Domingo, 27 de Dezembro de 2020

O Portugal troglodita: existem centenas de unidades de turismo cinegético no País apoiadas pelo Estado, onde se pode chacinar animais

 

«O massacre na Herdade da Torre Bela»  é uma excelente análise pelo Dr. António Garcia Pereira, sobre o massacre de 540 animais, às mãos de caçadores vindos de Espanha, e que não é caso único em Portugal.

 

«Para quem esteja convencido de o que aconteceu na Azambuja foi um caso único, existem centenas de unidades de turismo cinegético em Portugal apoiadas pelo nosso Estado, onde se pode chacinar animais talvez não em tão grande número e desde que se pague bem, até podem levar as crianças, é ver as fotos. Portugal tem 72% do território coberto com áreas de caça». (João Pedro Gericota Catalão in Facebook).

Consultar o link:

https://www.facebook.com/Entre-Veredas-Turismo-Cineg%C3%A9tico-342164699666902/

A quem quer enganar senhor ministro do Ambiente?

 

Matança em Évora.jpg

 

«O massacre na Herdade da Torre Bela»

 

Dr. Garcia Pereia.jpg

 

Por António Garcia Pereira

 

Foi há poucos dias conhecida – e apenas e tão só pela vanglória dos autores dessa façanha ao se arrogarem fazer-lhe publicidade – uma selvajaria sem limites, que merece uma análise e uma denúncia bem mais aprofundadas do que aquelas a que a – mais que justa, aliás – indignada emoção do momento permite. 

 

Com efeito, na passada quinta-feira, 17/12, na Herdade da Torre Bela, situada na zona da Azambuja, num troglodítico evento denominado “montaria”, organizado pelos proprietários da Herdade e pela empresa espanhola “Hunting Spain and Portugal, Monteros de La Cabra”, 16 caçadores espanhóis abateram, e de forma completamente bárbara, 540 animais de grande porte, entre veados, gamos e javalis.

 

Uma absoluta selvajaria que não é caso único

 

Esta absoluta e cobarde selvajaria foi, primeiro, levada a cabo sobre animais propositadamente encurralados pela técnica do “cercão”, ou seja, intencionalmente confinados numa zona sem grande vegetação e toda murada, logo, sem qualquer possibilidade real de fuga. Depois, foi exibida pelos autores da façanha, de forma completamente alarve, nas redes sociais, com a publicação de fotografias e legendas como esta: “We did it again! 540 animals with 16 hunters in Portugal. A total super record MONTERIA” (Conseguimos de novo! 540 animais com 16 caçadores em Portugal. Um total e super recorde MONTERIA). Publicações como esta foram, entretanto, apagadas (e o site da empresa espanhola desactivado) perante o clamor de protestos e denúncias que, muito justamente, se ergueu contra elas e numa mais que óbvia, mas tardia, tentativa de apagar o rasto digital da barbárie.

 

Indivíduos que se dizem caçadores e que, por força do dinheiro que têm, se puderam encher de gozo por aniquilarem centenas e centenas de animais de grande porte a quem prévia e deliberadamente cortaram todas as hipóteses de fuga e que, ainda por cima, se vêm depois gabar para as redes sociais desse seu “feito”, não podem deixar de merecer o maior repúdio e o mais profundo dos desprezos.

 

Mas a verdade é que situações como esta não apenas não são “casos isolados”, como são possibilitadas e até incentivadas por um regime legal que isenta as Zonas de Caça Turística (ZCT) de prévia autorização ou, sequer, informação às autoridades, e desde logo ao Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF), acerca deste tipo de eventos e que até permite que elas tenham os seus próprios guardas! 

 

E também por uma completa ausência de efectiva fiscalização, mais ainda sem aviso prévio, por parte do mesmo ICNF, sendo por isso que (apenas) agora o inefável Ministro do Ambiente, João Pedro Matos Fernandes – o mesmo que nunca soube de nada do que se passa habitualmente nas montarias ou, por exemplo, com as empresas que poluem o rio Tejo… –, veio anunciar que, com a casa já arrombada, irá enfim “pôr trancas à porta”, ou seja, fiscalizar as cerca de 1.500 Zonas de Caça Turística existentes no país e que até aqui têm estado em autêntica roda livre. 

 

Mas nas Zonas de Caça Turística também existem limites quantitativos definidos para os abates, e que constam dos chamados Planos de Ordenamento e Exploração Cinegéticos. E estes não são públicos!?

 

Acresce que a mesma empresa espanhola já publicara notícias e imagens de outras matanças, quer de animais de grande porte (como em Janeiro de 2017 e em Outubro de 2018, com veados e gamos), quer, por exemplo, de patos, gabando-se, em Dezembro de 2019 e sob o título “Ducks in Portugal”, do morticínio de 600 patos em 2 dias com apenas 5 espingardas e anunciando novas matanças em Março, Abril e Maio de 2020.

 

Por seu turno, o próprio ICNF dá autorização para o funcionamento de “quintas” (como, por exemplo, a conhecida “Quinta dos Penedinhos”) onde propositadamente se criam em massa animais, tais como coelhos e perdizes, apenas e tão só para depois serem largados e caçados às dezenas ou centenas.

 

E mais! Circulam na net, ainda que de forma mais reservada, várias filmagens, de uma barbaridade e ferocidade indescritíveis, de montarias e caçadas particulares, com uso de matilhas de cães esfaimados e até de veículos “quatro rodas”, bem como com a utilização de facas para apunhalar e degolar as presas, inclusive crias.

 

Deste modo, tentar apresentar o que agora se passou na Herdade da Torre Bela – e que apenas se conheceu porque os autores do morticínio, muito orgulhosos da sua cobarde façanha, se vieram gabar publicamente dela e publicar impressionantes imagens – como um caso único e afirmar que coisas destas não acontecem por este país fora, só a pura ignorância ou, pior, a refinada má fé se pode atribuir.

 

As hipócritas lágrimas de crocodilo

 

Face a tudo o que já se sabia, ou se tinha obrigação de saber, e a tudo o que não se fiscalizava, vir neste momento, como fez o Ministro do Ambiente, mostrar-se “chocado”, chorar lágrimas de crocodilo e afirmar que, agora, sim, é que descobriu que a Lei da Caça tem de ser alterada e que os serviços que ele próprio dirige têm de fiscalizar a sério, cheira à mais completa das hipocrisias.

 

Ficam assim bem a claro as razões que explicam o porquê de o regime legal e a actuação das entidades administrativas e de fiscalização terem regras e procedimentos mais apertados para a caça em geral, mas deixarem por inteiro à solta as sanguinárias “caçadas” dos ricos, que chegam a pagar 6, 7 ou 8 mil euros, como aqui terá sucedido, pela participação.

 

Mas é óbvio que, não obstante toda essa inconcebível largueza de movimentos conferida à “caça turística”, o que se passou na Herdade da Torre Bela é de todo ilegal, até porque a Lei das Bases Gerais da Caça[1], apesar de tudo, estabelece claramente que “o ordenamento dos recursos cinegéticos deve obedecer aos princípios da sustentabilidade e da conservação da diversidade biológica e genética no respeito pelas normas nacionais ou internacionais que a elas respeitem”[2]. Assim como estatui que “tendo em vista a conservação da fauna e, em especial, das espécies cinegéticas, é proibido (…) ultrapassar as limitações e quantitativos de capturas estabelecidos” [3], preceito legal este cuja violação é punida “com pena de prisão até 6 meses ou com pena de multa até 100 dias.”[4].

 

A Herdade da Torre Bela e o negócio da central fotovoltaica

 

A Torre Bela é uma Herdade com cerca de 1.700 hectares de área, com uma tapada (onde ocorreu esta matança), e é formalmente propriedade de uma empresa chamada Sociedade Agrícola da Quinta da Visitação (SAG, Lda), cujo objecto social é… a agricultura e a produção animal combinada, e à qual, já desde 2003, foi atribuída a concessão de outras Zonas de Caça Turística, a saber, as da Quinta de Santareno (na freguesia de Almoster) e da Quinta da Lapa (na freguesia de Manique do Intendente), numa área total superior a 305 hectares. 

 

Ora, é também a esta mesma Sociedade que está concessionada a Zona de Caça Turística onde se verificou o abate selvático, e é para esta mesma herdade (sobre cuja propriedade real recaem suspeitas de que – tal como, aliás, já referiu o próprio hacker Rui Pinto – ela pertença, na realidade, a … Isabel dos Santos) que está projectada uma gigantesca central fotovoltaica com a enorme área de 775 hectares, a ser explorada pelas empresas Aura Power Rio Maior S.A. e Neoen[5](através da CSRTB, Unipessoal, Lda), tudo isto representando um investimento há muito (pelo menos, desde 2009) querido pelos donos da quinta e no valor de qualquer coisa como 170 milhões de euros. 

 

Ora, o Estudo de Impacte Ambiental (EIA) desse empreendimento – que está neste momento, e até 20 de Janeiro de 2021, na fase de consulta pública, na chamada Plataforma Participa da Agência Portuguesa do Ambiente (APA) – aponta de forma muito clara, e precisamente no local projectado para ser ocupado pelos painéis da central, a existência dos animais de caça “que futuramente deixarão de ter habitat adequado dentro da Tapada”, pelo que, para a resolução desse problema, existirão apenas duas alternativas: a da transferência dos animais para outro local ou o seu extermínio. 

 

É claro que os promotores deste mega-projecto prometeram e prometem, à boca cheia, o respeito pela Natureza e a salvaguarda da biodiversidade, mas a verdade, nua e crua, de facto salta agora à vista. E assim, no Resumo não técnico do “Estudo de Impacte Ambiental das Centrais Fotovoltaicas de Rio Maior e de Torre Bela, e LMAT de Ligação”[6], pode mesmo ler-se o seguinte e muito (e agora ainda mais) significativo trecho:

 

A área onde se pretende instalar as Centrais Fotovoltaicas está integrada dentro do recinto murado da Quinta da Torre Bela, que corresponde a uma Tapada, a qual está integrada na Reserva de Caça Turística da Torre Bela. Esta reserva de caça possui espécies cinegéticas de grande porte, nomeadamente veados, gamos e javalis. A proprietária desta quinta, na expetativa da implantação deste Projeto das Centrais Fotovoltaicas tem desenvolvido ações para diminuir o efetivo dos animais. Alguns têm sido caçados, e outros têm sido transferidos para a zona murada que se localiza a nascente, onde não está previsto instalar qualquer elemento do Projeto. Prevê-se que previamente ao início das obras já estejam retirados da área afeta ao Projeto todos os animais de grande porte.

 

Para quem conhecia esta realidade era, pois, já previsível o que ali se preparava…

 

Os silêncios e as hipocrisias dos não inocentes

 

Contactada pela imprensa para se pronunciar sobre o vergonhoso extermínio, a já citada empresa espanhola “Hunting Spain and Portugal, Monteros de La Cabra” recusou-se a prestar qualquer declaração, o mesmo sucedendo com a sociedade agrícola cujo proprietário, segundo o jornal de informação regional “Verbo Local”, terá porém confirmado ao Presidente da Câmara da Azambuja a veracidade das fotos que haviam sido publicadas, mas invocando não saber quantos animais teriam sido mortos “porque quem organizou foi o filho”.

 

Para além do Ministro do Ambiente, também o referido Presidente da Câmara Municipal da Azambuja e os representantes das empresas que irão explorar a central fotovoltaica, logo trataram igualmente de manifestar a sua alegada “consternação” pelo morticínio.

 

Mas, entretanto, ficou a saber-se que, após diversas reuniões entre o governo e a Câmara Municipal da Azambuja, esta, na sessão do passado dia 22/09/2020, aprovou – com base na Proposta nº 78/P/2020, e com 4 votos favoráveis (todos do PS) e 3 contra (da CDU e do PSD) – a declaração de interesse público municipal[7] relativamente ao pedido apresentado pelas duas empresas promotoras da central fotovoltaica, mostrando assim e muito claramente o seu empenho na concretização de tal projecto. 

 

Logo de seguida, ou seja, em finais de Setembro e inícios de Outubro, foi realizada na Herdade da Torre Bela uma gigantesca operação de abate e de arranque de árvores, sobretudo sobreiros (que são uma espécie protegida), numa área de 750 hectares, para assim “limpar” o espaço necessário para a instalação de cerca de 640.000 painéis fotovoltaicos, destruindo ao mesmo tempo a esmagadora parte do habitat (e do refúgio) dos animais de grande porte ali existentes, ficando apenas uma estreita área de eucaliptos junto à EN 366. Assim se destruiu também o habitat natural de toda uma série de outras espécies, tais como répteis, ouriços, corujas e saca-rabos, para além de uma águia real ibérica (em vias de extinção), que, entretanto, desapareceu por completo daquela zona.

 

Sendo óbvio – desde logo pelo próprio teor do Estudo de Impacte Ambiental – que a existência e funcionamento da mega-central não era, nem é, compatível com a presença de animais, em particular de grande porte, e sendo a sua transferência um processo algo complexo e obviamente implicando custos, a solução “óbvia” para quem não olha a meios para atingir lucros – solução essa que só o Ministro do Ambiente finge não ver – foi o seu extermínio em massa por um meio que, ainda por cima, é altamente lucrativo pois representa o embolsar não apenas do dinheiro das inscrições dos “caçadores”, como também da venda da própria carne, a qual, apesar de não se conhecer a presença de veterinários para certificarem a respectiva qualidade alimentar, é sabido que é normalmente destinada a consumo humano e enviada fundamentalmente para a indústria de carnes e enchidos de Espanha.

 

Um caso de polícia e um caso de política

 

O massacre na Herdade da Torre Bela é, pois, e antes de mais, um caso de polícia que não se sanciona e muito menos se resolve com a mera (e logo anunciada) suspensão ou retirada da licença de caça à empresa concessionária. Até porque, beneficiando da prévia destruição do habitat que os defendia, encurralar centenas e centenas de animais numa área murada, logo, intransponível, e chaciná-los em massa constitui, inequivocamente, um crime previsto e punido no Código Penal[8] com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa até 300 dias (muito mais pesada do que a quase simbólica sanção da Lei de Bases da Caça). A que acresce também o crime do abate massivo das árvores, igualmente punido pela lei penal[9].

 

E agora vamos ver se o Ministério Público se mexe com a rapidez e a eficiência que a gravidade e o carácter repulsivo das condutas aqui em causa exige e impõe, ou se antes vai deixar (mais) este processo a aboborar, porventura até à prescrição do procedimento criminal, como lamentavelmente tem sucedido noutros casos, como, por exemplo, os de maus tratos a cães usados em corridas. 

 

Esta situação é também claramente demonstrativa da opacidade e, sobretudo, da hipocrisia dos responsáveis políticos (dos locais aos governamentais) que, sempre com grandes e ocas palavras sobre a “preservação do meio ambiente”, a “preservação da natureza” e a “gestão sustentada dos recursos”, para viabilizarem os projectos dos grandes interesses económico-financeiros e na ânsia de assim poderem receber algumas migalhas dos lucros com aqueles alcançados, não hesitam em viabilizar tais projectos, em declará-los de “interesse público” e em destruir, ou em permitir destruir, inclusive das formas mais violentas e repugnantes, esse mesmo ambiente e esses recursos naturais.

 

O vil metal é, de facto, uma coisa muito poderosa para quem não tem princípios…

 

António Garcia Pereira

 

[1] Lei n.º 173/99, de 21/09, com as actualizações do Decreto-Lei n.º 159/2008, de 08/08 e do Decreto-Lei n.º 2/2001, de 06/01.

[2] Art.º 3º, al. d).

[3] Art.º 6º, n.º 1, al. d)

[4] Art.º 30.º, n.º 1.

[5] A Neoen é uma gigante multinacional francesa da área das chamadas energias renováveis e, por exemplo, possui e opera parques eólicos em 11 países em 4 continentes distintos.

[6] Página 42, volume 5.

[7] Proposta n.º 278/P/2020, de 22/09/2020.

[8] Art.º 278º, n.º 1, al. a), que sanciona “quem, não observando as disposições legais ou regulamentares ou obrigações impostas pela autoridade competente em conformidade com aquelas disposições: a) Eliminar, destruir ou capturar exemplares de espécies protegidas da fauna ou da flora selvagens ou eliminar exemplares da fauna ou flora em número significativo” (sic, com negrito nosso).

[9] Art.º 278º, nº 1, al. b) do mesmo Código Penal.

 

 

publicado por Isabel A. Ferreira às 17:31

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