«O Homem é a espécie mais insana. Venera um Deus invisível e destrói a Natureza visível… sem se aperceber de que esta Natureza, que ele destrói, é o Deus invisível que ele venera» (Hubert Reeves)
Hubert Reeves é um astrofísico, cosmólogo e divulgador de ciência, nascido em 13 de Julho de 1932, em Montreal, Canadá.
Entrevista a Samuel Silva ao Jornal PÚBLICO:
Hubert Reeves: “Não acredito que os seres humanos possam exterminar a vida”.
Publicou Um Pouco mais de Azul há mais de 30 anos, o livro que o lançou numa carreira com mais de uma dezena de títulos de divulgação científica. Tem também uma carreira científica notável. Cosmólogo, nascido no Canadá, fez de França a sua casa depois de se ter sido escolhido para director do Centro Nacional da Investigação Científica.
As mãos de Hubert Reeves traem-no quando tenta abrir uma garrafa de água. Aos 81 anos, a destreza física começa a faltar-lhe, mas a forma enérgica como expõe o seu pensamento permanece intocada. Continua a ler as principais revistas científicas “por prazer”, mas também “por dever”: “Se as pessoas querem que eu seja capaz de lhes falar sobre as últimas novidades, preciso de estar actualizado.”
Reeves esteve na Porto Business School, na última quinta-feira, para uma conferência sobre Cosmos, Sustentabilidade e Responsabilidade, onde explora algumas das ideias do seu último livro editado em Portugal “Onde Cresce o Perigo Surge Também a Salvação” (Gradiva). Em breve deverá editar um novo livro sobre o mar, a Terra e as placas tectónicas, dedicado ao público juvenil.
P - Ainda fala de ciência com o mesmo entusiasmo que tinha nas primeiras palestras feitas nas noites das suas férias em França, nos anos 1970?
H. R. - Tanto quanto consigo ver, sim. Para mim é sempre muito importante poder falar de ciência.
P - Quando percebeu que a ciência podia ser interessante para uma audiência mais vasta?
H. R. - Era estudante e dava palestras em Montreal [Canadá]. Um dia fui dar uma palestra a uma escola de estudantes problemáticos. A directora da escola estava à espera que eles fossem grosseiros comigo ao ponto de ela e outro professor terem ficado à espera à porta, na expectativa de terem de me ajudar. Mas não houve problemas e para mim foi uma experiência agradável.
P - E nessa altura percebeu que a ciência não interessa apenas aos cientistas?
H. R. - Sim, em particular a astronomia. É um assunto agradável, porque fala para as pessoas. É uma área onde podemos compreender, fazer física, mas também podemos sonhar. E isso é um bom tema para uma audiência. Esta história passou-se no Quebeque, de onde sou, e encontro alguma similitude com Portugal. Temos uma história análoga: quando eu era miúdo, o Quebeque era uma região muito religiosa, onde o conhecimento e o ensino eram completamente governados pelos padres e pela Igreja. Em 1960, aconteceu o que chamamos a “Revolução Tranquila” e isto mudou completamente as coisas. Costumava ser ensinada às pessoas uma verdade eterna e, de repente, foram deixadas no vácuo. Por alguma razão, a astronomia tornou-se muito importante para preencher esse espaço. E encontro coisas muito semelhantes em Portugal, depois de 1974 e da Revolução dos Cravos. Passou a haver um grande interesse em olhar para as questões do Universo. Havia gente que vivia numa espécie de certeza e, de repente, teve a necessidade de pensar sobre estas coisas. Agora as pessoas estão sozinhas e não há uma autoridade que lhes diga o que pensar.
P - Na ciência, é sempre preciso ter dúvidas?
H. R. - Fundamentalmente, sim. Questionar tudo. Por que devo acreditar nisto? Em que devo acreditar? E, muito frequentemente, a ciência não dá a resposta. Uma questão simples sobre a bomba atómica: devemos fazer bombas atómicas? A ciência não responde a isso. Diz como se faz uma bomba, mas não diz se a devemos fazer.
P. - Desde a década de 1980, quando começou a publicar livros, houve mudanças na forma como as pessoas acolhem a ciência?
H. R. - A corrida à Lua abriu um grande interesse pela ciência e pela astronomia. E isto voltou a sentir-se agora com a exploração de Marte. Tinha sido dito que este interesse ia diminuir, que não ia haver um grande espectáculo como no tempo de [J. F.] Kennedy, [antigo presidente dos EUA], mas a Internet mostrou que o interesse das pessoas pelo tema ainda é muito grande.
P. - Está no campo da divulgação científica há décadas e publicou vários livros. Qual é a grande diferença que sente com a Internet?
H. R. - Todo o conhecimento está lá, o que não era de todo o caso nos anos 1970 ou 1980. O que não mudou é que continua a ser preciso alguém para intermediar. Mesmo que o conhecimento esteja lá, as pessoas que não conhecem não vão procurá-lo espontaneamente. E isso é um papel importante do “apresentador”, que é quem diz: “Aqui está alguma coisa que pode interessá-lo.” A Internet até tornou mais importante o papel do intermediário.
P. - Nos seus livros, torna interessante ler sobre o assunto. Por que é que isso importante?
H. R. - Se os livros tiverem apenas ciência árida, não vão despertar interesse em lado nenhum. A ciência diz-lhe alguma coisa acerca da sua origem e toda a gente está interessada em saber de onde vem e qual é a história. Mas é importante que alguém diga que a química, a física, a geologia, são todos capítulos desse sítio de onde alguém veio.
P. - Acredita que a divulgação tornou as pessoas mais conscientes da necessidade de ter conta as descobertas científicas?
H. R. - Tem de haver alguma coisa entre a religiosidade – num sentido absolutamente naïf – e a ciência pura. Não é preciso fazer parte de nenhum grupo evangelista, nem negar toda a possibilidade de espiritualidade. As pessoas hoje podem decidir por si.
P. - Como é que um homem de ciência vê o debate crescente nos EUA sobre o criacionismo?
H. R. - É ridículo. Nenhuma pessoa inteligente pode acreditar no criacionismo.
P. - Mas já há estados dos EUA onde há a possibilidade disto ser ensinado nas escolas.
H. R. - Acho que essa é mais uma questão política do que uma questão científica. Há uma pressão social e política de algumas pessoas com interesses. É difícil ver que um miúdo que tem algum cérebro possa acreditar que o mundo foi feito há 4000 anos. E é o caso. Acho que é inútil lutar contra o criacionismo.
P. - O debate na Europa acerca da utilidade da ciência também é uma arma política?
H. R. - Não vejo que seja esse o caso na Europa. Vejo antes neste sentido: acreditou-se durante todo o século XIX que a ciência traria felicidade ao ser humano e o século XX mostrou que não era assim tão simples. A ciência em si mesma não é garantia de tornar as pessoas felizes. E há uma decepção daqueles que pensaram que a ciência traria felicidade à humanidade.
P. - Todo o conhecimento tem de ter uma aplicação?
H. R. - É uma questão de escolha pessoal. Algumas pessoas, como eu, pensam que o conhecimento é importante por si mesmo, independentemente da sua aplicação. Queremos perceber este mundo, o que significa a vida. E algumas pessoas não estão interessadas nestas respostas. Mas há uma grande quantidade de pessoas que está interessada em ter um novo conhecimento na ciência. As pessoas têm o direito de saber como a ciência é uma descoberta.
P. - Como olha hoje para o seu primeiro livro, Um Pouco mais de Azul, de 1981 [editado pela Gradiva em 1983], e a sua primeira experiência na divulgação científica?
H. R. - Fico sempre muito contente quando algumas pessoas me dizem que foi importante para elas. Isso foi o que descobri, entretanto, porque quando lancei o livro não tinha ideia alguma do que aconteceria. Quando algumas pessoas me dizem que foi muito importante, que o tiveram na mesinha de cabeceira, isso é gratificante para mim.
P. - Ainda há pessoas que ficam chocadas quando diz que o Sol vai morrer em 5000 milhões de anos?
H. R. - Não, acham que é tempo suficiente.
P. - Mas quando se diz isso, parece haver uma ideia pessimista.
H. R. - Por que diz isso?
P. - Porque nos mostra que há um fim na vida.
H. R. - Não necessariamente. Há outras estrelas, algumas das quais viverão muito mais tempo do que o Sol. Isso não significa o fim da vida no Universo. O futuro longínquo da física do Universo está cheio de incertezas, mas não diria que possa dizer-se que é o fim. Será realmente um problema, mas há outras estrelas que continuam. Se houver vida à volta dessas outras estrelas, a vida pode continuar.
P. - No seu último livro diz que a beleza do mundo está ameaçada pelo ser humano. É uma ideia que explorou em O Tempo do Deslumbramento em que falava numa “pulsão de morte”. Estamos mesmo a caminhar para uma destruição da vida na Terra como a conhecemos?
H. R. - Não sabemos. O futuro é desconhecido. Não acredito que os seres humanos possam exterminar a vida. Ela é muito robusta, muito mais adaptável do que pensávamos antes. Encontramos sempre novas formas de vida que são muito mais resistentes do que pensávamos e por isso ela continuará.
P. - Mas não como a conhecemos?
H. R. - A humanidade poderá não estar lá. Os vírus e as bactérias, ninguém sabe. São muito robustos e podem viver muito mais tempo. A questão é o futuro do ser humano. Possivelmente, mais tarde, outra espécie animal poderá desenvolver inteligência. Há poucos milhões de anos, uma espécie recebeu um dom da natureza e uma inteligência fantástica e é hoje em dia este dom que ajuda estas pessoas a viver num ambiente hostil. Mesmo que a humanidade desapareça, ninguém sabe o que pode acontecer dentro de 100 milhões de anos.
P. - É como um historiador: pode entender o passado, mas não pode prever o futuro.
H. R. - Nesta área, podemos dizer quais são os perigos, mas é impossível dizer o que acontecerá. Quase sempre as pessoas tentaram fazer estas previsões e falharam.
P. - Como vê as alterações climáticas e o desentendimento entre os países nesta matéria?
H. R. - Pensamos que se a temperatura subir dois graus [Celsius], o clima deixará de poder ser gerido. As previsões actuais são mais próximas de uma subida de três ou quatro graus e isso vai tornar a vida extremamente difícil.
P. - Foi muito crítico com os discursos políticos sobre esta matéria. É importante começar a agir e não apenas produzir documentos?
H. R. - O Protocolo de Quioto foi uma tentativa positiva, mas o sucesso não foi o que se esperava. A questão é sempre dinheiro. O Canadá, que há uns anos era muito verde, agora descobriu petróleo em Alberta e mudou completamente de política. O dinheiro está primeiro.
P. - A conferência que deu no Porto foi complementada como uma apresentação de “boas práticas” de empresa portuguesas em termos de sustentabilidade. Este discurso chega de facto às empresas?
H. R. - Há progressos em muitos casos e esforços que vão no sentido certo. Não sou de todo pessimista nesse sentido. Mas há sempre esta questão de dinheiro. O exemplo que dou é o de Fukushima, no Japão. Como é que um país que tem os melhores engenheiros do mundo e alguns dos melhores cientistas, decidiu colocar um reactor nuclear numa das regiões sísmicas mais activas e protegê-la com um muro de seis metros, quando se sabe que um “tsunami” chega a 20 metros de altura? Se fosse no mundo em desenvolvimento, podia dizer-se que eles não sabiam, mas aqui não. A resposta é que a segurança e o lucro não andam juntos. Isto é puramente humano e será sempre o problema. As pessoas correm sempre risco para ganhar dinheiro e, às vezes, mesmo que o evento possa ser muito raro, ele acontece.
P. - O dinheiro e a sustentabilidade podem alguma vez ter um terreno comum?
H. R. - É o que esperamos. Mas quando olhamos para o que acontece, temos exemplos claros contrários.
P. - Os seus livros têm referências constantes à literatura e às artes plásticas. Como vê a relação entre a ciência e a arte?
H. R. - A ciência diz como é que o mundo funciona. É uma operação racional, mental. A arte é mais o sentido de maravilhamento do mundo, da imaginação. Ambas são fundamentais para o ser humano. Se alguém está apenas no mundo racional, “seca-se”. Se está apenas no da imaginação, enlouquece. São dois pilares para um desenvolvimento saudável dos indivíduos. Essas pessoas estão impressionadas com o mundo, a nossa vida, o nosso corpo. Mas quando se é um artista, não se está apenas a contemplar o mundo, está-se a usar este poder da imaginação para criar. O cientista é o que tenta entender com lógica, o artista é o que tenta recriar algo que faz as pessoas felizes.
P. - Há um par de anos publicou um livro para jovens. É diferente escrever para pessoas jovens e para um público adulto?
H. R. - Escrever para crianças é particularmente difícil. É preciso manter a todo o tempo o seu interesse e compreensão. Quando se escreve, é preciso ter um objectivo e ter sempre em mente que os leitores vão continuar a ler. A dificuldade é esta: se eu usar esta palavra, o leitor vai entender? Tem de se evitar que a pessoa que está a ler o livro pense que não é suficientemente inteligente para o entender.
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