão demasiado dentro da mesma “tempestade perfeita”, lêem pouco, vivem dependurados nas mesmas redes sociais, com os mesmos maus hábitos de desleixo pela verdade, de facilitismo, de exibição, de opiniões ligeiras para não lhes chamar outras coisas, de superficialidade e por aí adiante.
O problema complementar é que muitos pais são exactamente iguais, ou seja, há muito poucos factores qualitativos a “puxar para cima”, mesmo que fosse pouco, o que já seria uma enorme vantagem.
Este é o retrato de uma crise profunda. Infelizmente, mesmo que este retrato incomode muita gente, pela generalizada cumplicidade, é pura verdade.
O autor é colunista do PÚBLICO
Fonte: https://estatuadesal.com/2023/01/21/entre-o-respeito-e-o-dar-se-ao-respeito/
Uma douta intervenção do Dr. Vasco Reis, Médico-Veterinário, num comentário no Facebook, a propósito da aludida confrontação entre Civilização e Obscurantismo.
E pensar que os Touros são bovinos mansos, porque herbívoros, que se os deixarem em paz, pastam tranquilamente nos prados, como cordeirinhos...
Origem da imagem:
https://olhares.sapo.pt/touros-no-pasto-foto3442125.html
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E pensar que é a isto que os reduzem, para satisfazer o “gosto” dos miguéis sousas tavares do mundinho tauromáquico…
Massacre ilegal de Touro em Monsaraz, com crianças envolvidas, algo permitido pelas autoridades e governantes portugueses.
Vasco Reis Bravo ao José Pacheco Pereira pela sua argumentação tão correcta, corajosa e com muito sentido de ética. Creio que se deve reconhecimento a este digno cidadão abolicionista e agradecimento à sua tomada de posição pública, manifestando-se e argumentando contra a praga tauromáquica. Toda a solidariedade é importante para aqueles que o fazem!
É bom que se conheça o que o Miguel Sousa Tavares diz acerca de touros e de touradas, uma série de erros e de falácias, que os defensores da tauromaquia impingem como de costume e que não têm qualquer reconhecimento científico e nenhum sentido de ética. É democraticamente inaceitável a opinião que defende sobre a liberdade de se permitir a crueldade intrínseca da tourada, montra de maltrato animal, que antes, durante e após este "tradicional" evento representa de sofrimento psicológico e físico. Uma ideia vergonhosa de democracia para se continuar com a barbárie!
Talvez, o comentador em questão, que define o touro como animal de luta, sempre ao ataque, pudesse imaginar-se na situação do animal e viesse a mudar de mentalidade, se tivesse capacidade para tal. Pois, o animal é criado e habituado a um ser humano (pastor) ameaçador e tal, até com varapaus de comprimento imponente; apartado e transportado em pânico e em cubículo claustrofobizante; "preparado" para a lide com requintes e de maneira a perder força e capacidade; empurrado para a arena vindo da escuridão e ofuscado pelo sol; assustado pelo alarido; provocado pelos "artistas" a pé e a cavalo; esgotado; cravado de arpões, que tão cruelmente como foram espetados, assim são retirados. Seguem-se horas e dias depois deste "calvário" a sofrer acidose, febre e dores provocadas pelos ferimentos das bandarilhas, confinado e novamente transportado em pânico, até que uma morte sofrida lhe ponha termo a tanto sofrimento.
E porquê tudo isto? Para que haja negócio e porque gente como o aficionado Miguel Sousa Tavares adora esta luta, aliás (para ele "bailado"), que acha tão bela e tão valorosa e que importa manter esta tradição, que não considera cruel. A iniciativa deste frente a frente por parte da estação televisiva foi importante e contribui para conhecimento de argumentação pró tourada (que é indefensável) e de argumentação contra a tourada! (que é irrefutável)! Que malvadez para touros e cavalos, que prejuízo civilizacional para a sociedade e que desprestígio para Portugal.
A propósito do IVA nas touradas, mal sabia a Ministra da Cultura que, ao dizer que as touradas não são uma questão de gosto, mas de civilização, estaria a dar uma oportunidade aos Portugueses de mostrarem isso mesmo:
que as touradas são uma questão de civilização.
Nunca, como nestas últimas semanas, borbulharam por aí textos e programas pró e contra as touradas, numa esgrima em que os contra, com os seus argumentos racionais, claramente venceram os pró que, como argumentos, apresentaram as maiores irracionalidades de que há memória.
Deixo-vos com mais um excelente texto que mostra o quanto os aficionados estão longe da Civilização.
É assim, majestoso e belo, pastando pacificamente no prado, ao pôr-do-sol, que o Touro deve ser estimado…
O PÚLPITO DOS CHARLATÕES
Texto de António Guerreiro
«Na passada segunda-feira vi o programa Prós e Contras, na RTP 1, e a conclusão a que cheguei, no final, é que há assuntos sobre os quais a televisão, seja pelas características e exigências actuais deste medium, seja pela profunda ignorância e filistinismo dos autores e apresentadores dos programas, presta um serviço fraudulento de desinformação, presta-se a ser o veículo de ideias que não deveriam poder ser difundidas e amplificadas num estação pública, em programas que se reclamam do estatuto de serviço público. O nível da abjecção e da total ausência de pudor é diariamente atingido naqueles programas da manhã e da tarde que supõem a existência de um público lobotomizado. Mas aqui, nos Prós e Contras, apesar da deriva demagógica do título, indiciando que há muita probabilidade de as coisas não correrem bem, supõe-se que é um programa para uma classe de espectadores bem informados, que esperam muito mais do que um serão de entretenimento.
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Livro de recitações
“Os movimentos a favor dos animais, ou melhor, os movimentos contra a crueldade com os animais, fazem parte da tradição humanista dos séculos XIX e XX.”
José Pacheco Pereira, PÚBLICO, 17/11/2018
José Pacheco Pereira escreveu uma crónica a defender o fim das touradas, intitulada Os que “amam” muito os touros e os torturam e matam. Há uma passagem dessa crónica, acima citada, que gostaria de refutar. A tradição humanista, seja ela de que século for, é precisamente a ideologia que está na base das convicções acerca dos homens, dos animais, da natureza e da técnica que servem ainda de argumento para quase tudo, inclusivamente para apoiar as touradas. O nazismo foi um humanismo (como foi dito por um filósofo que escreveu sobre o assunto). Até na globalização há um humanismo integral. Na nossa época, impôs-se em certos domínios a noção de pós-humano, mas o humanismo é muito perseverante. Não é fácil alguém declarar-se anti-humanista. Pensa-se logo que é um misantropo e não alguém que recusa a máquina antropológica que nega a verdadeira fractura do homem.
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O último Prós e Contras era sobre as touradas, sobre as razões que levam uns a defender que elas devem ser mantidas e sobre as razões que levam outros a defender que elas deviam ser abolidas. Como sabemos, este debate está instalado entre nós com bastante virulência e já se percebeu que ele é extremamente incómodo para alguns partidos políticos e para o Governo, que quer fugir dele como o diabo da cruz. É preciso dizer que ele não deve ser desvalorizado, com aquele argumento de que há coisas muito mais importantes e esta não passa de algo inócuo. O que está aqui em jogo, a discussão de fundo, é algo fundamental que se inscreve no cerne da biopolítica contemporânea. A ideia de que está em curso ou já se consumou um animal turn, uma viragem animal, convoca-nos hoje seriamente através de uma bibliografia imensa que se tem produzido nos últimos anos sobre o assunto, vinda sobretudo dos lados da filosofia. O que descobrimos quando frequentamos esta vasta bibliografia é que a questão animal, nas suas mais variadas dimensões (morais, antropológicas, legais, etc.), incluindo a questão maior de saber se eles podem e devem ser sujeitos de direito, está presente nas grandes obras de filosofia, desde Aristóteles a Heidegger, de Derrida e Martha Nussbaum.
Está longe, portanto, de ser uma questão exclusiva do nosso tempo. Daí que seja chocante ouvir pessoas que são chamadas a falar sobre o assunto porque lhes é conferida, por qualquer razão, autoridade para tal, mas discorrem sobre ele com a maior das ignorâncias.
Neste último Prós e Contras destacou-se neste exercício de desinformação e de ignorância um aficionado chamado Luís Capucha, imbuído de filosofia das Lezírias que nem dá para comentar neste espaço. Mas vale a pena revisitar um dos seus argumentos, o de que regime nazi foi muito amigo dos animais e fez legislação que o comprova, para dizer que esse mito com origem na propaganda (“O nosso Führer ama os animais”) já foi longamente desmentido, em primeiro lugar por Victor Klemperer, o autor de LQI. A Linguagem do III Reich. E, no início dos anos 90, em França, Luc Ferry publicou um livro onde transmitia essa mensagem (e onde traduzia documentos da legislação nazi) que foi muito contestado e deu origem a uma enorme polémica. Ora, o que se passa entre nós é que alguém (na circunstância, um professor universitário de Sociologia) pode dar-se ao luxo de fazer afirmações na televisão como se fossem verdades irrefutáveis, desconhecendo ou fazendo que desconhece a contestação e a polémica que elas suscitaram. Este dispositivo retórico, propagandístico e inimigo do saber e da ciência porque é usado com fins exclusivamente ideológicos é o do discurso político, em relação ao qual já criámos muitas defesas, mas não pode ser a regra numa discussão na televisão pública, sobre um assunto sério, para o qual se convida, para o debate, “especialistas”, gente a quem se confere uma qualquer autoridade. O sociólogo, o aficionado, o propagandista e o inimigo do saber, tudo na mesma pessoa, só na televisão é que é possível.
(As passagens a negrito são da responsabilidade da autora do Blogue)
Fonte:
(Um excelente texto para reflectirmos Portugal, e faço minhas as palavras de Pacheco Pereira)
Por José Pacheco Pereira,
in Público, 05/09/2015
Não é este o meu Portugal. Não lhes tenho respeito. Uns fazem por si, outros fazem pelos outros.
O poema de Antonio Machado intitulado Españolito é, como muitos poemas seus, intraduzível.
Eugénio de Andrade dava os poemas de Antonio Machado como exemplo da impossibilidade, no caso da poesia, de encontrar noutra língua, não as palavras certas, o que ainda era possível, mas a “música” do poema, o modo como fluía o som dessas palavras. Por isso, aqui vai no original:
Ya hay un español que quiere
vivir y a vivir empieza,
entre una España que muere
y otra España que bosteza.
Españolito que vienes
al mundo te guarde Dios.
Una de las dos Españas
ha de helarte el corazón.
É um poema sinistro tanto quanto pode ser um poema. Estamos a caminho da ferocidade da guerra civil espanhola: “uma das duas Espanhas / há-de gelar-te o coração”. Não é hipotético, é certo. Morrerás em breve por uma ou por outra dessas “duas Espanhas”. Como Machado, enterrado junto da Espanha mas do lado francês, para onde fugiu quando a guerra estava perdida para a República.
O tema das “duas Espanhas” é muito antigo e não é alheio também ao pensamento português contemporâneo desde o século XIX. A ideia de que há “dois Portugais” também por cá circulou, mas sem a dramaticidade e a fronteira talhada à faca, com que existiu em Espanha. Houve sempre por cá mais mistura, mesmo nos momentos em que “um Portugal” defrontou o “outro”, nas lutas liberais, na República e na longa ditadura que preencheu metade do século XX português. A essa mistura Salazar chamava a “brandura dos nossos costumes”, uma enorme mentira em que os poderosos desejam acreditar e nem ele acreditava. Também ele era capaz de, com o seu enorme cinismo, agradecer aos portugueses terem sido tão “pacíficos” durante a crise.
Hoje, “dois Portugais” existem e vão (já foram) a eleições. Um está à vista todos os dias, outro tornou-se invisível, mas está cá. Como é que é possível ele ter desaparecido de modo tão conveniente neste ano eleitoral? É conspiração dos media, é censura induzida, é habilidade de um dos “Portugais”, é apatia, resignação do outro “Portugal”, é incapacidade do sistema político representar ambos, ou só um, é o efeito daquilo que os marxistas chamavam “ideologia dominante”`? É, porque já não há dois, mas apenas um só, e este é o Portugal feliz, redimido dos seus vícios passados, empreendedor, cheio de esperança no futuro, deixando a “crise” para trás, virado para o “Portugal para a frente”? É tudo junto, menos a última razão.
Um dos “Portugais” está de facto invisível nestas eleições. Quem devia falar por ele, não fala e quem fala não é ouvido. Criou-se uma barreira de silêncio onde apenas se ouve a propaganda. Vejam-se as miraculosas estatísticas. Começa porque há as estatísticas de primeira e as de segunda, as que valem tudo e as que não valem nada. As “económicas” são de primeira, as “sociais” são de segunda. Das primeiras fala-se, as segundas ocultam-se.
As estatísticas “da recuperação económica”, escolhidas a dedo e trabalhadas a dedo, são comparadas com os anos que mais convém, umas vezes 2000, outras 2008, outras 2010, outras 2011, outras 2012, outras 2013, etc.. Todas a subir, pouco mas a subir, com “tendência” para subir. Os “do contra” ainda dizem que são tão milimétricas essas subidas e tão condicionadas pelo bater no fundo, tão longe do que seria necessário, tão dependentes de factores externos, que, ao mais pequenão abanão, o castelo de cartas ruirá. Como, para não ir mais longe, se vê com a venda do Novo Banco, o “bom”. (Embora suspeite que mesmo a pior das vendas vai ser apresentada como um excelente resultado, comparada com qualquer hipotética operação mais ruinosa, que “poderia ter acontecido”, mas nunca existiu. É uma das técnicas habituais apresentar sempre o mal como o mal menor.)
Quem é que quer saber, destes pequenos incidentes? Até às eleições servem bem, no dia seguinte, se os seus criativos autores ganharem, voltam a ler com toda a atenção os relatórios do FMI para justificar a continuação da austeridade. Ver-se-á como o défice vai subir, vai-se ver como as coisas são piores do que se apresentou neste ano eleitoral, mas já é passado, não conta.
Há mais de um milhão de desempregados, “desencorajados”, desempregados de longa duração que desapareceram das estatísticas, falsos estagiários, e pessoas que só não estão nas listas do desemprego porque emigraram. Porque queriam? Não. Porque não tinham alternativa e ainda faziam parte daqueles que podiam emigrar. Se estão felizes é por mérito da Suíça, da Grã-Bretanha, da Alemanha, da França e das competências e conhecimentos que ganharam em Portugal, imperfeitos que fossem, antes de 2008. O Portugal que lhe deu essas competências também já está a encolher, a acabar. Estamos a falar de várias centenas de milhares de pessoas. É muito português.
Voltemos aos desempregados que, ó céus!, também não deixaram de existir. São muitas centenas de milhares de pessoas, à volta de um milhão se somarmos, como devemos somar, várias parcelas de pessoas que não têm emprego. Não é sequer emprego sem direitos, é que não têm emprego. Ponto. Por muita imaginação que se possa ter, é suposto que não estejam felizes com a sua vida. Nem eles, nem as suas famílias. É muito português.
Depois, mais um número que se sobrepõe aos outros, uma em cada cinco pessoas é pobre, dois milhões de portugueses. Onde estão eles que não se vêem? Depois de uma overdose pontual de miséria nos anos mais agudos da crise, despareceram as pessoas que vivem mal de Portugal. Não são boa televisão a não ser como “casos humanos” extremos – a idosa sem pleno uso das suas faculdades mentais que vive imersa na sujidade e na miséria mais extrema numa casa sem vidros, nem água, nem luz – e não é disso que estou a falar. Estou a falar da pobreza que é estrutural, da que recuou dez anos para trás, mas que, neste recuo enorme em termos sociais, perdeu qualquer esperança, aquela que ainda podiam ter no início da década de 2000.
E aqueles a quem cortaram a magra pensão na velhice e a reforma com que pensavam viver os últimos anos, também estão felizes, a aplaudir o PAF? E aqueles que não eram pobres ou tinham deixado de ser pobres depois do 25 de Abril e que agora estão a escorregar para esse “estado” de que já não vão sair até morrerem? Estão felizes e contentes, perdido o emprego, a pequena empresa, o carro, a casa? Sim, as estatísticas de segunda, as sociais, revelam as penhoras, as devoluções, as humilhações, o esconder de uma vida sem esperança, ou seja desesperança. É muito português.
O discurso oficial, o do “outro” Portugal, diz que tudo isto é “miserabilismo”. Diz-nos que apenas o crescimento da “economia”, daquilo que eles chamam “economia”, pode resolver as malditas estatísticas “sociais”. Outra conveniente ilusão, porque, a não haver mecanismos de distribuição, a não haver equilíbrio nas relações laborais, a não haver reforço dos mecanismos sociais do estado – tudo profundamente afectado pela parte do programa da troika que eles cumpriram com mais vigor e rapidez – o “crescimento” de que falam tem apenas um efeito: agravar as desigualdades sociais. Como se vê.
No grosso das notícias, ministros e secretários de estado pavoneiam-se com grupos de empresários em posição de vénia, por feiras, colóquios dos jornais económicos, encontros liofilizados para que não haja o mínimo risco e, quando abrem a boca, é apenas para fazer propaganda eleitoral, a mais enganadora da qual se faz falando do “estado” redentor do país que agora já “pode mudar”. Eles falam do lado do poder, do poder que aparece nas listas dos jornais económicos, os novos “donos disto tudo”, chineses, angolanos, profissionais das “jotas” alcandorados a governantes, advogados de negócios e facilitadores, gestores, empresários de sucesso, a nova elite que deve envergonhar a mais velha gente do dinheiro, que o fez de outra maneira. O “outro” Portugal, o que é tão visível que até cega, com todas as cores, luzes a laser, aplausos decasting, feérico e feliz.
Não é este o meu Portugal. Não lhes tenho respeito. Uns fazem por si, outros fazem pelos outros. Conheço-os bem de mais. Não gostam dos de “baixo”. Acham que eles são feios, porcos e maus. Querem receber sem trabalhar. Querem viver à custa dos outros, deles. Se estão pobres é porque a culpa é sua. Se estão desempregados é porque não sabem trabalhar. Se se lamentam da sua sorte, são piegas. Deviam amochar disciplinadamente para serem bons portugueses. Não. “Há-de gelar-te o coração”.
Direi pois, como o velho Unamuno, “me duele España”, dói-me Portugal.
in:
https://rcag1991.wordpress.com/2015/09/05/doi-me-portugal/