Quinta-feira, 2 de Maio de 2019

«O português brasileiro precisa de ser reconhecido como uma nova língua»

 

Quem o afirma é o professor universitário, jornalista e escritor brasileiro Nelson Valente, num artigo publicado no Diário do Poder, sob o título «Acordo Ortográfico: Fracasso linguístico», que aqui transcrevo.

 

nelson-valente-11-e1530321066736.jpg

 

O texto está escrito segundo a grafia brasileira, preconizada pelo Formulário Ortográfico de 1943, um conjunto de instruções estabelecido pela Academia Brasileira de Letras, para a organização do Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa do mesmo ano. O texto do Formulário Ortográfico de 1943 é composto por duas partes: uma Introdução com 12 artigos que aclara os princípios de fixação para a grafia do português brasileiro; e as Bases do Formulário (17). Ora, a Base IV (a que mais interessa a Portugal) diz o seguinte: consoantes mudas - extinção completa de quaisquer consoantes que não se proferissem, ressalvadas as palavras que tivessem variantes com letras pronunciadas ou não.

 

Qualquer semelhança com a grafia que governo português impôs nas escolas portuguesas, a alunos portugueses, não é mera coincidência, é intencional.

 

(O negrito no texto do Professor Nelson Valente, é da minha responsabilidade, para que fique claro que essas palavras não fazem parte da Língua Portuguesa, e são exclusivas do português brasileiro, que o professor considera que deve ser reconhecido como uma nova língua, algo com que estou completamente de acordo, pelos motivos mais óbvios, bem como  para destacar o que me parece ser passível de ser destacável).

 

«ACORDO ORTOGRÁFICO: FRACASSO LINGUÍSTICO»

 

 Por Nelson Valente

 

«O Acordo termina com cem anos de guerra linguística entre Brasil e Portugal?

 

O português é a língua oficial em nove países da Europa, América, África e Ásia. A dispersão favorece as diferenças linguísticas. Éramos a única língua com duas ortografias diferentes oficiais.

 

De acordo com o Ministério da Educação, entre 2008 e 2012 foram gastos mais de 2,2 bilhões de reais para atualização de obras didáticas.

 

Quando o acordo foi assinado em 1990, os jornais portugueses se comprometeram a não aplicá-lo. Hoje só o jornal Público mantém a promessa. Que acordo é esse? O português brasileiro precisa ser reconhecido como uma nova língua. E isso é uma decisão política.

 

A Comissão de Educação da Câmara dos Deputados do Brasil aprovou um requerimento para “realização de Audiência Pública a fim de discutir a revogação do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.” O requerimento, aprovado no dia 25 de Abril, foi apresentado pelo deputado Jaziel Pereira de Sousa e ali subscrito pela deputada Paula Belmonte. Não dá para impor uma língua de uma hora para outra a um povo. O padrão da língua no Brasil deve ser a língua falada pela maioria da população brasileira contemporânea, que é o português brasileiro. Acordo Ortográfico: “aberrações”, “arbitrariedades”, “caos” e “fracasso linguístico”.

 

Um manifesto dos “Cidadãos em Portugal contra o ‘Acordo Ortográfico’ de 1990”, que é hoje revelado, afirma que este novo modelo de escrita abriu “uma caixa de Pandora”, criou “um monstro” e “não uniu, não unificou, não simplificou” o uso da língua.

 

O Acordo é um ato lesivo a nosso patrimônio cultural e o Estado não deve regulamentar a ortografia de um povo. A língua é uma força biológica: não se pode modificá-la com uma decisão política. Pode-se, quando muito, influenciar o uso. É uma função dos jornalistas, escritores e da mídia. Um bom uso mostra-se pela flexibilidade com que as palavras são aceitas. A língua é feita pelos povos, e não pelos Governos; mas está claro que, a ortografia, é mais de academias.

 

Qual era a necessidade de unificar? Entendemo-nos perfeitamente, não há problema algum. Deveriam respeitar o português daqui e o do Brasil. O Acordo só dificulta o ensino com seu contexto arbitrário e suas muitas opções facultativas. Não sou contra; sou a favor da revisão do Acordo. Se fizer uma mudança radical da ortografia, estará condenando um material histórico à obsolescência em uma geração.

 

Enquanto mudanças na ortografia derrubam acentos e confundem o sentido das palavras, antigas regras viram bloco de carnaval no Brasil. Enquanto as regras e contradições são discutidas e a nova norma não é obrigatória, as regras gramaticais viram alvo de brincadeira. Enquanto mudanças na ortografia derrubam acentos e confundem o sentido das palavras, antigas regras viram bloco de carnaval no Brasil. A situação atual é de um verdadeiro caos ortográfico.

 

“Saudade” não é exclusividade da língua portuguesa. A palavra “saudade” não é particularidade da língua portuguesa, ao contrário do mito que existe desde o século XVI. Na forma ou no sentido, há correspondentes em outros idiomas.

 

Porque derivada do latim, variantes da palavra existem em outras línguas românicas. O espanhol tem soledad. (*) O catalão soledat. O sentido, no entanto, não é o do português, está mais próximo da “nostalgia de casa”, a vontade de voltar ao lar.

 

A originalidade portuguesa foi a ampliação do termo a situações que não a solidão sentida pela falta do lar: “saudade” é a dor de uma ausência que temos prazer em sentir. Mas mesmo no campo semântico há correspondências. Por exemplo, no romeno, mas em outra palavra: dor (diz-se “durere”). É um sentimento que existe também em árabe, na expressão alistiyáqu ‘ilal watani. O árabe pode, até, ter colaborado para a forma e o sentido do nossa “saudade”, tanto quanto o latim.

 

O que ocorre com o dito Novo Acordo Ortográfico é que na verdade Portugal “colonizador” quer colonizar a língua portuguesa. (**) Veja o exemplo: A antiga Iugoslávia se fragmentou em seis pequenos países e a língua que, então era considerada uma só, o servo-croata, agora se chama bósnio, croata, sérvio, montenegrino… Mas, para esses nomes aparecerem, ocorreu uma guerra horrorosa, com muitas mortes, uma coisa terrível.

 

Nos Bálcãs, os sérvios e os croatas entendem-se. No passado, os que se revoltavam mais ferozmente contra o colonizador haviam estudado na metrópole. Pode-se massacrar uma população conhecendo-se perfeitamente sua língua e sua cultura.

 

A miscigenação no Brasil foi muito mais intensa e, evidentemente, a miscigenação linguística também. O português foi língua minoritária no Brasil durante todo o período colonial. Falava-se como língua geral o tupi e nossa população, até a época da Independência, era 75% mestiça.

 

Com os professores brasileiros nas condições em que estão – mal pagos, mal formados, essa mudança pode gerar alguma dificuldade de adaptação.

 

Este acordo é sobretudo político, fazendo com que os aspectos linguísticos, que deveriam estar à frente das preocupações dos redatores do acordo, quer em Portugal quer no Brasil, tivessem sido ou insuficientemente amadurecidos, ou demasiadamente sujeitos à lógica do acordo, o que implicou cedências, uma uniformização, mas não uma unificação. Não há uma norma absolutamente comum, não poderia haver.

 

Tudo o que tenho lido e ouvido sobre o Acordo Ortográfico revela quase sempre posições extremas, a favor ou, mais frequentemente, contra. É claro que todos têm o direito de se sentirem lesados com estas mudanças, afinal aprenderam a ler e a escrever as palavras da sua língua de uma determinada maneira, e essa maneira de escrever, que se tornou automática, é agora alterada. (***)

 

A ortografia, ou forma correta de escrever, é um esforço para encontrar uma norma, o menos ambígua possível, de registar graficamente os sons da fala; como tal, implica convencionalidade e até um certo grau de arbitrariedade.

 

Não é preciso que se escreva exatamente igual para que haja entendimento mútuo e não é porque se estabeleceu uma regra comum que se falará perfeitamente igual em todos os países. Do ponto de vista político, essa é uma má política linguística. É importante respeitar as diferenças no modo como as pessoas falam.

 

Um aluno do interior perguntou-me se deveríamos condenar a linguagem popular, “pois esse pessoal fala de forma inadequada”. Fo necessário esclarecer a diferença entre linguagem popular e regionalismos. Primeiro, as expressões, apesar de inovadoras, podem vir a figurar em dicionários e vocabulários de transmissão da norma culta ou padrão, sem nenhuma dificuldade. Os regionalismos são sempre aceitos.

 

Em segundo lugar, temos a questão controvertida da chamada popular. O filólogo Antonio Houaiss (in memorian) chegou a popularizar o verbete “mengo”, diminutivo do clube mais popular do Brasil. Mas, ele jamais aceitaria adotar a palavra “probrema” ou “areoporto” – e dar-lhes o status de uma expressão legítima do português contemporâneo.

 

Vê-se, pois, que há uma abissal diferença entre linguagem popular e regionalismos.

 

A prosódia, que é a forma de dizer a palavra, tem total liberdade, não se devendo exigir que um gaúcho fale com a mesma pronúncia do que um paranaense.

 

O que, em virtude do Acordo de Unificação da Língua Portuguesa, que é eminentemente ortográfico, passemos a impor a Portugal ou Angola, por exemplo, o nosso gostoso e incomparável sotaque. (****)

 

Cada povo que cuide das suas peculiaridades prosódicas. Mas escrever de uma forma é medida de inteligência e simplificação, que já vem tarde.

 

Nelson Valente

Fonte:

https://diariodopoder.com.br/acordo-ortografico-fracasso-linguistico/?fbclid=IwAR3P4nxwRyLW0koQU5RDazEsNryRtS2kijBZPJhLg7qRksG0llyGNBTbkgo

 

***

Notas:

(*) Se o Professor Nelson Valente me permite, as palavras “soledad” e “soledat” significam mais “solidão” do que saudade. No Diccionario Cúspide de la Lengua Española lê-se: Soledad 1. Carencia de compañía. 2. Lugar desierto o tierra no habitada. 3. Pesar que se siente por la ausencia, muerte o pérdida de alguna persona o cosa (no sentido de consternação); 4. Tonada andaluza de carácter melancólico; 5. Copla que se canta y danza que se baila con esta música, o que não corresponderá exactamente à nossa saudade, aquele sentimento indizível. Podemos sentir saudade sem solidão. Estarmos melancólicos ou pesarosos sem sentir saudade.

 

(**) O que se passou foi que Antônio Houaiss chamou Portugal para uma aventura ortográfica, em que a sílaba tónica era introduzir a grafia brasileira em Portugal, com a ilusão de unificar o que jamais seria impossível de unificar, entre outras razões Houaiss não fez mais do que puxar a brasa para a sardinha do Brasil. E Portugal não fez mais do que deixar a brasa pender para o lado brasileiro. Não chamarei a isto uma pretensão de Portugal “colonizador” colonizar a Língua Portuguesa. Direi antes que é uma patetice de Portugal deixar-se colonizar pela língua brasileira. Não será?

 

(***) Aqui peço desculpa, mas as coisas não podem ser vistas deste modo. Todos, particularmente os Portugueses, os mais prejudicados com este acordo, temos o direito de nos sentirmos lesados pelas substanciais mudanças na grafia portuguesa (os Brasileiros ativeram-se apenas aos acentos e à hifenização, todos os outros implica a supressão de consoantes mudas) não porque aprendemos a ler e a escrever as palavras da nossa Língua de uma determinada maneira, que se tornou automática, e é agora alterada, mas fundamentalmente porque a Língua Portuguesa foi abrasileirada (refiro-me à supressão das consoantes mudas) o que afastou o Português da sua matriz greco-latina, da sua família Indo-Europeia; desaportuguesou-se a Língua Portuguesa, e tornaram-na abrasileirada. Por que se fosse apenas a questão do aprender, não seria uma questão, porque os seres humanos ou são dotados da capacidade de aprendizagem ou não são. Se são conseguem aprender e desaprender com a maior facilidade. Se não conseguem não saem da cepa torta.

 

Eu aprendi a ler e a escrever no Brasil, com a grafia de 1943, e nas minhas vindas para Portugal e idas para o Brasil, na infância, adolescência e juventude, ora escrevia à brasileira, ora escrevia à portuguesa, e isso nunca foi impedimento para seguir os meus estudos com notas razoáveis. Domino o que chamo a Língua Brasileira tão bem quanto domino a Língua Portuguesa, porque quer queiramos quer não, existem substanciais diferenças entre uma e outra, na fonética, na sintaxe, no léxico, na construção frásica.

 

(****) Devo dizer que também considero gostoso o sotaque brasileiro, inconfundível em todo o mundo, tão inconfundível que ninguém diz que estão a falar português, mas dizem que estão a falar brasileiro. Por isso, Professor Nelson Valente, também penso que o Português Brasileiro deve ser reconhecido como uma nova língua: a brasileira, oriunda do Português, tal como o Português é oriundo do Latim. A evolução das Línguas passa por esta metamorfose, não por unificações impraticáveis.

 

Isabel A. Ferreira

 

publicado por Isabel A. Ferreira às 18:30

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Segunda-feira, 23 de Julho de 2018

«Reflexões sobre a história da "Língua Brasileira"»

 

O futuro (já presente) da Língua "Portuguesa" no Brasil.

  

Encontrei esta preciosidade na Internet.

Todos sabemos que o AO90 preconiza a grafia brasileira, assente na Base IV do Formulário Ortográfico de 1943, que vigora no Brasil desde então até aos dias de hoje.

 

Tenho andado por aqui a dizer aquilo que sei: mais dia, menos dia, a Língua Portuguesa deixará de existir, se o AO90 vingar, e transformar-se-á em Língua Brasileira, defendida pela linguista brasileira Eni P. Orlandi, no livro cuja capa ilustra este texto.  

 

E querem saber? Concordo plenamente com a Eni P. Orlandi, porque o que se fala e escreve no Brasil distanciou-se de tal modo do Português, que já não pode ser chamado de Português.

 

Uma entrevista conduzida por Manuel Alves Filho, muito interessante, oportuna e muito, muito esclarecedora, e que vem ao encontro de tudo o que tenho andado a escrever por aqui…

 

Isabel A. Ferreira

 

Livro-Eni.jpg

 

Entrevista realizada a Eni P. Orlandi, por Manuel Alves Filho (manuel@reitoria.unicamp.br) ao JORNAL DA UNICAMP, em Agosto de 2009, e escrita conforme a grafia brasileira, exactamente a que o AO90 impõe.  Destaquei a negrito as palavras que as nossas crianças são obrigadas a escrever como “portuguesas”, sendo, afinal, pertenças do Brasil. E isto não se faz! Repare-se igualmente na estrutura das frases. E destaquei igualmente os argumentos racionais apresentados pela linguista.

 

 «Reflexões sobre a história da "Língua Brasileira"»

 

«A língua falada e escrita atualmente no Brasil distanciou-se de tal modo do português, em consequência das mudanças que sofreu através dos tempos, que hoje já é possível falar em uma língua brasileira, que tem forma e características próprias. A hipótese é defendida no livro Língua Brasileira e Outras Histórias – Discurso sobre a língua e ensino no Brasil, de autoria de Eni Orlandi, professora do Departamento de Linguística do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Unicamp. A obra, que resulta das pesquisas realizadas pela docente ao longo dos últimos 20 anos, trata, entre outros aspectos, de como esta língua brasileira e o conhecimento sobre ela foram constituídos historicamente.

 

De acordo com a linguista, o português europeu começou a sofrer mudanças desde que os primeiros colonizadores aportaram por aqui.

 

A partir de então, passou a incorporar elementos das línguas indígenas, africanas, de imigrantes e de fronteira, e a se transformar também em sua materialidade, no embate com a materialidade do novo mundo e de sua história, processo que culminou com a composição de uma língua rica e com suas singularidades.

 

“O que eu trabalho, no campo teórico, é que temos diferenças suficientes tanto na materialidade da língua quanto no âmbito discursivo que já nos permitem falar em uma língua brasileira. Nós produzimos discursos diferentes, com sentidos igualmente distintos. Nossos processos de significação também são diferentes. Ou seja, nossa língua está muito distante daquela que era ou ainda é falada em Portugal. E veja: não se trata de patriotismo. É apenas uma questão de reconhecer as mudanças. Penso que é chegado o momento de produzirmos teorias próprias, atuais, que levem em conta e permitam compreender o processo de colonização e as consequências em relação às línguas, e não mais usar as teorias de países colonizadores que, na maior parte das vezes, estacionam em um sentido de “mudança” próprio para falar da mudança do latim para o português, o francês etc., mas têm pouco a dizer sobre a mudança do português para o brasileiro”, afirma. Na entrevista que segue, Eni Orlandi fornece mais detalhes sobre as reflexões presentes no livro.

 

 Foto: Antoninho Perri

ENI.png

A professora e linguista Eni Orlandi, autora de Língua Brasileira e Outras Histórias – Discurso sobre a língua e ensino no Brasil: “Penso que é chegado o momento de produzirmos teorias próprias

 

Jornal da Unicamp – Como surgiu a ideia do livro?

 

Eni Orlandi – O livro é resultado dos projetos de pesquisas que tenho desenvolvido ao longo dos anos. A produção da obra propriamente dita, porém, remonta aos cinco últimos anos. Ela coincide com o período em que cresceu a discussão em torno da relação da nossa língua com as outras línguas, por conta do fenômeno da mundialização. No texto, eu trato de várias questões, mas creio que o ponto principal é a discussão em torno de como a língua se constitui e como a história do conhecimento sobre essa língua também se constitui. No meu entendimento, esses dois processos ocorrem conjuntamente.

 

JU – O título do seu livro registra “língua brasileira”. Nós já não falamos mais a língua portuguesa?

 

Eni Orlandi – A língua falada actualmente no Brasil é muito diferente da falada em Portugal. O que eu trabalho, no campo teórico, é que temos diferenças suficientes tanto na materialidade da língua quanto no âmbito discursivo que já nos permitem falar em uma língua brasileira. Nós produzimos discursos diferentes, com sentidos igualmente distintos. Nossos processos de significação também são diferentes. Ou seja, nossa língua está muito distante daquela que era ou ainda é falada em Portugal. E veja: não se trata de patriotismo. É apenas uma questão de reconhecer as mudanças. De situar-se diante do quadro de relações internacionais de estados e línguas, ou seja, de saber avaliar as questões postas pelo multilinguismo. Penso que é chegado o momento de produzirmos teorias próprias, e não mais usar as teorias de países colonizadores sem refletir sobre o lugar dessas teorias na história das ciências e na história social.

 

JU – As diferenças são tão profundas assim?

 

Eni Orlandi – São, sim. Mas essas diferenças não têm merecido a devida atenção. Alguns autores até falam dessas distinções, mas as classificam como “variedades”. Penso que não estamos mais no momento de falar em variedades, pois isso não mostra que falamos uma língua própria. Temos que falar em mudanças. Por que admitimos mudanças entre o latim e o português que se constituiu na Europa, mas não fazemos isso em relação ao português e a língua falada no Brasil?

 

JU – A recente reforma ortográfica teria sido uma forma de resistência a essa discussão sobre língua brasileira?

 

Eni Orlandi – De certa forma. Penso que precisamos rediscutir o que é lusofonia. Temos que pensar a lusofonia como um campo heterogéneo de línguas. É preciso tratar das diferenças entre a língua brasileira e o português, assim como das diferenças do português para o latim. Ambas são filiadas ao latim, mas são distintas deste. Mas veja: não se trata de negar a filiação da nossa língua, mas sim de destacar as singularidades dela. Ou seja, lusofonia é um campo heterogêneo de línguas que resultaram do processo de colonização, mas que se “independentizaram” ao longo do tempo. A língua brasileira é filiada ao português, que por sua vez é filiado ao latim. Ocorre, porém, que nossa língua também traz elementos das línguas indígenas, africanas, de imigração e de fronteira. Temos uma língua que se individualizou à sua maneira no processo de sua historicização.

 

JU – Pela sua hipótese, o português começou a sofrer transformações desde que os primeiros colonizadores aportaram em terras brasileiras. É isso?

 

Eni Orlandi – Quando os portugueses aportaram por aqui, eles depararam não apenas com seres diferentes, mas também com uma variedade de línguas faladas pelos índios e com um mundo muito diferente do seu. Esses portugueses precisaram nomear coisas que não conheciam, que não estavam na memória linguística deles. Precisamos lembrar que, naquele momento, nomear era também administrar. Ou seja, o que não era nomeado poderia fugir ao controle. Assim, os primeiros colonizadores perceberam que não poderiam manter a língua portuguesa como ela era, pois precisavam se fazer entender. Havia, enfim, um mundo novo a ser descoberto, a ser conquistado, a ser nomeado. Aí já ocorrem as primeiras transformações da língua. A materialidade do mundo começa a interferir na materialidade da língua e vice-versa.

 

JU – Ou seja, a língua tem uma dimensão política e ideológica importante.

 

Eni Orlandi – Exatamente. É nesse embate político, ideológico e social que a língua vai sendo constituída. Para poder administrar, os portugueses foram obrigados a alterar a própria língua e a dominar a língua dos indígenas. Entretanto, no início da colonização as autoridades portuguesas começaram a perder o controle sobre os próprios patrícios, que passaram a dominar as línguas indígenas localmente e a formar pequenos feudos, nos quais davam as cartas. Para superar essa dificuldade, a corte portuguesa enviou os jesuítas ao Brasil, com a missão de colocar “ordem” e dar visibilidade deste país para a coroa. O que os religiosos fizeram? Eles pegaram uma das línguas indígenas, o tupi, e a adaptaram, mesclando com um pouco do português e do latim. Foi criado, assim, o tupi-jesuítico, língua geral que foi falada no Brasil todo. No entanto esse processo se voltou contra a própria corte, pois os jesuítas passaram a ter um enorme controle sobre a população brasileira e sua língua. Daí sua expulsão dos religiosos e a proibição de se escrever nessa língua. Mas nenhuma língua desaparece sem deixar traço. Como se vê, as mudanças vêm de muito tempo.

 

JU – Essas transformações não foram apontadas anteriormente? Por que só agora está surgindo uma discussão mais ampla sobre a existência de uma língua brasileira?

 

Eni Orlandi – Com a independência do Brasil, eclodiu um movimento, promovido por gramáticos, de organização de um conhecimento sobre a nossa língua que já mostrava essas modificações. Mas o mais importante naquele momento não era tanto destacar descritivamente essas diferenças, e sim reivindicar o reconhecimento à nossa escrita, à nossa literatura, ao conhecimento produzido por brasileiros, nossos gramáticos, sobre a língua no Brasil, à nossa língua nacional, sinal de nossa soberania. Assim, foram produzidas gramáticas e dicionários com o objetivo principal de legitimar uma língua nacional, que obviamente pudesse nos representar no plano internacional. Ocorre que essa língua chamava-se língua portuguesa. Assim, as obras receberam títulos como “Gramática Portuguesa”, “Gramática da Língua Portuguesa” e “Gramática Brasileira da Língua Portuguesa”. Mas no final do século 19 e principalmente no início do século 20 é que gramáticos como João Ribeiro e Said Ali registraram com maior destaque essas transformações da língua. Said Ali, por exemplo, escreveu um livro chamado “As dificuldades da língua portuguesa”. Essas dificuldades nada mais eram do que as diferenças entre o português do Brasil e o de Portugal. É a partir da análise do discurso desses especialistas que eu mostro como temos diferenças, que já vêm sendo registradas por gramáticos, sobretudo desde o século 19, que nos permitem falar em língua brasileira, embora isso quase nunca seja dito.

 

JU – Se a questão quase não tem sido discutida no plano intelectual ou acadêmico, imagino que em sala de aula ela sequer é considerada. É isso mesmo?

 

Eni Orlandi – Um dos objectivos do livro é atingir o ensino. Os linguistas são muito fechados nesse sentido. Eles resistem em chamar a nossa língua de língua brasileira. Ainda em razão da ideologia da colonização, há professor que considera como “língua correta” o português de Portugal. Acham que, no Brasil, a língua é mal falada. Nada disso. Nós temos nosso padrão. Como disse anteriormente, o nosso falar sofreu influências das línguas indígenas, africanas, de imigração e de fronteira. Isso não é defeito, muito pelo contrário. Não só por essas influências, mas porque é próprio de uma língua que ela mude, que nossa língua, como qualquer outra, também mudou. É assim que as línguas se constituem. As línguas estabelecem relações entre si. É isso que confere riqueza e singularidade a cada uma. Ademais, a língua conta a sua própria história. Não podemos ficar parados na época da colonização. Penso que o livro contribui para essas discussões. Nesse sentido, ele é provocativo: propõe, de certo modo, que nos livremos dessa camisa-de-força que já está posta na maneira como nomeamos nossa língua.»

 

Link desta entrevista:

http://www.unicamp.br/unicamp/unicamp_hoje/ju/agosto2009/ju437pdf/Pag03.pdf

 

publicado por Isabel A. Ferreira às 19:30

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Domingo, 24 de Junho de 2018

QUANDO UMA LINGUISTA CONFUNDE O CONCEITO DE REFORMA ORTOGRÁFICA COM CÓPIA DE GRAFIA ESTRANGEIRADA NÃO FICARÁ TUDO DITO?

 

LINGUISTA.jpg

 

Diz-se que Margarita Correia é linguista e especialista em lexicologia, ou seja, estuda as palavras como se as colocasse num microscópio. Professora da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa foi recentemente eleita presidente do Conselho Científico do Instituto Internacional da Língua Portuguesa (IILP) um organismo da CPLP, e proferiu esta sentença inacreditável: sensacional: «As reformas ortográficas não são feitas para os velhos. São feitas para o futuro».

 

A senhora linguista até tem razão. As Reformas Ortográficas são feitas para o futuro. Contudo, a senhora linguista esqueceu-se de especificar que Reformas Ortográficas e para o futuro de quem.

 

Primeiro, o AO90, não é uma reforma ortográfica, mas simplesmente uma cópia (mais acento, menos acento, mais hífen, menos hífen, mais , menos , mais , menos ) da grafia brasileira, saída do Formulário Ortográfico de 1943 efectuado no Brasil, portanto, antes da Convenção Ortográfica Luso-Brasileira 1945, que o Brasil assinou, mas não cumpriu, tendo atirado ao caixote do lixo esse compromisso.

 

Bom, e é a cópia desse Formulário Ortográfico de 1943 (mais acento, menos acento, mais hífen, menos hífen, e meia dúzia de pês e cês que não emudeceram no Brasil) que a senhora linguista considera reforma ortográfica, e, na verdade, ela não foi feita para os velhos, mas também não foi feita para os novos, porque simplesmente não existiu reforma alguma.

 

O que se fez foi pegar na actual ortografia brasileira, em vigor desde 1943, modificar-lhe uns acentos e uns hífenes, para disfarçar, chamaram-lhe acordo ortográfico de 1990, engendrado por Malaca Casteleiro (Portugal) e Evanildo Bechara (Brasil) e que apenas os serviçais portugueses aplicam, e que realmente se destina ao futuro, mas ao futuro dos futuros analfabetos.

 

Francamente, senhora linguista! Esperava-se muito mais de quem estuda as palavras como se as colocasse num microscópio… Ao que parece, o microscópio de V. Excelência é cego.

 

Para quando a extinção da CPLP e da IILP, dois organismos completamente dispensáveis, porque absolutamente inúteis?

 

Isabel A. Ferreira

 

Fonte:

https://www.jornaldenegocios.pt/weekend/detalhe/margarita-correia-as-reformas-ortograficas-nao-sao-feitas-para-os-velhos-sao-feitas-para-o-futuro

 

publicado por Isabel A. Ferreira às 15:52

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Em defesa da Língua Portuguesa, a autora deste Blogue não adopta o Acordo Ortográfico de 1990, devido a este ser inconstitucional, linguisticamente inconsistente, estruturalmente incongruente, para além de, comprovadamente, ser causa de uma crescente e perniciosa iliteracia em publicações oficiais e privadas, nas escolas, nos órgãos de comunicação social, na população em geral, e por estar a criar uma geração de analfabetos escolarizados e funcionais.

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