Copyright © Isabel A. Ferreira 2008
1
— Que me dizes Feijãozinho? Começo esta história por Era uma vez...?
...
A pergunta ficou sem resposta, porque, na verdade, Feijãozinho não existia. Era apenas alguém inventado por Anjelito, quando este teve de se refugiar entre os ramos de um belo, frondoso e florido jacarandá, o único que havia naquele bosque, no dia em que no vale, mais abaixo, a sua aldeia fora visitada, logo pela manhã, por uns homens feios, rudes e maus, de cujas mãos Anjelito vira sair um fogo que tudo destruía.
A mãe ainda teve tempo de lhe gritar:
— Foge Anjelito! Corre para a montanha. Lá estarás a salvo do fogo! Logo que possa, irei ter contigo. Foge! Corre... Refugia-te no bosque...
Imaginem... a salvo do fogo! Anjelito bem sabia o que isso era. Um dia queimara-se, quando brincava ao redor de uma fogueira e, durante muito tempo, não pôde utilizar a mão direita. E as dores foram tantas!
A mãe ensinou-lhe então, na altura, o valor das mãos. Disse-lhe ela:
— As mãos servem para plantar e colher o arroz que nos alimenta; servem para construir a casa que nos abriga do Sol e da chuva; servem para fabricar as roupas com que cobrimos o nosso corpo, e os utensílios de que precisamos para o nosso dia-a-dia; e servem também para afagar os meninos bons e inocentes como tu. Por isso, devemos cuidar bem das nossas mãos e não fazer mau uso delas.
Não fazer mau uso delas! Não fazer mau uso delas! Este ensinamento, mais do que todos os outros, ficara-lhe no ouvido, a soar como um badalo de sino. Agora via sair fogo das mãos daqueles homens! E isso, Anjelito não entendia! Então, retornava à sua dúvida:
— Não, Feijãozinho, desta vez não posso começar esta história por Era uma vez...
Anjelito lá teria a sua razão, mas não a contou a Feijãozinho, que nada lhe perguntou, por ser apenas alguém inventado, ou talvez porque lhe fosse indiferente o modo como as histórias começam.
Desde que o menino se refugiara no jacarandá, não havia feito outra coisa senão repetir as histórias que a sua mãe costumava contar-lhe, não só para o distrair, como também para lhe proporcionar um naco de magia, pois na aldeia não havia escola, nem livros, nem televisão, nem rádio, nem cinema, nem circo... Nada que pudesse divertir meninos. Apenas um quotidiano feito de uma penosa existência.
Anjelito, apesar de ter somente oito anos, ajudava a mãe na árdua tarefa de plantar o arroz, a base da alimentação das gentes daquela aldeia. E era mais nesses momentos que, no intuito de manter a criança alheada da dura realidade, a mãe lhe contava aquelas histórias com começo, mas sem meio e sem fim.
Foi assim.
Um dia, era a mãe ainda uma menina, apareceu na aldeia uma senhora, vestida de branco e, na cabeça, trazia um chapelinho com uma cruz vermelha. Vinha vacinar as crianças. Dissera. Era preciso, por causa das doenças. Mas ai! Tinha de se levar uma pica. A mãe de Anjelito ainda se lembrava muito bem daquele dia.
— Não dói nada – dissera a senhora vestida de branco.
E enquanto vacinava as crianças, e para que estivessem distraídas e a picadinha fosse esquecida, a senhora, que parecia uma princesa, embora nunca ninguém tivesse visto uma princesa, ia contando histórias como esta:
— Era uma vez uma menina muito linda que foi levar uma merendinha à casa da sua avozinha, que morava do outro lado da floresta. E a menina lá ia saltitando como um passarinho e cantando cantigas às flores do caminho. De repente, apareceu-lhe um lobo...
Ou então esta outra:
— Era uma vez uma pata choca, que chocou muitos ovinhos. Ora quando teve de ser, dos ovinhos começaram a sair, um a um, uns patinhos remeladinhos, mas muito bonitos e a fazer quá-quá. Entre eles, estava um igual a todos os outros, excepto na cor – era todo preto – e, por causa disso, foi logo ali considerado muito feio e rejeitado pelo Pai Pato, que o pôs lago fora, sem dó nem piedade. Pobre patinho!...
E eram estas e muitas outras histórias que a mãe de Anjelito lhe contava, porém, nunca as acabava. Não sabia. Não se lembrava. Por vezes, confundia-se e baralhava todas as histórias. Já passara tanto tempo! E elas – as histórias – foram tantas quantas as crianças que se vacinaram, ou seja, muitas, de tal modo que até dava para encher duas ou três salas de aula, se na aldeia houvesse uma escola.
Ainda assim, o menino gostava de ouvir a mãe contar:
— Era uma vez... uma bruxa muito má que se punha diante do espelho e perguntava: «Diz-me espelho meu, há no mundo, alguém mais bonita do que eu»?... Ah! Não me lembro do resto da história, Anjelito, mas penso que havia uma menina mais bonita do que a bruxa e então esta fez uma maldade qualquer e transformou a menina num sapo... Ou não seria num sapo?...
— Não faz mal que não te lembres, mãe. Do que eu gosto mesmo é de ouvir-te dizer: Era uma vez... Era uma vez...
Não fazia mesmo qualquer mal. O que interessava, naqueles momentos, era o som das palavras. Era a voz da sua mãe. Era a entoação que ela dava àquele era uma vez..., que o fazia entrar num mundo fabuloso, mágico, cheio de personagens, às quais a sua fértil imaginação de criança ia dando contornos e colorido.
Isto quebrava a monotonia das horas que passava a enterrar o arrozeiro naquelas águas, molhado quase até à cintura. Porque era preciso.
Cabia às mulheres e às crianças mais crescidas da aldeia plantar o arroz, cultivar os campos e cuidar da horta, do pomar e dos animais, porque os homens, ninguém sabia aonde, lutavam contra uns outros homens que invadiram a sua terra para lhes tirar a liberdade e fazê-los seus fantoches, impondo leis desumanas, através do terror.
Era o que a mãe lhe dizia quando o menino perguntava onde estava o pai.
Todos viviam muito pobremente. Trabalhavam para o sustento do dia-a-dia. O que comiam era da mão para a boca. Ali nada era armazenado, à excepção do arroz e do milho que cada um semeava, colhia e guardava em lugar seco e seguro, porque nem todos os meses eram meses de cultivo. Também não havia lojas. Nem hospitais. Nem ruas. Só casas feitas de barro e cobertas de colmo, dispostas desordenadamente.
Na aldeia ninguém sabia ler. Nem escrever. Ninguém conhecia os números. Quando ficavam doentes, quem tinha cura, curava-se com ervas que colhiam no bosque. Quem não tinha cura era levado numa nuvem branca, por um anjo vestido de luz, para um dos muitos jardins do paraíso, que todos na aldeia sabiam existir lá, junto às estrelas.
Esta era a crença daquele povo.
Às vezes, vinham umas senhoras, vestidas de branco, que usavam na cabeça um chapelinho com uma cruz vermelha, e pareciam princesas, embora ninguém soubesse como eram as princesas, e traziam comida e remédios, e contavam histórias de encantar, onde fadas boas, gnomos, princesas e príncipes, reis e rainhas, bruxas más, lobos e raposas, e muitas outras personagens povoavam a imaginação das crianças, permitindo um pouco de sonho e de fantasia ao seu viver.
A mãe de Anjelito contara-lhe um dia que o seu maior desgosto era não saber ler, nem escrever, nem fazer contas como aquelas senhoras que vinham de fora, mostrando-lhe que havia outro mundo, do qual pouco ou nada sabia. Desse mundo ela guardava, quase religiosamente, um livro muito bonito, que lhe dera uma dessas senhoras.
Eram algumas folhas de papel cheias de figuras desenhadas, onde havia uns homenzinhos pequeninos ao redor de uma menina muito linda, numa floresta, e uma casinha também pequenina, onde mal cabia a menina, pois tudo era à medida dos homenzinhos... Havia também um belo jovem que vinha a cavalo, enfeitado com penachos de todas as cores. E no livro estavam escritas palavras, mas essas não as sabia ela decifrar.
Nesse dia, a mãe de Anjelito mostrara-lhe aquela relíquia, a única que tinha, e a qual guardava, desde a infância, numa caixa de lata, rectangular e colorida, enfeitada de flores, e que uma outra senhora, vestida de branco, lhe dera, cheiinha de bolachas com recheio de chocolate.
— Vê como é lindo, o livro! Se soubéssemos ler, poderíamos viver esta história, juntamente com estes homenzinhos, esta menina e este jovem, que deve ser um príncipe... Ah! Se a vida me tivesse dado oportunidade! Talvez pudesse ser como a menina desta história, e ter um final feliz! Mas eu não tive vez, Anjelito, e temo que também tu não venhas a ter vez, por isso, a nossa história poderá não ter um fim feliz!
Este livro foi ilustrado por alunos do 4º ano, da Escola EB1 Nº 2 da Póvoa de Varzim (10 €)
Pode ser adquirido através do e-mail: