Copyright © Isabel A. Ferreira 2009
Era um melancólico fim de tarde, já no longínquo mês de Setembro de 1991. Havia chovido e a rua encontrava-se cheia de poças de água, onde se reflectiam as nuvens.
Eu descia a Rua da Junqueira, na Póvoa de Varzim, em direcção a casa, tentando não molhar os pés, pois calçava sapatilhas. Seguia distraída com o leve burburinho que me rodeava.
De súbito, fui despertada por um assobio harmonioso, cristalino, fascinante, e depois uma voz doce e ao mesmo tempo vigorosa: «Ne me quitte pas, ne me quitte pas, ne me quitte pas...».
Segui aqueles sons, já completamente rendida à perfeição daquela interpretação, que não sendo do inigualável Jacques Brel, deveria ser de alguém com um espírito semelhante, ou sofredor de um mal de amor.
Uns passos mais adiante, deparei-me, então, com o dono daquela voz, que me fascinou, rodeado de uma pequena multidão. O som que me entrava na alma pregou-me ao chão, e ali fiquei, com os pés enfiados numa poça de água, escutando o Trovador, a interpretar Brel, magnificamente.
Que importava a rua, cheia de poças de água! Que importava o chão, o cimento, os ladrilhos feios, se estava diante de um Trovador, dos autênticos, daqueles que cultivam a música e a poesia, com amor!
Que importava a fealdade que me rodeava se eu tinha diante de mim a arte personificada?
Esqueci-me de tudo. E ali fiquei cativa da voz daquele menestrel do século XX, até que um aguaceiro me despertou para a realidade.
Havia descoberto um artista? Não resisti e aproximei-me do jovem, que entretanto se abrigara debaixo do toldo de uma ourivesaria. Precisávamos de conversar, disse-lhe.
Soube então, logo ali, que outros antes de mim o haviam descoberto: já fora duas vezes à televisão (aos programas «Às Dez» e «Bom Dia»); já saíra nas páginas d’ O Primeiro de Janeiro, do Diário de Coimbra e do Miroir de Paris.
Sim, era possível, porém, os “outros” haviam descoberto o cantor de rua, o goliardo leigo (que ele dizia não ser).
A mim coube-me descobrir, para além daquele olhar azul, límpido e pleno de nostalgia, o verdadeiro, o autêntico Trovador. O mensageiro da liberdade, da fraternidade, da igualdade. O arauto da paz, do amor, da paixão, mas também da raiva e da revolta contra as injustiças de uma sociedade imensamente desequilibrada e desarmoniosa.
Entrámos numa pastelaria, enquanto chovia, e foi aí que, subtilmente, fui entrando no mundo de Jack Deska, o Trovador.
Jack Deska nascera em Villepinte, uma pequena aldeia perto de Paris, em 1 de Maio de 1963. Depois de uma infância um tanto atribulada, decidiu correr mundo, levando consigo a sua viola (violão ou guitarra clássica), um amplificador e a sua arte de rua.
Um dia descobrira que a música era a chave para a felicidade e para a comunicação. Tímido, por natureza, sem a sua viola não conseguia comunicar.
Depois de ter vivido em grandes cidades como Amesterdão e Berlim, Jack passou por Ibiza, onde um agente da lei lhe sugeriu que “desandasse” dali e fosse para o «lixo da Europa», isto é, Portugal.
O Trovador pôs-se então a caminho. Quis conhecer o “lixo” de que lhe falara o agente. E foi nesse “lixo” (que Jack considerou o paraíso) que se fixou, durante cinco anos. Tinha vindo para ficar. Viveu durante algum tempo na “Pensão do Norte”, no Porto. Gostava do nosso país, porém, sentia que os jovens portugueses eram psicologicamente velhos.
Para muitos deles, a liberdade tinha o significado de “libertinagem”, o que para Jack era extremamente lamentável.
O Trovador cultivava a liberdade, tal como os pássaros. Não com asas físicas, mas com as asas do pensamento. Ele não era um marginal, só porque cantava na rua. Nem sequer um mendigo, pois nada pedia, quem quisesse atirava-lhe uma moeda para a caixa da viola.
Jack Deska era, sobretudo, um sonhador. Um idealista. Temia o sucesso (se algum dia viesse a tê-lo), porque a sua privacidade ficaria comprometida. Por isso, preferia as ruas para cantar Jacques Brel, Joe Dassin, Edith Piaf, Gilbert Becaud e as suas próprias composições. O sucesso talvez o privasse de ir comprar o seu queijo, todas as manhãs, um ritual que Jack não dispensava. E isso amedrontava-o.
Gostaria, sim, como qualquer cantor, de gravar um CD. E um dos seus sonhos era actuar no palco do Coliseu do Porto, onde Rui Veloso (de quem era um grande admirador) já actuara tantas vezes.
Eu, como sabia o que era sonhar e realizar sonhos, se ninguém o fizesse antes de mim, levá-lo-ia eu a actuar no Coliseu, num dos espectáculos que, anualmente, lá organizava para o público mais jovem. Era um sonho que o Trovador veria realizado. Prometi-lhe. Ele delirou.
Contudo, o seu sonho ficou por realizar. Morreu poucos meses antes de subir ao palco do Coliseu, como já estava programado.
Jack Deska tinha um companheiro: o seu inseparável ratinho branco, a quem carinhosamente chamava o Trovadorzinho, que, aninhado junto ao seu pescoço, de olhinhos fechados, ouvia, como que hipnotizado, a actuação do seu amigo, e a sua voz de menestrel e o seu fascinante assobio, semeando arte pelas ruas.
Um Trovador atravessou aquela tarde. Foram muitos aqueles que o viram e ouviram. Porém, de entre essa multidão, que lhe ia enchendo a caixa da viola com moedas, talvez ninguém tivesse se apercebido de que estava diante de uma alma poética, de um sonhador, de uma mensageiro da arte, e não de um simples “mendigo”, como o consideraram.
Um Trovador passou pela cidade, num fim de tarde, no já longínquo mês de Setembro de 1991 e, nesse dia, a arte enfeitou a rua...
***
Depois daquele encontro, eu e o Jack tornámo-nos grandes amigos. Vivemos impensáveis peripécias kafkianas, numa esquadra de polícia, onde estive detida por uns escassos dez minutos, por defender a Arte do Trovador.
Do Trovadorzinho, para quem o Jack arranjou uma companheira, fiquei com a recordação do meu Ratolinha, igualzinho ao pai, e também muito amoroso, que gostava de partilhar comigo a maçã do meu pequeno- almoço, e aninhar-se no meu pescoço, enquanto eu escrevia.
Um dia, Jack Deska conseguiu comprar um carro velho, para mais facilmente poder deslocar-se pelo país. Perdi-lhe o rasto, durante uns dois anos. Tinha ido para a Alemanha, de onde me enviou um postal, a dizer de si e das suas mágoas.
Passou-se algum tempo mais, já não me lembro quanto, descia eu a mesma rua, também num fim de tarde, talvez no ano de 1997, e tornei a ouvir um assobio, que me era familiar. Segui-o, como outrora. E lá estava o Jack, numa esquina, a cantar Et si tu n'existais pas, de Joe Dassin. Estava mais magro, mais velho, mais esfarrapado, mais amargurado.
Quando me viu, parou de cantar Dassin e passou imediatamente para Brel, com Ne me quitte pas... A minha canção preferida. E ali fiquei novamente pregada ao chão, rendida à voz e às palavras do Trovador.
Fomos depois lanchar à “nossa” pastelaria, onde me contou as suas desventuras por terras alemãs. Andava perdido. Fora para esquecer o seu amor impossível. Um músico de rua não convinha à “professorinha” que ele amava. A família dela era absolutamente contra aquele romance, e estávamos numa época em que o peso de uma sociedade conservadora impedia um amor assim, tal como no tempo de Romeu e Julieta.
Porém, a saudade da sua amada trouxera-o de volta a Portugal. Tinha esperança, agora que os tempos eram outros. Mas não resultou, uma vez mais. E uma vez mais ia partir. Desta vez para sempre. Confidenciou-me. E aquela foi a última conversa que tivemos, e a última vez que o vi.
Partiu para Villepinte, sua terra natal, na sua carripana.
Mais um tempo se passou, sem notícias. No dia 10 de Outubro de 1998, já ao fim da tarde, recebi um telefonema da sua “professorinha” (como ele amorosamente tratava a sua amada) a contar-me da sua morte, dias antes, no dia 7 daquele mês.
Desta vez, vinha de vez, para ficar com ela. Iam viver juntos em Coimbra. Ao atravessar Espanha, porém, numa auto-estrada, Jack sentir-se-ia mal e encostou o carro na berma, não muito distante de um Posto de Gasolina. Alguém reparou que aquele carro, já estava ali parado há demasiado tempo, e foram averiguar.
Jack Deska estava morto, debruçado sobre o volante.
A rua fora o seu lugar de vida. A estrada o seu lugar de morte. Talvez a emoção de vir, finalmente, ao encontro do seu grande amor, lhe provocasse o enfarte de miocárdio que o vitimou.
Devido à burocracia e à recusa da sua família em que fosse enterrado em Coimbra (como ele um dia preconizara, para ficar mais perto da sua amada) o seu enterro realizou-se quase um mês depois.
O féretro foi acompanhado ao som das canções que Jack celebrizara em vida e que o grupo de amigos, que o velou, cantou em sua homenagem, a caminho de uma campa, onde ficou sepultado, no Cemitério da Conchada, em Coimbra.
***
Por que evoquei, Jack Deska?
Porque foi num dia assim, como o de hoje, que o conheci. E hoje, ao descer aquela rua, não ouvi o seu assobio, nem aquele Ne me quittes pas, cantado com o coração em chamas, tal como Jacques Brel o cantava, por sofrerem ambos do mal de amor.
Além disso, este é um modo de manter vivo um Trovador excepcional, condenado ao esquecimento, por temer o sucesso, que o impediria de ir comprar o queijo, que partilhava com o seu Trovadorzinho, todas as manhãs...
Isabel A. Ferreira