Copyright © Isabel A. Ferreira 2009
Era um melancólico fim de tarde, já no longínquo mês de Setembro de 1991. Havia chovido e a rua encontrava-se cheia de poças de água, onde se reflectiam as nuvens.
Eu descia a Rua da Junqueira, na Póvoa de Varzim, em direcção a casa, tentando não molhar os pés, pois calçava sapatilhas. Seguia distraída com o leve burburinho que me rodeava.
De súbito, fui despertada por um assobio harmonioso, cristalino, fascinante, e depois uma voz doce e ao mesmo tempo vigorosa: «Ne me quitte pas, ne me quitte pas, ne me quitte pas...».
Segui aqueles sons, já completamente rendida à perfeição daquela interpretação, que não sendo do inigualável Jacques Brel, deveria ser de alguém com um espírito semelhante, ou sofredor de um mal de amor.
Uns passos mais adiante, deparei-me, então, com o dono daquela voz, que me fascinou, rodeado de uma pequena multidão. O som que me entrava na alma pregou-me ao chão, e ali fiquei, com os pés enfiados numa poça de água, escutando o Trovador, a interpretar Brel, magnificamente.
Que importava a rua, cheia de poças de água! Que importava o chão, o cimento, os ladrilhos feios, se estava diante de um Trovador, dos autênticos, daqueles que cultivam a música e a poesia, com amor!
Que importava a fealdade que me rodeava se eu tinha diante de mim a arte personificada?
Esqueci-me de tudo. E ali fiquei cativa da voz daquele menestrel do século XX, até que um aguaceiro me despertou para a realidade.
Havia descoberto um artista? Não resisti e aproximei-me do jovem, que entretanto se abrigara debaixo do toldo de uma ourivesaria. Precisávamos de conversar, disse-lhe.
Soube então, logo ali, que outros antes de mim o haviam descoberto: já fora duas vezes à televisão (aos programas «Às Dez» e «Bom Dia»); já saíra nas páginas d’ O Primeiro de Janeiro, do Diário de Coimbra e do Miroir de Paris.
Sim, era possível, porém, os “outros” haviam descoberto o cantor de rua, o goliardo leigo (que ele dizia não ser).
A mim coube-me descobrir, para além daquele olhar azul, límpido e pleno de nostalgia, o verdadeiro, o autêntico Trovador. O mensageiro da liberdade, da fraternidade, da igualdade. O arauto da paz, do amor, da paixão, mas também da raiva e da revolta contra as injustiças de uma sociedade imensamente desequilibrada e desarmoniosa.
Entrámos numa pastelaria, enquanto chovia, e foi aí que, subtilmente, fui entrando no mundo de Jack Deska, o Trovador.
Jack Deska nascera em Villepinte, uma pequena aldeia perto de Paris, em 1 de Maio de 1963. Depois de uma infância um tanto atribulada, decidiu correr mundo, levando consigo a sua viola (violão ou guitarra clássica), um amplificador e a sua arte de rua.
Um dia descobrira que a música era a chave para a felicidade e para a comunicação. Tímido, por natureza, sem a sua viola não conseguia comunicar.
Depois de ter vivido em grandes cidades como Amesterdão e Berlim, Jack passou por Ibiza, onde um agente da lei lhe sugeriu que “desandasse” dali e fosse para o «lixo da Europa», isto é, Portugal.
O Trovador pôs-se então a caminho. Quis conhecer o “lixo” de que lhe falara o agente. E foi nesse “lixo” (que Jack considerou o paraíso) que se fixou, durante cinco anos. Tinha vindo para ficar. Viveu durante algum tempo na “Pensão do Norte”, no Porto. Gostava do nosso país, porém, sentia que os jovens portugueses eram psicologicamente velhos.
Para muitos deles, a liberdade tinha o significado de “libertinagem”, o que para Jack era extremamente lamentável.
O Trovador cultivava a liberdade, tal como os pássaros. Não com asas físicas, mas com as asas do pensamento. Ele não era um marginal, só porque cantava na rua. Nem sequer um mendigo, pois nada pedia, quem quisesse atirava-lhe uma moeda para a caixa da viola.
Jack Deska era, sobretudo, um sonhador. Um idealista. Temia o sucesso (se algum dia viesse a tê-lo), porque a sua privacidade ficaria comprometida. Por isso, preferia as ruas para cantar Jacques Brel, Joe Dassin, Edith Piaf, Gilbert Becaud e as suas próprias composições. O sucesso talvez o privasse de ir comprar o seu queijo, todas as manhãs, um ritual que Jack não dispensava. E isso amedrontava-o.
Gostaria, sim, como qualquer cantor, de gravar um CD. E um dos seus sonhos era actuar no palco do Coliseu do Porto, onde Rui Veloso (de quem era um grande admirador) já actuara tantas vezes.
Eu, como sabia o que era sonhar e realizar sonhos, se ninguém o fizesse antes de mim, levá-lo-ia eu a actuar no Coliseu, num dos espectáculos que, anualmente, lá organizava para o público mais jovem. Era um sonho que o Trovador veria realizado. Prometi-lhe. Ele delirou.
Contudo, o seu sonho ficou por realizar. Morreu poucos meses antes de subir ao palco do Coliseu, como já estava programado.
Jack Deska tinha um companheiro: o seu inseparável ratinho branco, a quem carinhosamente chamava o Trovadorzinho, que, aninhado junto ao seu pescoço, de olhinhos fechados, ouvia, como que hipnotizado, a actuação do seu amigo, e a sua voz de menestrel e o seu fascinante assobio, semeando arte pelas ruas.
Um Trovador atravessou aquela tarde. Foram muitos aqueles que o viram e ouviram. Porém, de entre essa multidão, que lhe ia enchendo a caixa da viola com moedas, talvez ninguém tivesse se apercebido de que estava diante de uma alma poética, de um sonhador, de uma mensageiro da arte, e não de um simples “mendigo”, como o consideraram.
Um Trovador passou pela cidade, num fim de tarde, no já longínquo mês de Setembro de 1991 e, nesse dia, a arte enfeitou a rua...
***
Depois daquele encontro, eu e o Jack tornámo-nos grandes amigos. Vivemos impensáveis peripécias kafkianas, numa esquadra de polícia, onde estive detida por uns escassos dez minutos, por defender a Arte do Trovador.
Do Trovadorzinho, para quem o Jack arranjou uma companheira, fiquei com a recordação do meu Ratolinha, igualzinho ao pai, e também muito amoroso, que gostava de partilhar comigo a maçã do meu pequeno- almoço, e aninhar-se no meu pescoço, enquanto eu escrevia.
Um dia, Jack Deska conseguiu comprar um carro velho, para mais facilmente poder deslocar-se pelo país. Perdi-lhe o rasto, durante uns dois anos. Tinha ido para a Alemanha, de onde me enviou um postal, a dizer de si e das suas mágoas.
Passou-se algum tempo mais, já não me lembro quanto, descia eu a mesma rua, também num fim de tarde, talvez no ano de 1997, e tornei a ouvir um assobio, que me era familiar. Segui-o, como outrora. E lá estava o Jack, numa esquina, a cantar Et si tu n'existais pas, de Joe Dassin. Estava mais magro, mais velho, mais esfarrapado, mais amargurado.
Quando me viu, parou de cantar Dassin e passou imediatamente para Brel, com Ne me quitte pas... A minha canção preferida. E ali fiquei novamente pregada ao chão, rendida à voz e às palavras do Trovador.
Fomos depois lanchar à “nossa” pastelaria, onde me contou as suas desventuras por terras alemãs. Andava perdido. Fora para esquecer o seu amor impossível. Um músico de rua não convinha à “professorinha” que ele amava. A família dela era absolutamente contra aquele romance, e estávamos numa época em que o peso de uma sociedade conservadora impedia um amor assim, tal como no tempo de Romeu e Julieta.
Porém, a saudade da sua amada trouxera-o de volta a Portugal. Tinha esperança, agora que os tempos eram outros. Mas não resultou, uma vez mais. E uma vez mais ia partir. Desta vez para sempre. Confidenciou-me. E aquela foi a última conversa que tivemos, e a última vez que o vi.
Partiu para Villepinte, sua terra natal, na sua carripana.
Mais um tempo se passou, sem notícias. No dia 10 de Outubro de 1998, já ao fim da tarde, recebi um telefonema da sua “professorinha” (como ele amorosamente tratava a sua amada) a contar-me da sua morte, dias antes, no dia 7 daquele mês.
Desta vez, vinha de vez, para ficar com ela. Iam viver juntos em Coimbra. Ao atravessar Espanha, porém, numa auto-estrada, Jack sentir-se-ia mal e encostou o carro na berma, não muito distante de um Posto de Gasolina. Alguém reparou que aquele carro, já estava ali parado há demasiado tempo, e foram averiguar.
Jack Deska estava morto, debruçado sobre o volante.
A rua fora o seu lugar de vida. A estrada o seu lugar de morte. Talvez a emoção de vir, finalmente, ao encontro do seu grande amor, lhe provocasse o enfarte de miocárdio que o vitimou.
Devido à burocracia e à recusa da sua família em que fosse enterrado em Coimbra (como ele um dia preconizara, para ficar mais perto da sua amada) o seu enterro realizou-se quase um mês depois.
O féretro foi acompanhado ao som das canções que Jack celebrizara em vida e que o grupo de amigos, que o velou, cantou em sua homenagem, a caminho de uma campa, onde ficou sepultado, no Cemitério da Conchada, em Coimbra.
***
Por que evoquei, Jack Deska?
Porque foi num dia assim, como o de hoje, que o conheci. E hoje, ao descer aquela rua, não ouvi o seu assobio, nem aquele Ne me quittes pas, cantado com o coração em chamas, tal como Jacques Brel o cantava, por sofrerem ambos do mal de amor.
Além disso, este é um modo de manter vivo um Trovador excepcional, condenado ao esquecimento, por temer o sucesso, que o impediria de ir comprar o queijo, que partilhava com o seu Trovadorzinho, todas as manhãs...
Isabel A. Ferreira
(Origem da imagem: Internet)
Copyright © Isabel A. Ferreira 2008
Quando me convidaram para fazer uma palestra sobre Ética, Direitos e Valores Humanos, numa Escola Secundária, não tive como não aceitar, uma vez que um dia ousei escrever um Manual de Civilidade, onde abordei esses temas, se bem que sob um ponto de vista muito pessoal, baseado mais na minha observação de comportamentos humanos ao longo de muitos anos, do que propriamente no saber livresco.
Depois de formulado o convite, pensei: como pude aceitar tal incumbência, eu que não sou propriamente especialista nestes temas? Eu, que sou apenas uma criatura que se interessa pelas coisas humanas? Porém, uma vez dada a palavra, repensei: qual a melhor forma de abordar o tema da Ética, dos Direitos Humanos e dos Valores Humanos para uma plateia de professores e alunos que, com certeza, já leram nos livros tantas coisas sobre a matéria?
Pus-me então várias hipóteses.
Poderia dissertar sobre a ética e os valores humanos ao longo dos tempos, que obviamente não foram sempre os mesmos desde os primórdios das sociedades organizadas, dependendo essa ética e esses valores, dos humores, mais ou menos sensíveis, humanitários e compassivos, dos poderosos de cada época, porque concordemos ou não concordemos, temos de admitir que a vida do homem e do planeta sempre girou à volta das vontades, boas ou más, daqueles que nos governam.
Ou poderia fazer um discurso erudito tanto quanto pretensioso, e citar os dizeres, os saberes e os pareceres dos grandes filósofos, mestres e pensadores, que estudaram em profundidade estas questões, correndo o risco de dizer o que todos já disseram.
Ou poderia ainda apresentar um historial desde os tempos do animal humano das cavernas, cuja ética e valores seriam os da sobrevivência imediata, a que vai da mão para a boca, numa tentativa de partilhar o mundo com os animais não-humanos, aproveitando, paralelamente, a generosidade da Natureza, nessa altura ainda exuberante, límpida, despoluída e fértil em todas as coisas, estendendo esse historial até à nossa era, à era das armas biológicas, químicas e nucleares, onde a sobrevivência do planeta está na ponta dos dedos de pouco mais de meia dúzia de poderosos, apesar de loucos, cuja ética assenta mais no conceito do destruir do que no do construir.
Poderia, por outro lado, abordar a ética nos seus múltiplos aspectos, envolvendo todos os actos humanos, quer a nível das profissões (todas as profissões e cada uma em particular têm a sua própria ética, embora nos tempos que correm essa ética tenha sido atirada ao caixote do lixo, e é o que se vê – cada um por si e ninguém por todos), ou a nível de todas as posturas do homem perante a vida e a sociedade, perante si e o outro, nosso semelhante, e ainda o outro, o nosso dissemelhante mas companheiro na aventura da existência (refiro-me às plantas e aos animais não humanos – não gosto de me referir a estes como irracionais, porque entre os animais ditos humanos, conheço muitíssimos que são, esses sim, animais completamente irracionais, e não é da minha ética misturar os conceitos).
Coloquei igualmente a hipótese de abordar os temas da actualidade que interferem com a ética do mais precioso valor humano: a vida, analisando as questões da manipulação genética das espécies animais e vegetais, da clonagem, do aborto, da eutanásia, que dava muito pano para mangas, e por muito que disséssemos e desdisséssemos, nunca chegaríamos a um consenso, pois cada cabeça, sua sentença. Se bem que a minha atitude perante todas as questões que impliquem a vida, a humana e a não-humana, é aceitar o que é natural e repudiar as manipulações, quaisquer que sejam, porque mais tarde ou mais cedo, a própria Natureza encarrega-se de colocar as coisas no exacto lugar ao qual sempre pertenceram. É ela que tem a última palavra. Não o homem manipulador. Sobre isto, poderia dar muitos exemplos, mas podemos ficar-nos pelo das vacas loucas e dos animais que são criados à base de hormonas, que os seres humanos ingerem, transformando-se eles próprios em carne tão balofa como toda essa criação.
Já reflectiram por que é que uma criança, hoje, de onze/doze anos é quase tão alta como os pais, quando não os ultrapassam? Por que crescem tão aceleradamente ou ficam obesas? Há estudiosos que dizem ser por causa das carnes injectadas de hormonas, e há crianças que só comem carne e gorduras de animais e tudo o que faz mal, mas não é proibido vender: o que faz crescer os animais faz crescer também os humanos, dizem os entendidos. E assim, por este andar, qualquer dia, num futuro não muito longínquo, teremos uma população gigante, mas muito, muito balofa, e pouco, pouco saudável. Mas tal perspectiva não impede quem de direito de proibir tais desmandos.
Poderia também falar dos valores no mundo contemporâneo que se diz estarem em crise. Mas os valores de todos os mundos antes do nosso, sempre estiveram em crise. Enquanto existirem homens, os valores humanos sempre estarão em crise. Jamais nenhuma geração esteve satisfeita com o seu procedimento ou com os seus valores. Sempre houve alguma coisa que se deixou por fazer. Muitas lutas que se deixaram a meio, e que as gerações seguintes retomaram, e que também não completaram. E assim, sucessivamente.
O que ontem foi, hoje já não é, mas amanhã poderá ser novamente, para tornar a não ser no dia seguinte. É que o mundo parece avançar, mas por cada três passos que o homem dá para a frente, recua cinco passos, e o que pensamos ser progresso, na realidade, é retrocesso. Nunca como hoje, a vida no Planeta esteve tão ameaçada, apesar de toda a tecnologia de ponta que o homem se gaba de ter inventado; mas é precisamente devido a essa tecnologia que o mundo está à beira de um imenso abismo, e, dizem os cientistas, mais do que aquilo que possamos imaginar.
Porém, em vez de prevalecer o bom senso e procedimentos racionais e inteligentes, temos os valores económicos a falar mais alto, em quase todos os campos. Nenhum país altamente industrializado está preocupado com o Planeta, e muito menos interessado em salvá-lo. Primeiro estão os bolsos dos que comandam as economias mundiais. E depois, lá muito depois, é que talvez possa ter-se em conta o buraco de ozono, a poluição, as éticas e os valores humanos e outras coisas que tais. Só que quem assim pensa, não é suficientemente inteligente para considerar que ser rico não serve para nada, a sete palmos debaixo de uma terra seca e destruída.
Poderia ainda falar dos Direitos do Homem, tão profanados nos países governados por ditadores, mas também nas democracias, apesar de se dizerem Democracias e Estados de Direito. Contudo, falar dos Direitos do Homem é falar de um assunto já muito gasto, tão gasto que quase já não faz sentido. Talvez tenha chegado o momento de inverter os discursos e falar nos tão esquecidos deveres e obrigações dos cidadãos. É que ao que vemos, parece que toda a gente tem todos os direitos do mundo, mas nenhuns deveres. Nenhumas obrigações.
Depois de ter considerado todas estas hipóteses, concluí: tudo isto, todos já sabem, já leram, já ouviram, já viram. O que me resta então dizer, para acrescentar algo de novo a um tema velho? Não encontrei nada de especial. Já tudo foi dito; já tudo foi estudado; já tudo foi repetido, vezes sem conta. Mas então o que dizer? Lembrei-me: e se aproveitasse alguns rasgos da minha experiência pessoal? Aqueles que vivi ao longo de vinte anos de prática de jornalismo de intervenção e de investigação, que me pôs diante dos homens, na sua mais profunda nudez de alma, e onde lidei com valores e desvalores, com direitos e violações de direitos, com abusos de poder, corrupção e corruptos, com a falta de ética, ao mais alto grau, mas também com a enorme capacidade do ser humano de ultrapassar as impossibilidades, as improbabilidades, as dificuldades e recriar-se, sobrevivendo num mundo feito à medida da demência dos poderosos, sustentada pela insanidade dos povos que mantém esses poderosos no poder: por vontade? por medo? por ignorância? Um pouco por tudo isto e por algo mais. Veja-se o caso de Adolf Hitler no passado, e de Saddam Hussein, até há bem pouco tempo. Castradores dos valores e direitos humanos idolatrados por multidões. Não se culpe apenas os maus, porque maus são também aqueles que seguem esses maus, e os aplaudem.
Não se consegue esgotar nenhum assunto, e eu não tenho a pretensão de esgotar o tema que me propuseram. Tenho por hábito abordar as matérias pela rama, deixando espaço para a reflexão de quem me ouve ou de quem me lê. Do género: o que é que ela quis dizer com isto? Se forem como eu, têm pretexto para ficarem um dia inteiro a pensar, a investigar, a ler e a chegar a conclusões próprias.
Ora é esta a proposta que vos deixo.
Até aqui, aludindo àquilo que poderia ter dito e não disse, mas ficou nas entrelinhas, penso que já deixei alguns pontos para reflexão: que mundo, este, o nosso? Que valores, estes, os nossos? O que queremos fazer de nós? Que mundo queremos deixar aos nossos filhos? Tudo isso está na nossa capacidade, e quando digo nossa, digo na capacidade dos educadores (pais, encarregados de educação ou professores) em ensinar aos jovens a raciocinarem, mais do que a obrigá-los a empinar matérias. E uma das muitas maneiras é começar por fazer-lhes uma pergunta simples, do género: «Se desaprovas que cuspam no teu prato de sopa, deves cuspir no prato de sopa de quem contigo come à mesma mesa ou na mesa ao lado?»
Esta é uma sugestão que deixei no meu Manual de Civilidade, logo no primeiro capítulo intitulado: Primeira Noção: O Respeito, que vai desaguar no preceito: não faças aos outros o que não gostas que te façam a ti. A esta noção voltarei um pouco lá mais adiante. É que ao colocar-se uma questão destas a um jovem, ele obrigar-se-á a um certo raciocínio, e a partir desse raciocínio poder-se-á fazer grandes voos no que respeita ao respeito a ter pelos outros seres, humanos e não-humanos, pelos seus direitos, humanos e não-humanos, e pelos valores intrínsecos ao homem.
A propósito, gostaria de rapidamente contar uma pequena curiosidade em relação ao Manual de Civilidade, onde, obviamente, não esgoto o tema da civilidade, ou do que eu penso ser civilidade, que implica uma ética do comportamento, o respeito pelos valores humanos, o cumprimento dos deveres e das obrigações de cada um, a exigência da observância dos nossos direitos, e a consideração a ter por todos os seres, nossos companheiros de existência no Planeta.
Era uma tarde de domingo do mês de Fevereiro do ano 2000, e eu havia acabado de ler o livro Os Génios do Cristianismo – Histórias de Profetas, de Pecadores e de Santos, do jornalista do Le Monde, Henri Tincq. A história das religiões, de qualquer religião, e o estudo das religiões comparadas foi sempre uma das minhas paixões, enquanto estudante de História. E a leitura deste livro, e particularmente a história dos nele denominados pecadores – os das guerras santas, os das fogueiras da Inquisição, os Papas e as suas vinganças, os do terror em nome de Deus (com paralelo hoje nos Bin Ladens que aterrorizam o mundo também em nome de Deus) e talvez por me encontrar, nessa altura, mais vulnerável às injustiças, porque havia sido vítima recente da arbitrariedade dos poderosos, revoltou-me relembrar que há homens que torturam homens em nome de valores que nada têm a ver com a nossa humanidade, e esta foi a gota de água que me fez concretizar a ideia que há muito vinha germinando dentro de mim: a de escrever um livro, onde abordasse a minha reflexão sobre o fenómeno humano da civilidade ou da falta dela, numa sociedade cada vez mais esvaziada de valores humanizados.
E, nessa mesma tarde, apontei num pedaço de papel os títulos daqueles que vieram a fazer parte dos capítulos do livro. Porém, antes de o publicar, dei o original a ler a um adolescente, tido como sobredotado. Ele aprovou o livro, mas disse-me, assim tal e qual: «Um livro destes tem de incluir os temas do sexo, do progresso e da modernidade. Sem eles isto fica incompleto». Meditei no que o jovem disse, e considerei. Na verdade o sexo tem a ver com direitos, deveres e ética. O progresso tem a ver com direitos, deveres e ética. A modernidade tem a ver com direitos, deveres e ética. O jovem tinha razão. Acrescentei-lhe esses três tópicos, e o livro continuou incompleto, mas não tão incompleto como anteriormente.
São pormenores como este que fazem as grandes diferenças entre as mentalidades. Penso que devemos ouvir as crianças e os adolescentes, conversar com eles sobre estes e outros assuntos, porque neles a questão da ética, dos direitos, dos deveres, das obrigações, dos valores, encontram-se no seu estado mais puro, sem os vícios, nem as imperfeições que os adultos, induzidos por um patético complexo de superioridade, introduzem no seu modo de pensar preconceituoso.
Ainda acerca do livro, tenho um outro rasgo de experiência, que penso ser interessante referir. Um dia, a directora de uma escola do ensino básico convidou-me para ir falar dos meus livros às crianças (eu na altura tinha apenas o Manual de Civilidade e A História Fantástica de Pepino). Mas antes, as professoras dessa escola adquiriram os livros para poderem trabalhar com os alunos, para estes saberem o que me perguntar, quando eu lá fosse falar com eles. Uma das professoras trabalhou então o conteúdo do Manual de Civilidade com uma turma do quarto ano, crianças dos seus 9/10 anos. Na altura da minha apresentação, estava diante de cerca de 30 crianças a fazer-me as mais diversas perguntas, sobejamente inteligentes, devo acrescentar. Uma delas marcou-me mais do que as outras, porque era interessantíssima e oportuna: era um menino, e perguntou-me: «Tu, que escreveste aquele livro, pões em prática tudo o que lá está escrito?»
Boa pergunta. E agora? O que responder?
Respondi-lhe então, o que devia responder: eu não sou perfeita; não sou uma super-mulher, mas claro que tento, na medida dos meus possíveis e da minha noção de humanidade, praticar tudo aquilo que escrevi com sentimento, de outro modo, não o escreveria, porque nunca poderia correr o risco que correm os políticos, que nos piscam um olho, como que a dizer: olha para o que eu digo, não olhes para o que eu faço. Não poderia ter escrito tudo o que escrevi naquele livro, se não acreditasse na minha filosofia e em mim própria. E este é o primeiro passo para a prática de uma ética comportamental. Devo respeitar-me primeiramente a mim, para ter condições de respeitar os outros.
Uma vez que falei nos políticos, a propósito, foi precisamente um político que me chamou a atenção para um pormenor comportamental que, à primeira vista, escapa à nossa análise. Ao entrevistá-lo sobre o direito que as populações têm de ver a sua cidade limpa de lixos, com contentores lavados, as ruas limpas, sem excrementos de cães; sobre o direito que o povo tem de ver realizadas as promessas que em tempo eleitoral são juramentadas com uma veemência muito persuasiva, o presidente da Câmara em questão disse-me: «Você vem aqui falar dos direitos do povo, mas... e os deveres do povo? O povo não terá o dever de cumprir as regras, as leis, as posturas camarárias? Há regras que devem ser cumpridas, como não deitar o lixo para as ruas, a qualquer hora do dia e fora dos contentores, limpar os excrementos dos seus animais, usando para tal os saquinhos espalhados pela cidade... etc., etc., etc. ...»
Na verdade o povo também tem deveres. E na maioria das vezes não os cumpre. Quando trata a direitos, aqui-del-rei que os têm todos e exigem-nos em grandes manifestações. Quando trata a deveres... o assunto muda de figura. Olha-se para o ar, como quem diz: «Isto não deve ser comigo…»
E daquela vez, talvez pela primeira vez, tive de dar razão àquele presidente de Câmara. Na verdade, nem sempre o que parece é.
Quando a Declaração Universal dos Direitos Humanos foi proclamada, ninguém se lembrou de chamar a atenção para a questão dos deveres. Tal documento deveria chamar-se Declaração Universal dos Direitos e dos Deveres Humanos, porque para cada direito, há um dever correspondente, do qual o homem se esquece frequentemente, porque não é explicitamente citado. E o que está oculto, não é lembrado.
Tomemos por exemplo o artigo 9.º, que diz: «Ninguém pode ser arbitrariamente preso, detido ou exilado». Ora a este direito corresponde o dever de: «Ninguém pode arbitrariamente prender, deter ou exilar alguém».
Chegada aqui, gostaria de contar um episódio dos mais interessantes que já vivi, nos meus anos de Jornalismo, e que tem a ver com o que acabo de dizer. Um dia estive detida arbitrariamente por breves 15 minutos, numa esquadra da polícia. Eu sabia que tinha o direito de não ser detida arbitrariamente, mas também sabia que o agente policial tinha o dever de não me deter arbitrariamente, por isso, solicitei-lhe que me facultasse uma determinada lei, que eu também tinha o direito de ver e ele tinha o dever de facultar. E isto tudo porque saí à rua em defesa de um trovador, que cantava às cinco horas da tarde, na principal rua comercial da cidade.
Um policial que por ali passava, entendeu que ele estava a fazer barulho e a incomodar os comerciantes e os transeuntes. Ora o trovador era o francês, Jack Deska, que cantava, belíssimamente, Joe Dassin e Jacques Brell. Assobiava divinamente, e as pessoas rodeavam-no absolutamente rendidas à sua arte. Tal como eu. Mas o polícia entendeu que ele estava a fazer barulho na rua e a incomodar, e a lei diz que não se pode fazer barulho na rua, nem incomodar (mas, nessa altura, só a partir da meia-noite). Meti-me na história, porque a considerei absurda, e disse ao polícia que os músicos de rua existem em todas as cidades civilizadas da Europa, e aquele estava a enfeitar a tarde, naquela artéria. A minha intervenção foi tida como arruaça na rua, e fomos os dois (eu e o trovador) parar à esquadra, a pé, escoltados por dois agentes, porque nos recusámos a entrar no carro da polícia, pois não nos considerámos criminosos, para entrar num carro policial.
O povo estava connosco, e seguiu-nos pelas ruas. Os agentes ouviram das boas. Já na esquadra, depois de nos termos identificado, o chefe apresentou ao cidadão francês um papel para este assinar. Eu fiz questão de o ler alto, pois o músico percebia mal o português, e ele tinha o direito de saber o que ia assinar. O que já deixou o polícia mal disposto. O que li era um absurdo e aconselhei-o a não assinar aquele termo de culpa, pois ele não tinha cometido nenhum crime público. O chefe da esquadra, abusando do seu poder, deteve-me imediatamente, por incitamento a desobediência à autoridade, dentro de uma esquadra da polícia. Eu conhecia a lei, e os meus direitos, e também os deveres do chefe da polícia, e os meus deveres. Então solicitei que me mostrasse a lei do ruído. E disse-lhe que quando saísse dali ia fazer queixa, aos seus superiores, da sua arbitrariedade. Cantar na rua às cinco da tarde, não fazia de ninguém um criminoso, por isso o cidadão francês, que não conhecia as nossas leis, não devia assinar um termo de culpa naqueles termos. Resumindo: o chefe da polícia esbravejou, mas a história acabou comigo e com o trovador, livres, fora da esquadra, quinze minutos mais tarde, sem grandes consequências imediatas, porque a história continuou mais tarde, e fez correr muita tinta. Mas naquele dia, foi o dever e a obrigação do agente policial e o seu abuso de poder, em confronto com os meus direitos e com os direitos do trovador, que estiveram em causa.
Por que refiro este episódio? Porque penso ser fundamental que todos conheçamos os nossos direitos e também deveres e obrigações, para podermos enfrentar as arbitrariedades num caso como este, e saber fazer ver às autoridades quais são os seus deveres, porque considero que a ignorância é a maior inimiga do ser humano, conforme exponho, num capítulo do Manual de Civilidade, dedicado a este cancro social – a ignorância, por isso, entendo que se deve investir mundos e fundos no Ensino e na Educação dos jovens, pois já lá dizia Voltaire: «Quanto mais esclarecidos forem os homens, mais livres serão», só que, ao que constatamos, os nossos governantes não estão interessados em que o povo seja esclarecido e livre, porquanto o ignorante não é capaz de contestar as suas arbitrariedades. Eis porque se investe tão pouco no ensino, na cultura, na educação.
Dir-me-ão, mas para cada direito está automaticamente implícito um dever, por isso, não é preciso falar-se em deveres. Na Declaração Universal dos Direitos Humanos, apenas no artigo 29.º se diz: «O indivíduo tem deveres para com a comunidade». E só. Mas que deveres? O dever de punir arbitrariamente? O dever de culpar? O dever de matar? O dever de aterrorizar? O dever de prender? O dever de guerrear? Que deveres? Este laconismo não serve os interesses dos cidadãos menos esclarecidos, e como ninguém nasce ensinado, é da Ética ensinar os que não sabem.
Penso que se falássemos mais nos deveres humanos do que nos direitos, o mundo seria um pouco mais equilibrado. E dentro desses deveres há um simples dito que poderia substituí-los e substituir todas as leis, todas as regras, todos os códigos, todos os castigos: e que é o preceito máximo utilizado desde a antiguidade por um ou outro líder religioso antes de Cristo e depois adoptado pelo próprio Jesus Cristo, que é: «Não faças ao outros o que não gostas que te façam a ti». Esta frase encerra e resume toda a Ética, todas as regras, todos os direitos, todos os deveres, todos os valores humanos e também não-humanos, e não seriam precisos nem polícias, nem leis, nem juízes, nem advogados, nem tribunais, porque cada um encarregar-se-ia de não maltratar o outro, simplesmente porque não gostaria de ser maltratado.
É esta regra que, como ser humano, tento seguir, e as leis dos homens não me dizem absolutamente nada. No Manual de Civilidade tenho um capítulo intitulado Ideias, Ideais e Ideologias, onde refiro que a minha lei, é a Lei Natural, porque é natural, que eu, como ser humano, me comporte de uma determinada maneira, de outro modo não poderei considerar-me um ser humano. Não sou daquelas que concordam com o ditame: errar é humano. Isso é um expediente para desculpar os erros do homem. Se errar é humano, então erremos, e estamos automaticamente desculpados. Mas será que errar é humano? Ponhamos a questão de outra maneira: será que é humano errar? Quando errar significa cometer um desacerto que prejudica terceiros, quartos e quintos? Não é, com certeza. Errar é desumano, quando quem erra insiste no erro. Quando muito, enganarmo-nos é humano. Ter um lapso é humano. Mas errar não pode ser humano.
Poderia estar indefinidamente a falar sobre tudo isto, mas como o meu objectivo é não esgotar o tema que me foi proposto, nem poderia, finalizarei com a leitura da primeira frase do epílogo do meu Manual de Civilidade: «Não me basta dizer sou um ser humano, preciso mostrar que o sou».
Isabel A. Ferreira