Este é o Mário Soares que recordo, o que me surpreendeu, e está representado nesta imagem (ao lado de Cunhal, que também me surpreendeu) e no que ela significou e significa (a imagem) na revolução de Abril.
Desde a sua morte, no passado dia 7 de Janeiro, já tudo se falou de Mário Soares: do nascimento à vida, da vida à morte, tudo já foi esmiuçado. Todos já deram o seu testemunho. Por isso nada tenho a acrescentar a esse tudo que já foi dito, a não ser que ninguém é perfeito. Mário Soares deixou-nos um legado de coisas muito boas, outras menos boas, e outras que poderiam ter sido boas se as tivesse feito (aliás, ainda ninguém foi capaz de as fazer) como, por exemplo, destruir os lobbies que mandam na Assembleia da República.
Porém, gostaria de deixar aqui um testemunho, que sendo o meu, vale o que vale, mas não pretendo repetir o que todos já disseram.
De todos os políticos que passaram pela minha vida, enquanto jornalista ao serviço de vários jornais diários nortenhos, durante vinte anos, tenho uma pequena história para contar.
De Mário Soares tenho a história do jesuíta.
Enquanto presidente da República, um dia, Mário Soares fez um périplo por algumas cidades do norte de Portugal, entre elas Santo Tirso e Vila do Conde. Em Santo Tirso ofereceram-lhe uma caixinha com jesuítas, o ex-libris da doçaria daquela cidade.
Naturalmente a caixinha viajou de Santo Tirso para Vila do Conde, nas mãos de algum segurança ou secretário.
Em Vila do Conde, depois de ter sido recebido no salão nobre da Câmara Municipal, seguiu-se um almoço, bastante informal (porque Mário Soares era pouco dado a protocolos, ou seja, não era um presidente-vedeta inacessível ao povo. Não, não era).
Os jornalistas foram convidados para esse almoço, e quem teve assento comeu, quem não teve não comeria (eu não comi). A mesa era rectangular e Mário Soares estava sentado à cabeceira, sozinho. Os restantes convidados, uns tiveram assento, outros não, porque, na verdade, a sala era demasiado pequena para a muita gente que Mário Soares sempre reunia à sua volta, por onde quer que passasse.
Os jornalistas rodeavam-no para não perder “pitada” do que dissesse.
Eu estava bem posicionada. Bem ao seu lado. Em pé. Comeu-se (quem pôde comer, obviamente) e chegado o momento da sobremesa, Mário Soares lembrou-se dos jesuítas. Onde estão os meus jesuítas? Logo um dos da sua comitiva passou-lhe para as mãos a caixinha dos jesuítas, que Mário Soares desembrulhou gulosamente (pareceu-me).
E lá estavam eles. Lourinhos. Apetitosos. Eu também era (sou) muito gulosa, e adoro jesuítas. Mas Mário Soares não sabia deste detalhe, obviamente.
O Presidente já tinha dado conta da minha presença, ao seu lado, pois de vez em quando dizia para não escrever tudo o que ele dizia, o que, pela minha parte, foi escrupulosamente cumprido (pois nunca fui de trair a Ética Profissional).
Diante dos jesuítas, Mário Soares arregalou os olhos e disse que não podia oferecer a todos, porque evidentemente não chegavam para todos.
Mas para não ser indelicado, quis oferecer, pelo menos um a alguém, para não ficar a comer sozinho aquela guloseima.
Foi então que olhou para mim e perguntou como me chamava. Isabel. Respondi. O nome da minha filha. Disse ele. E muito gentilmente pediu-me para que aceitasse um jesuíta e o acompanhasse nessa sobremesa, uma vez que não poderia partilhar esse gesto com todos.
Aceitei com muito gosto e senti-me uma privilegiada, por vários motivos: primeiro, porque ainda não tinha comido nada; segundo, porque adorava jesuítas; e terceiro, porque o Mário Soares que me tinha surpreendido ao lado de Álvaro Cunhal (que também me surpreendeu) naquela histórica manifestação de rua, tinha-me concedido a honra de comer um jesuíta com ele.
Esta é uma história banal? Pode ser.
Mas é uma história que fica na minha história, e onde eu sou uma simples figurante numa cena onde o protagonista foi obviamente Mário Soares.
Isabel A. Ferreira