Chamo a atenção para o facto de este texto, cuja leitura recomendo vivamente, porque além de excelente, está primorosamente bem escrito, ser da autoria de um jurista e professor universitário brasileiro, portanto, não é meu (para que não digam que eu é que ando sempre a implicar com o abrasileiramento de textos portugueses).
Soubessem os acordistas portugueses escrever tão apuradamente como Arthur Virmond de Lacerda Netto! Mas, lastimavelmente, os acordistas portugueses escrevem como meninos da primeira classe da escola básica.
Por ter sido escrito por um cidadão brasileiro, o texto está conforme a ortografia brasileira.
(Apenas para que os leitores se inteirem da semelhança entre a ortografia brasileira e a ortografia preconizada pelo AO90, destacarei a negrito, as palavras acordizadas).
Isabel A. Ferreira
Texto de Arthur Virmond de Lacerda Netto
«Livro português abrasileirado
A quem interessa manter sub-capacitados no idioma (vulto burros) muitos brasileiros?
Não se trata, apenas, de adaptar um texto; trata-se de privar o leitor brasileiro de elevar-se na sua capacidade de compreender textos.
Que tal, em Portugal, mediocrizarem-se as obras de José de Alencar, Machado de Assis, Carlos Drummond de Andrade, Manoel Bandeira, Caetano Veloso, Tom Jobim, Paulo Leminski, Paulo Freire, Márcia Tilburi, Rubem Alves, Olavo de Carvalho?? Você, provavelmente, não admitiria tal (…)
Adulteração, no Brasil, de livro português. A Ilíada, para jovens, de Frederico Lourenço.
O português Frederico Lourenço traduziu a Ilíada e a Odisséia, e as adaptou para jovens em prosa, versão legível, contudo, por gente de quaisquer idades.[1]
O texto publicado no Brasil (pela editora Claro Enigma; São Paulo, 2016) sofreu intervenções que descaracterizaram a tradução, tal como Frederico Lourenço a produziu. Substituiram-se as segundas pessoas (tu e vós) por você e vocês; inocorre qualquer mesóclise (presente no original); há substituições lexicais (como planear por planejar, escusado por desnecessário), alterações de pontuação e de construção frasal, para mais de certa loqüela típica do brasileiro, porém desusada pelos portugueses.
O que se lê no Brasil não corresponde, fielmente, à redação de Frederico Lourenço, aliás alheio às modificações, por que a editora é a responsável exclusiva.
As segundas pessoas, a mesóclise, os vocábulos, os advérbios de modo, existem para serem usados. São usáveis e corretos; pertencem à língua portuguesa e não exclusivamente a Portugal; é legítimo qualquer brasileiro servir-se deles.
Adaptou-se o texto ao público brasileiro, a fim de torná-lo (mais) compreensível por ele, máxime (supostamente) pelos jovens[2]; pretende-se que as pessoas leiam; almeja-se atrair o leitor, ao invés de o repelir; acomodou-se texto redigido para público português, ao leitor brasileiro, em face das peculiaridades idiomáticas deste em relação àquele; importam resultados financeiros positivos, na venda dos exemplares. Compreendo tudo isto. Não compreendo que se suprimam as segundas pessoas e a mesóclise; alterem-se frases, palavras e pontuação; ainda menos compreendo que a tal se proceda clandestinamente (em face do leitor), sem informação, no próprio livro, de se haver adulterado a versão original.
É mediante a leitura que se aprende o que se lê e o idioma; é pela leitura de textos como o original de Frederico Lourenço que os jovens e o mais público brasileiro encontrariam recursos do idioma de que andam deslembrados e que lhes seria enriquecedor deparar na literatura. Aliás, lê-se literatura de qualidade também como forma por excelência (porque altamente pedagógica) de se freqüentar a norma culta do idioma, de familiarizar-se com o seu uso e, por conseguinte, de elevar-se, o leitor, do seu conhecimento medíocre (se o for) ou corriqueiro, para as formas superiores do idioma e para as diferentes plásticas da expressão, em que consiste o estilo de cada autor.
Mesóclise, segundas pessoas, advérbios de modo, certa fraseologia, certos vocábulos e certo estilo, não constituem lusitanismos, porém recursos do idioma, que é enriquecedor encontrar em uso, conhecer e aprender (se o leitor os ignorava) ou deles relembrar-se (caso deles o leitor andasse desmemoriado).
Se circulam mais em Portugal, é porque lá ensina-se melhor o idioma, usa-se o que se aprendeu e zela-se pela qualidade do emprego do vernáculo, comparativamente mais do que no Brasil. (a)
Não há “idioma brasileiro”; há o idioma português, com peculiaridades de uso em Portugal e no Brasil (para ater-me a estes países lusófonos), que não chegam a distingui-los nem a tornar necessárias nem recomendáveis adaptações como as que se praticou.
As peculiaridades do português redigido em Portugal e as diferenças do seu uso, lá, são compreensíveis pelos brasileiros: prova-o o êxito, no Brasil, das obras de Saramago (no presente) e (desde o passado) das de Eça de Queiroz; prova-o a imigração de brasileiros para Portugal, nos últimos vinte anos; provam-no os oitenta mil imigrantes brasileiros em Portugal, presentes lá, em 2017.
Lamento as modificações que a editora Claro Enigma perpetrou. Publicasse, no Brasil, o texto original: no máximo, o leitor estranharia (estranhar difere de tresler) o “tu”, o “vós”, a mesóclise, porventura alguma colocação pronominal, estranhamento que rapidamente desvanecer-se-ia; os lusitanismos seriam facilmente esclarecíveis por notas de rodapé, cuja função consiste (também) precisamente em dilucidar o significado de termos virtualmente problemáticos. Qualquer edição de livro, nacional ou estrangeiro, em vernáculo ou vertido, minimamente séria, intelectualmente rigorosa e lingüisticamente zelosa, mantém o texto original e lhe glosa, quando necessário, os termos obscuros para o leitor.
Era imperioso que a editora Claro Enigma mantivesse o texto na sua versão original e lhe adisse, para o público brasileiro, notas de rodapé, relativas aos lusitanismos. Quanto a vocábulos que o leitor (qualquer leitor) desconhece (em qualquer livro), consultasse um dicionário, obviamente.
Alguns leitores, possivelmente, ao invés de lhes causar espécie as segundas pessoas, a mesóclise, os advérbios de modo, a fraseologia portuguesa e o estilo de Frederico Lourenço, deleitar-se-iam com a descoberta deles e ou com a experiência do contacto com eles, que virtualmente concorreria para lhes aprimorar a destreza no idioma e aguçar-lhes a percepção (b) dos seus recursos. Nisto, também, radica a virtude da leitura: em transcender-se, mercê de diferentes autores e estilos, o vocabulário, a fraseologia, o emprego dos recursos de expressão, em suma, a loqüela a que se acha circunscrito o leitor.
As adaptações privaram os brasileiros da experiência da transcendência; ao contrário, elas mantêm-nos no padrão idiomático brasileiro que eles, assim, não transcendem: a “nacionalização” propiciou ao leitor brasileiro mais do mesmo (para valer-me de lugar-comum português, já com algum curso no Brasil), ao invés do diverso e instigante (evidentemente, refiro-me às partes afetadas e não à totalidade do texto).
As adulterações constituem desserviço, em relação à parcela do público que se comprazeria com o texto original e aos leitores, em geral: elas privaram os brasileiros de contactar (c) com formas e recursos existentes no seu idioma, usáveis (e usadas em Portugal), que todo brasileiro deveria conhecer e de que pode servir-se. Livro esmeradamente redatado ou traduzido é instrumento de educação: a edição abrasileirada subtraiu-se desta egrégia função, na medida em que mediocrizou o texto, sobre haver desfigurado (em parte) a estética literária de Frederico Lourenço, ou seja, o componente idiossincrático que lhe individualiza o estilo. Em dadas passagens, o que se lê não corresponde ao texto e á plástica de Frederico Lourenço, porém ao texto dele deturpado.
Seria objetável alegar-se atenderem, as modificações, à realidade do (jovem) brasileiro, já desafeito a formulações “arcaicas”, “passadistas”, “lusitanas”, como “Tu fazes”, “Vós sois”, “Dar-lhe-ei”: porque desusadas, foram suprimidas, o que redunda em círculo vicioso: não se usaram porque não se usa; não se usa também porque não as usam os autores. Usassem-nas os autores: ainda que, por leitura dos seus livros, os leitores não as usem, pelo menos capacitar-se-ão, por hábito, a compreender melhor os que as usem e as usam.
Ainda que o brasileiro as desuse ou as use escassamente, elas existem no vernáculo, constituem ponto de ensino nas escolas e Frederico Lourenço utilizou-as: é o quanto basta para deverem ser conservadas intactas, bem assim a fraseologia dele. Eis porque a versão original serve, ótima e pedagogicamente, como leitura, nas disciplinas de Língua Portuguesa e ou de Literatura, no ensino médio.
A presença, no texto, das segundas pessoas, da mesóclise, de certa forma, lusitana, de construir e do estilo de Frederico Lourenço, não constituem óbices à sua leitura e compreensão por leitores brasileiros. Intrinsecamente, nada no texto justificava-lhe as intervenções; justifica-a, porém, certo ideário, de fundo marxista (e nacionalista-lusófobo?): suspeito de que o abastardamento da tradução de Frederico Lourenço filie-se ao entendimento propagado pelo já célebre (e, quanto a mim, funesto) livro “Preconceito Lingüístico” (de Marcos Bagno), de (a) haver pronunciadíssima diversidade entre os modos português e brasileiro de empregar o idioma e (b) de deverem, os brasileiros, proclamar a sua independência lingüística em relação a Portugal e à gramática tradicional.
Êxito de vendagem, nas suas mais de 50 edições; adotado, debatido e lido nos cursos superiores e não só, há três lustros, “Preconceito Lingüístico” terá sido o inspirador da malsinada adaptação, como afirmação de brasilidade lingüística, como realização de independência idiomática, como recusa da gramática tradicional, presente na plástica literária de Frederico Lourenço que, assim, representava, por excelência, o objeto do nacionalismo lingüístico.
Se assim não foi, se inexiste relação de causa e efeito entre as doutrinas de Marcos Bagno e a adaptação, se esta não constitui produto daquelas, mesmo assim foi escusada (para servir-me de voz que a adaptação expurgou e que substituiu pelo termo desnecessário) como iniciativa e desastrada como execução, pois desfigurou o estilo de Frederico Lourenço, empobreceu-lhe a forma, subtraiu dos leitores a possibilidade de toparem com certas riquezas do idioma.
Com que legitimidade, com que direito, com que autoridade uma editora manipula o estilo de um autor, rebaixa o uso dos recursos do vernáculo e priva o leitor de contactar com a plástica genuína do primeiro e com a riqueza do segundo?
Trata-se (sei-o), de adaptação de Homero para o português e não de criação original de Frederico Lourenço. Pode-se traduzir à portuguesa, à brasileira, à francesa, em coloquial, em culto: essencial é a fidelidade da versão ao original (no caso, Homero), ressalva até com que as adulterações não se legitimam. Foram dispensáveis e são censuráveis. Adaptação de Homero por Frederico Lourenço, é texto de Frederico Lourenço que importa respeitar.
Ao grande público, interessado em ler o livro, provavelmente pouco se lhe dão as deturpações no texto: interessa-lhe aceder à narrativa de Homero ao invés de apoquentar-se com variantes lingüísticas ou com o desdém por certas riquezas do idioma. Se o leitor brasileiro lê e compreende, a edição cumpre a sua finalidade; cumpriria melhor se mantivesse o nível de qualidade peculiar do texto original e, intacta, a loqüela de Frederico Lourenço. Cumpri-la-ia cabalmente se mantivesse, intocado, o original, a que adicionasse, em nota, esclarecimento da acepção (d) dos ocasionais lusitanismos: é como deveria ter procedido e é o que reputo óbvio.
É moralmente expectável (e) e exigível constasse, na página de informações editoriais, cuidar-se do texto de Frederico Lourenço modificado ou adaptado ao público brasileiro ou de versão abrasileirada do original e não, genuinamente, do próprio: seria manifestação de respeito pelo leitor e de honestidade editorial. Do respeito, ela se isentou; da honestidade, desdenhou.
Ela atuou com desonestidade editorial, por sonegar informação decisiva em relação ao que o comprador do livro adquire e ao que o seu leitor lê. Tal sonegação também induz em erro o leitor que, inadvertido, toma por lídima literatura portuguesa e obra de Frederico Lourenço o que não o é nas passagens espúrias.
Por descuido, a edição brasileira poupou do expurgo o lusitanismo “contributo” (sinônimo de contribuição).
A reproduzir-se a iniciativa, temo por que sobrevenham versões abrasileiradas de Camões, Fernando Pessoa, Eça de Queiroz, Camilo Castello Branco (f). Afinal, a lógica é a mesma. Se, a contrapelo, em Portugal, se lusitanizassem autores brasileiros, a exemplo de José de Alencar, Joaquim Manoel de Macedo, Machado de Assis, Euclides da Cunha, Lima Barreto, Carlos Drummond de Andrade, Caetano Veloso, Tom Jobim, Paulo Leminski, Paulo Freire, Márcia Tilburi, Olavo de Carvalho, etc., o erro seria o mesmo, o caráter espúrio do texto seria equivalente, o ludíbrio seria análogo, com a diferença da nacionalidade dos autores deturpados.
Assim se rebaixa a cultura de um povo (o brasileiro); assim se convém com o seu estado rebaixado de domínio idiomático. Assim se priva a juventude brasileira (destinatária nominal do livro) de aceder, genuinamente, à literatura de plástica portuguesa e ao verdadeiro estilo de um autor; de transcender o seu nível mormente raso de conhecimento e de uso idiomáticos, já tristemente típico das gerações brasileiras juvenis; de se deparar com o uso duplamente exemplar de certos recursos do vernáculo, no sentido de modelarmente correto e no de servir como estímulo para o seu uso.
Admito, como alterações legítimas, as de acentuação e de ortografia, à luz da reforma ortográfica, que introduziu discrepâncias em escassos vocábulos, entre Portugal e Brasil.
Oxalá não se perpetre atentado quejando nas obras de Antonio M. Hespanha (historiador do Direito), José Rodrigues dos Santos, Miguel Esteves Cardoso, Valter Hugo Mãe e outros, se é que já não se perpetrou (suspeito de que sim). Descreio que, em Portugal, se praticasse com autores brasileiros o que certos brasileiros praticaram com a Ilíada, de Frederico Lourenço.
Corrija, a editora Claro Enigma, o mal que praticou: suste a publicação da versão espúria e introduza a original; ao menos, publique também esta. Remende, a editora Claro Enigma, a desonestidade (por omissão) que pratica: introduza (na página 6) a informação de ser abrasileirada a versão que o é. Evite, a editora Claro Enigma, a repetição desta violência. Adotem, todas as editoras brasileiras, por princípio editorial o de reproduzir, intocados, os textos portugueses e inserir-lhes, em nota de rodapé, glosa de acepção: somente assim concebo que se publique, honestamente, literatura portuguesa no Brasil.
Adquira os livros nas suas versões genuínas, pela wook.pt
Na imagem, a capa da edição brasileira.
Em tempo: o livro S.P.Q.R. (história de Roma), de Mary Beard foi publicado em Portugal e no Brasil, em traduções distintas.
[1] Também as traduziu em verso.
[2] As versões “juvenis” são legíveis por jovens e por leitores de idades quaisquer, bem como as versões (do próprio Frederico Lourenço) em verso. Inexiste relação entre jovens e prosa, entre não jovens e verso; existe relação entre quem prefere o texto em prosa ou por ele se interessa e o lê, e entre quem se interessa pelo texto em verso ou o prefere e o lê, independentemente de idade. Por isto, melhor seria qualificar a versão “para jovens” de versão em prosa. Se se curou de estratagema publicitário, voltado a cooptar leitores juvenis, ele talvez haja atuado contraproducentemente em relação aos demais que, se não afugentou, absteve-se de atrair, ao mesmo tempo em que não é de se supor que o público pós-juvenil opte pela versão poética; ao contrário. Se o complemento “para jovens” deveu-se ao sincero intuito do autor, que terá feito questão de externizá-lo (como também ocorre na versão portuguesa), queda ele registrado nas capas da versão em prosa da Ilíada e da Odisséia, com a desvantagem de captação de interessados, como apontei na frase precedente.
Arthur Virmond de Lacerda Neto»
Fonte:
https://arthurlacerda.wordpress.com/2017/10/12/adulteracao-no-brasil-de-livro-portugues/
Notas da autora do Blogue:
(a) – Engana-se amigo Arthur. Hoje, em Portugal, já não se zela pela qualidade do emprego do vernáculo, nem pela Língua Portuguesa, que está a ser maltratada, mal ensinada, mal aplicada, à pala do AO90. O facilitismo da linguagem, para tornar ainda mais legível, o que já é legível, está a formar gerações de semianalfabetos (os que têm apenas os rudimentos da escrita e da leitura e não são capazes de ler e escrever correctamente) em Portugal, como no Brasil.
(b) – Em Portugal, escreve-se perceção, que é um mono linguístico, que ninguém sabe o que é.
(c) – Em Portugal, os acordistas escrevem contatar, vá-se lá saber porquê.
(d) – Em Portugal, os acordistas escrevem aceção, outro mono linguístico, sem significado algum.
(e) – Em Portugal, os acordistas escrevem expetável, mais um mono linguístico, seja o que isto for).
(f) – Versões abrasileiradas de Luís de Camões, Fernando Pessoa, Eça de Queiroz, Camilo Castelo Branco, Padre António Vieira e até de Saramago lamentavelmente já existem, como um insulto à memória desses escritores.
Isabel A. Ferreira
Como é que algo, que pertence ao mundo sanguinário dos mitos, continua a ser admitido numa época em que os mitos não passam disso mesmo: mitos?
A nossa realidade é bem outra, mas a tauromaquia que assenta num mito sanguinário, continua tão primitiva quanto nesses tempos que já se perderam no tempo.
Está mais do que na hora de abolir essa reminiscência que transforma o homem, dito moderno, na besta que o Touro nunca foi.
Foto: © Marie-Lan Nguyen / Wikipedia
«Tauromaquia: do grego ταυρομαχία. Combate com touros.
Cnossos, Creta: o berço dos primeiros eventos com touros originou uma das histórias mitológicas mais trágicas e fascinantes do mundo; a lenda do Minotauro ainda assombra-nos pela crueza dos acontecimentos, envolvida num acto de bestialidade que deu origem a um ser híbrido assassino de humanos.
Todavia, como poderá estar este mito interligado com as corridas de touros?
A religião minóica era recheada de rituais orientados para o culto da vegetação. A morte e o renascimento dos deuses, bem como a representação simbólica e sagrada de alguns animais, eram a base primordial da cultura religiosa praticada. O touro, como um dos animais sagrados, eram obviamente utilizados nos cultos, especialmente em combates.
A magnificência e imponência do animal não passaram de todo despercebidas, originando o mito perturbador do Minotauro: este, rapidamente, tornou-se no símbolo do animalesco, roçando a barbaridade, a irracionalidade e o caos.
É importante salientar que apesar da crueldade do Minotauro estar associada ao seu lado animal, tal afirmação é incongruente: sabemos que o touro não mata pessoas por bel-prazer e que, muito menos, alimenta-se delas. Já o caso muda de figura em relação ao próprio ser humano, que não hesita em matar o seu semelhante num piscar de olhos. Podemos, desta forma, considerar que a violência imensa do Minotauro deve-se mais pelo seu lado humano: todavia, assim como as mulheres, os animais eram utilizados nos mitos para representar uma esfera negativa, daí a conspurcação exclusivamente feminina nesta história (a relação física de Pasífae com um touro) e a simbologia da destruição aliada somente à figura do animal presente no Minotauro.
O mito
O rei Minos de Cnossos recebeu um touro branco, vindo dos mares, como aprovação do deus Poseídon pelo seu reinado. Apesar de ter conhecimento do dever de sacrificar o animal em homenagem ao deus, Minos ficou tão admirado pela sua beleza sobrenatural que decidiu mantê-lo e sacrificar outro na esperança que tal passasse incógnito.
A tentativa de ludibriar Poseídon falhou: este, furioso, lançou um feitiço a Pasífae, esposa do rei, para que esta se apaixonasse perdidamente pelo touro branco. A mulher solicitou a ajuda de Dédalo para conseguir envolver-se amorosamente com o animal. O artesão construiu uma espécie de vaca em madeira, cujo interior abrigava e disfarçava Pasífae.
O acto sexual deu origem ao monstruoso Minotauro: o seu crescimento suscitou problemas ao tornar-se cada vez mais feroz. Por ser fruto de uma união não-natural entre um humano e um animal não-humano não tinha qualquer fonte natural de alimento, atacando e devorando homens para a sua sobrevivência. Minos decidiu recorrer à genialidade de Dédalo para arquitectar um imenso labirinto próximo ao seu palácio, no qual o ser híbrido foi encerrado.
Fresco no palácio de Cnossos, representando o culto do touro através da prova da resistência física com as mãos nuas - 1500 a 1400 a.C.
Veja-se que o labirinto não é somente o símbolo da perdição: os minóicos detestavam espaços fechados - o palácio e as restantes residências apresentavam imensas divisões em aberto - e o facto de o labirinto ter paredes altíssimas que permitiam ver o exterior sem poder alcançá-lo constituía uma fobia extrema que levava à loucura. O Minotauro, como humano, sofria com a solidão: como touro, sofria com a claustrofobia imensa do ambiente. Sabe-se que os touros adoram estar em liberdade e que necessitam de luz solar para o seu bem-estar: num labirinto escuro e frio tal era inacessível ao ser mitológico. Essa dupla castração despertou a violência extrema que acompanhou o monstro até à sua morte. E é aí que a tauromaquia e o mito aproximam-se ainda mais.
Os gregos odiavam os cretenses. Acusavam-nos de mentirosos, arrogantes e traidores. O próprio poeta Homero quase nunca indicou o povo de Creta nos seus poemas, exceptuando n'A Ilíada - em que estes lutavam ao lado de Tróia.
O mito do Minotauro foi, então, transformado num conto heróico ateniense através de Teseu: o filho de Egeu ofereceu-se como sacrifício, relacionado com a taxa imposta por Minos, por este ter saído vencedor numa guerra contra Atenas. Essa taxa comportava a entrega de sete jovens rapazes e sete donzelas, a cada nove anos, para serem devorados pelo Minotauro.
Deste modo, o rei cretense dava a certeza que não repetiria qualquer ataque bélico à cidade grega.
Ariadne, filha de Minos, apaixonou-se por Teseu. Mortificada por este estar prestes a ser engolido pelo assombroso labirinto, entregou-lhe um novelo de lã para marcar o caminho e assim conseguir sair ileso. Munido de uma espada, Teseu entregou-se ao labirinto de pedra e matou o Minotauro com um único golpe, cortando-lhe a cabeça.
Esta viragem no mito influenciou a visão humana sobre o touro: os atenienses cortaram com o véu sagrado que protegia-o e sacrificavam-no num verdadeiro culto sanguinário. O touro era agora simbolizado como uma besta hedionda e perigosa e matá-lo era sinónimo de coragem e força: o presente perfeito para os deuses do Olimpo. Os combates com touros intensificaram-se, com os actos violentos a aumentar cada vez mais. Havia até um costume absurdo que implicava a morte de um touro: tal arrastava-se numa espécie de jogo de acusações para descobrir-se quem, na verdade, o matou (?!).
A tradição de utilizar o touro para eventos, que resultavam invariavelmente na sua morte, foi absorvida pelos romanos após a invasão, que também utilizavam variados animais nos circos mortais, e consequentemente enraizada na Península Ibérica. A tourada que hoje em dia continua a ser realizada é, de facto, fruto de uma cultura que negativizou a imagem do touro em detrimento de um povo que era odiado. Foi pela rivalidade e pela inimizade entre homens que o grande animal viu a sua vida a ser selvaticamente alterada ao longo dos tempos.
Mas quiçá, tal e qual como uma história tem um ponto final, a barbaridade que continua a ser-lhe administrada findará também.»
Fonte:
http://grito-silenciado.blogspot.pt/2014/02/o-paralelismo-entre-tauromaquia-e-o.html