IV e última parte
(Contestação do Livro «1808», de Laurentino Gomes)
(2ª edição corrigida e aumentada)
© Isabel A. Ferreira
(Este texto não pode ser reproduzido, no todo ou em parte, por qualquer processo mecânico, fotográfico, electrónico, ou por meio e gravação, nem ser introduzido numa base de dados. Difundido ou de qualquer forma copiado para uso público ou privado, além do uso legal como breve citação em artigos e críticas, s em a prévia autorização por escrito da autora)
(Imagem © J. A. Ferreira)
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DE COMO NÃO PODE HAVER REQUINTE LONGE DA CIVILIZAÇÃO
«Graças a D. João VI os estrangeiros descobriram o Brasil, ainda que com três séculos de atraso». Deste modo começa o capítulo 21, do «1808», intitulado «Os Viajantes».
Pergunto: quando alguém descobre que no seu quintal há um inesgotável tesouro enterrado, sai por aí a contar aos vizinhos cobiçosos, e abre o portão do quintal para que entrem e vão usufruir do seu tesouro?
A ideia seria essa. É condenável? Aos olhos da época não era. Os Portugueses, se não sabiam, suspeitavam de que o Brasil era um manancial de riquezas. Se alardeassem tal descoberta, os Ingleses, os Franceses, os Holandeses e os Espanhóis “caíam-lhe em cima”, como mais tarde veio a acontecer.
As crónicas dos viajantes da época valem o que valem. Muita subjectividade e parcialidade. Informações duvidosas. Se quisermos acreditar, acreditamos. Senão quisermos, procuramos outras fontes.
A Rose Marie, citada no livro, demonstra ter poucos conhecimentos de História, pois ao dizer que «pena que um país tão lindo (o Brasil) não seja colonizado por uma nação activa e inteligente» referindo-se a Portugal, e mais adiante: «Os brasileiros destacam-se pela abundância, mais do que pela elegância do serviço», mostra desconhecer a realidade da época. Será que essa senhora nunca teria visitado as colónias francesas, em África? Ela viu o que viu no Brasil. Contudo, era assim no Brasil e nas colónias dos outros povos, inclusive do seu próprio povo. Em algumas delas, bastante pior.
Longe da velha Europa, onde a civilização já ia bastante mais adiantada, quem poderia refinar-se? Quando estamos fora das nossas raízes, num lugar remoto e selvagem, que sentido teria o requinte? Lembremo-nos de que o Brasil, quando foi descoberto, era povoado aqui e ali por tribos indígenas, num estado primitivo, que surpreendeu os Portugueses, ainda que ditos ignorantes, por Laurentino Gomes. De facto, o Brasil era um território imenso e selvagem. Na Europa, foram precisos muitos séculos para se chegar ao requinte dos palácios. Como, nuns meros trezentos anos, poderia erguer-se uma corte luxuosa, numa terra ainda colónia e inexplorada?
Quando se refere no livro que Dom João se exibiu (no sentido pejorativo do termo) de coroa e ceptro, não fez mais do que aparecer aos seus súbditos, como era costume dos reis, de todos os reinos, desde tempos imemoriais.
É de lamentar que as fontes citadas (na esmagadora maioria inglesas) não apresentem uma visão global da época, e se refiram ao Brasil como um lugar de analfabetos, pobres e preguiçosos. A América espanhola, da época, poderia ser também desse modo caracterizada, bem como alguns estados norte-americanos do Sul, onde a exploração dos escravos foi sistemática e cruel, e as colónias dos Impérios Britânico, Francês e Holandês.
Para estas descrições humilhantes para a corte portuguesa e para o próprio povo português, tenho apenas três explicações: ignorância, preconceito e má vontade (para não lhe chamar xenofobia) das fontes.
No capítulo 24, intitulado «Versalhes Tropical», o que sobressai é o sarcasmo. Fala-se em monumentos falsos e efémeros (construídos no Rio de Janeiro) para celebrar a corte. Por que haveria o rei português de construir monumentos perduráveis, num país que, mais tarde ou mais cedo deixaria para trás? Veja-se os extraordinários monumentos, alguns deles, Património da Humanidade, construídos no pequeno e tão maltratado Portugal, para se aferir da grandiosidade e do bom gosto que predominavam na corte portuguesa, antes e depois de Dom João VI. De qualquer modo, os monumentos brasileiros, hoje classificados pela UNESCO como Património Mundial, são todos de origem portuguesa.
Se durante o reinado deste Dom João as coisas não correram tão bem, as circunstâncias que motivaram tal declínio e que não foram tidas muito (ou mesmo nada) em conta no livro «1808», daria para escrever outro livro.
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DE COMO PORTUGAL NÃO PERDEU A HONRA NEM ESTEVE NUNCA ABANDONADO
O capítulo 25, de «1808», trata de «Portugal Abandonado».
Ora, enquanto a corte portuguesa permaneceu no Brasil, Portugal não esteve propriamente abandonado. Antes de partir, Dom João nomeou uma Junta de Regência, para substituí-lo na sua ausência. E o marechal irlandês Beresford, por decreto real de 7 de Março de 1809, foi nomeado generalíssimo do exército português, e comandou Portugal em nome do Príncipe (é preciso que isto se diga deste modo, não vá pensar-se que os Ingleses governaram Portugal, por moto próprio) e foi ainda Dom João que o mandou ocupar a Ilha da Madeira para que Napoleão não se instalasse nela.
Portanto, os Ingleses “governaram” Portugal, apenas porque Dom João o consentiu. É preciso dizer-se igualmente que os Ingleses apoiaram Portugal. Sim. Desinteressadamente? Claro que não. Os Ingleses (como qualquer outro povo, naquela época e em todas as épocas) nada faziam sem contrapartidas. E para não perder Portugal (para os Franceses e Espanhóis) e as suas colónias (para os Ingleses), Dom João viu-se obrigado a reduzir Portugal a colónia da antiga colónia (Brasil) elevada a reino. Tratou-se de um jogo se não bem planeado, pelo menos bem jogado. Uma boa estratégia política para manter o reino e a coroa.
Tudo tinha (e continua a ter) o seu preço: ficar tinha um preço; partir tinha outro preço. Partir traduzia-se na esperança de manter a grande colónia brasileira e a integridade da soberania real. Contudo, devido às circunstâncias da época, esta opção significava também a guerra com a França (Portugal sofreu três invasões, todas repelidas pelos ditos fraquinhos portugueses) e a dependência de Inglaterra, evidenciada na abertura dos portos brasileiros ao comércio internacional, nomeadamente aos Ingleses (os que mais lucraram).
Tanto na partida para o Brasil, como no regresso a Portugal o medroso Dom João só demonstrou coragem.
Entretanto o país esteve a saque. Sim. E os civilizados franceses roubaram e destruíram tudo o que puderam. Chegaram até a saquear e a mutilar os magníficos túmulos de Dom Pedro e de Dona Inês de Castro, que se encontram no não menos magnífico Mosteiro de Santa Maria de Alcobaça, Património da Humanidade, construído pelos monges Cistercienses, no século XII.
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DE COMO DOM JOÃO VI NÃO SE LIVROU DE SER HUMILHADO
No capítulo 26, «O Retorno», Dom João é novamente humilhado desnecessariamente, desta vez, pelo ilustre historiador José Honório Rodrigues, que diz: «D. João prestou o juramento (da nova Constituição) a meia voz, balbuciante, com aquela covardia que lhe era própria». Penso que covardia é um termo muito forte e desajustado ao momento. De regresso ao seu reino, fragilizado pelas circunstâncias, a palavra mais correcta para definir o estado de espírito de Dom João seria certamente desânimo. Dom João regressou a Portugal contrariado, velho e cansado de uma viagem que, na altura, não se desejava nem aos inimigos. Por ele, tinha ficado no Brasil. Politicamente as coisas não iam bem. Além disso, era um homem essencialmente tímido. Sempre houve e haverá homens assim (tímidos). A timidez não implica, necessariamente, covardia. Se formos ler a biografia de grandes músicos, grandes actores, grandes pintores, grandes reis, grandes escritores, encontramos o adjectivo tímido demasiadas vezes. Então por que rotular o desventurado Dom João com essa alcunha de má catadura? No entanto, foi este covarde o único monarca da Europa e arredores que teve a coragem de enganar Napoleão, conforme o próprio Napoleão admitiu.
Então o que, neste capítulo, diz Oliveira Martins (um vencido da vida, pessimista por vocação e anti-monárquico) é intolerável: «Já velho, pesado, sujo, gorduroso, feio e obeso, com o olhar morto, a face caída e tostada, o beiço pendente, curvado sobre os joelhos inchados, balouçando como um fardo (…) (D. João) era (…) uma aparição burlesca». Laurentino Gomes deveria saber “peneirar” as suas fontes.
Nunca vi destilar tanta intolerância por um ser humano. Simplesmente por ele ser Rei, e o cronista, socialista republicano? Desconfio sempre das fontes que têm cor política. Ainda hoje se mantém essa mentalidade pequena, de não aceitar o passado, tal como ele foi. Há pouco tempo, a 1 de Fevereiro de 2008, aquando da passagem dos 100 anos sobre o assassinato do rei Dom Carlos I e de seu filho, o Príncipe herdeiro Luís Filipe, o muito democrático governo português recusou-se a fazer um minuto de silêncio, na Assembleia da República, por tão trágico acontecimento. De um gesto de solidariedade, a título póstumo (que não ficava mal a ninguém), por alguém que fez parte da nossa História e foi assassinado, passou-se a um acto político despropositado e pouco recomendável. Mas as democracias têm destas coisas menos democráticas e impolidas.
Diga-se igualmente, que a República Portuguesa, teve na sua génese um duplo assassinato, facto que nada abona a seu favor.
Regressando à descrição de Oliveira Martins: bastava a Dom João ser velho, para tudo o resto se apresentar desnecessário. Depois de 68 dias de uma viagem de barco, não propriamente, num paquete de luxo, onde tudo faltava, até a água, para lavar a roupa, como deveria aparecer um viajante, ainda que Rei? Feio e obeso. Seria Oliveira Martins considerado um homem bonito? Quantos reis obesos existiram na História do mundo? Beiço pendente? Se Dom João tinha o beiço pendente, o que dizer dos lábios do seu cavalo? Enfim, não é descrição que se faça, a não ser que se pretenda ridicularizar a personagem, por uma qualquer rejeição mental. E ao utilizar-se esta fonte no livro «1808», o que se pretendeu? É uma pergunta que deixo para ser reflectida.
Imaginar o que teria sido o Brasil se fosse colonizado por outro qualquer povo seria um exercício fascinante, mas totalmente improdutivo. O Brasil gostaria de ser os Estados Unidos da América do Sul, a exemplo dos Estados Unidos da América do Norte? Quando vivi no Brasil aprendi duas expressões muito interessantes, que ainda hoje aplico, quando é preciso: macaco de imitação e imita macaco. Não queiram os Brasileiros ser uma coisa nem outra.
Não devemos nunca tentar ser o que os outros são. Tentemos ser únicos. O Brasil tem todas as possibilidades, tem tudo para ser um grande país. Um país único. Por que não é?
Talvez um dia eu responda a esta pergunta.
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DE COMO OS BRASILEIROS DEVERIAM ORGULHAR-SE DAS SUAS ORIGENS
Os Brasileiros deveriam orgulhar-se das suas origens. Inclusive da sua costela indígena e africana. Gente com uma cultura e língua muito ricas. Quem renega o seu passado, renega-se a si mesmo. Não sei se nas minhas veias corre sangue daquele povo selvagem que invadiu a Península Ibérica – os Vândalos (hoje um termo muito depreciativo). Quem sabe? Se nas minhas veias corre sangue dos Vândalos, como posso apagar esse passado, que foi meu? O que tenho a fazer é construir algo melhor, para redimir os erros que esses meus antepassados cometeram, e trazê-los de volta à História, reabilitados. Se eu não evoluir, a culpa não será nunca dos Vândalos.
Se o Brasil não evoluir para um grande país, a culpa não será nunca desses antepassados portugueses, que no livro «1808», tão insistentemente foram pequenos, desorganizados, analfabetos, incultos, gordurosos, feios, obesos…
O capítulo 27, «O Novo Brasil», termina com a seguinte ideia: «Heranças mal resolvidas em 1822, todos esses problemas permaneceriam, nos duzentos anos seguintes, a assombrar o futuro dos Brasileiros – como fantasma de um cadáver insepulto» (agora digo eu), do qual (cadáver) as novas gerações de brasileiros nunca conseguiram, até aos dias de hoje, libertar-se. Pergunto: por quê?
No entanto, o legado português no mundo é vastíssimo. O mundo não seria o que é hoje, se o pequeno e dito ignorante povo português não tivesse navegado por mares nunca dantes navegados, e inventado instrumentos e artes de marinhagem. Em todos os continentes, Portugal marca presença. Nuns mais, noutros menos, há sempre um pequeno vestígio (agora até na Austrália) que nos fala da presença ou da influência do pequeno e dito ignorante povo português. Monumentos, indícios arquitectónicos e linguísticos, marcas históricas, que fazem parte do imenso património cultural que Portugal espalhou um pouco por todo o mundo.
Isto não é coisa pouca! Isto não é de um povo pequeno!
É algo que os Portugueses, apesar de não serem isentos de culpa em muitas das coisas que fizeram, e de terem protagonizado muitas tragédias, não devem esquecer. Pelo contrário, devem orgulhar-se do que foram.
Do que são hoje, nem tanto. Houve um acentuado retrocesso. Admito.
Mas como Portuguesa, devo defender a honra e o prestígio de um Portugal politicamente grande que já existiu, e lamentar o facto de não existir mais.
À parte a sua política actual desastrosa, Portugal é feito de belas paisagens de água, como as do Oceano Atlântico e das suas ondas ora poderosas, ora mansas, a beijar-lhe a costa, pontilhada de recantos paradisíacos, de areais imensos, e de penedias, sobre as quais voejam as gaivotas; como as dos rios que serpenteiam por entre vales e planícies verdejantes e majestosas montanhas; e as dos barcos que descansam nas águas, ao entardecer.
Portugal é feito de paisagens de campo, de paisagens citadinas, belas e coloridas, como a magnífica cidade do Porto, Património Mundial, com o seu casario a escorrer para o rio, onde os barcos rabelos emprestam um ar bucólico à foz do Douro, e que o Sol poente matiza das mais variadas cores.
Portugal é feito de aldeias e vilas antigas, casas senhoriais, palácios, castelos altaneiros, lugares que ainda conservam a essência das suas origens, monumentos fabulosos, uma arte requintada, como o Estilo Manuelino (uma variação portuguesa do Gótico) que surpreende pela sua beleza, e a admirável azulejaria que ainda pode ser apreciada na fachada das casas de muitas localidades.
Portugal é feito da música das guitarras de Coimbra ou do fado de Lisboa (recentemente considerado Património Imaterial da Humanidade, pela UNESCO); é feito de muitas cores, de muitos verdes, de Sol e das palavras luminosas dos seus poetas.
Portugal é um paraíso, onde poderíamos viver placidamente, não fosse o recuo civilizacional, em que os governantes posteriores à época relatada no «1808» o mergulharam.
Se hoje não somos um povo maior, a políticas erradas o devemos, mas nunca, nunca a Dom João VI, que escreveu certo por linhas tortas, páginas brilhantes da nossa História, em que se conta como foi o único monarca europeu a enganar o todo-poderoso Napoleão Bonaparte, evitando, desse modo, que Portugal caísse nas mãos de outros povos e, porventura, se transformasse numa região espanhola e, desse modo, perdesse a identidade Portuguesa.
E isso não é coisa pouca.
29 de Setembro de 2014
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NOTAS MARGINAIS
Uma vez que não foi minha intenção produzir um trabalho académico exaustivo, fiz no entanto uma pesquisa sobre o tema em causa, tendo sido baseado em várias leituras de obras e autores, de que aqui deixo testemunho:
- Dicionário da História de Portugal, de Joel Serrão (1963-1971), do qual transcrevi algumas passagens, no corpo do livro.
- História de Portugal – Edição Monumental da Portucalense Editora, Porto (1928-1981) sob a direcção de Damião Peres (professor da Universidade de Coimbra) e Ângelo Ribeiro (Professor da Universidade do Porto), onde Jaime Cortesão (historiador português (1884-1960) refere a ligeireza do juízo de Oliveira Martins, historiador citado no livro de Laurentino Gomes (o qual eu também contesto).
De Jaime Cortesão são as seguintes palavras: «O povo português forneceu com o sangue o elemento étnico preponderante. O português forneceu os elementos essenciais da civilização material e espiritual, e, acima de todos, a língua e a religião. O português trouxe (ao Brasil) igualmente os elementos essenciais de génese e formação política, propriamente dita».
E prossegue: «Um povo de tão escassos recursos que, em luta contra as nações mais poderosas da Europa, consegue fundar, dilatar e defender aquele vasto império, possui uma capacidade criadora que o extrema do comum dos povos».
Jaime Cortesão diz ainda: «Se nos colocarmos dentro do ponto de vista de um monarca e dos estadistas daquele tempo, não nos será lícito considerar a saída para o Rio como um acto de fuga. E o contrário será perdermos de vista a consciência do que representava o império para os governantes dessa época. Partir para o Brasil era partir para uma qualquer província portuguesa, tão unitária era, naquela época, a concepção que se tinha do império português».
Para Jaime Cortesão (que também viveu no Brasil), tal como para mim a designação “fuga” é, pois, pejorativa, e Laurentino Gomes usa e abusa dessa “fuga” no seu «1808».
E o historiador conclui: «Resta-nos apenas dizer que o Brasil atingira por essa época (a época de Dom João VI) as sua maioridade económica e uma tal maturidade no espírito, revelada nas ciências e nas letras, que a independência se tornara uma questão de dignidade e os brasileiros bem mereceram que alguns acertos da metrópole, e os acasos da política exterior, tão singularmente favorecessem a sua proclamação».
- Marquês de Caravelas, um político, advogado, diplomata e professor brasileiro, que discursando no Senado por ocasião da morte do Rei, em 1826, disse: "Nós todos, que aqui estamos, temos muitas razões para nos lembrarmos da memória de Dom João VI, todos lhe devemos ser gratos, pelos benefícios que nos fez: elevou o Brasil a reino, procurou por todos o seu bem, tratou-nos sempre com muito carinho e todos os brasileiros lhe são obrigados...".
- Oliveira Lima, (1845-1894), historiador brasileiro, que com a sua obra intitulada Dom João VI no Brasil, se tornou o principal seguidor de uma corrente de opinião brasileira, defendendo a decisão da retirada de Dom. João VI para o Brasil como um acto de sábia política.
Diz ele: «Dom João VI, interpondo entre si e a Europa, convulsionada pelo mais terrível dos conquistadores, um oceano, obrava segundo as regras da prudência elementar, pois não tinha meios para se opor à invasão, e seguiu os ditames de uma sábia política, visto que foi o único monarca europeu que logrou escapar às humilhações napoleónicas, ao mesmo tempo que ia presidir à evolução do Brasil, elevado à categoria de Reino Unido».
- Adelto Gonçalves (doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo diz num artigo intitulado Dom João VI revisitado, divulgado recentemente: «Esta obra monumental, de Oliveira Lima, (publicada em 1908, pelo centenário da retirada da corte para o Brasil) um clássico da historiografia brasileira, bem documentado com pesquisas de arquivos, tornou-se modelo para estudos biográficos dos monarcas brasileiros, e que ainda hoje constitui um paradigma para aqueles que se aventuram no ofício de historiador.
Pouco lida, ao longo de 100 anos (havia sido reeditada apenas em 1945, e depois só em 1996 pela Topbooks), não teve força para derrubar o mito segundo o qual D. João era um príncipe medroso e bobão – imagem que Oliveira Martins pôs a andar, e que ainda hoje só historiadores nada sérios ainda fazem questão de repetir, talvez no afã de conquistar leitores mais facilmente.»
- Voltaire Schilling nasceu em Porto Alegre (Brasil) em 1944. Lecciona História há mais de 30 anos em diversas instituições de ensino, e publicou vários livros.
Sobre o período da História em causa, escreveu o seguinte:
«Diga-se que o Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves, instituído por Carta de Lei em 1815, era uma ficção e uma confusão. Até 1820, Portugal estava sob o governo de facto de um general inglês, Lord Beresford. O titular legítimo, D. João VI, o fujão, estava no Brasil desde 1808, corrido que fora de Lisboa pelas tropas francesas de Junot. Com a revolta anti-absolutista do Porto de 1820, o poder concentrara-se nas Cortes de Lisboa, instrumento dos liberais, os homens da casaca de briche, que, escaldados pelos excessos terroristas dos jacobinos franceses de 1793, preferiram manter-se obedientes a um regime com rei, lei e parlamento. Levaram oito meses convencendo o Bragança a voltar ao Tejo. Finalmente, em 26 de Abril de 1821, ele reembarcou com seus quatro mil cortesãos, rapando todo o ouro e jóias depositados no Banco do Brasil.»
- Robert Southey (historiador, escritor prosador e poeta britânico da escola do romantismo e "Poeta Laureado"). De 1810 a 1819 lançou uma "História do Brasil", em Londres, que foi a primeira publicação contendo a história geral do país, e que abrange todo o período colonial até à chegada de Dom João VI ao Brasil, em 1808.
Sobre esta obra diz Nelson Werneck Sodré, um militar e historiador brasileiro: «O que se deve ler para conhecer o Brasil: um dos grandes méritos (de Robert Southey) está em não se ter deixado fascinar pela tradição oficial, particularmente quanto à obra dos jesuítas, mantendo um julgamento próprio, estabelecendo critérios de discriminação diversos daqueles habitualmente adoptados.»
Da sua obra disse o próprio Southey: «Seria faltar à sinceridade que vos devo, esconder que a minha obra, daqui a longos tempos, se encontrará entre as que não são destinadas a perecer; que me assegurará ser lembrado em outros países que não o meu; que será lida no coração da América do Sul e transmitirá aos brasileiros, quando eles se tiverem tornado uma nação poderosa, muito da sua história que de outra forma teria desaparecido ficando para eles o que é para a Europa a obra de Heródoto.»
E mais adiante: «Com tanta ignorância e falsidade têm os portugueses, especialmente os portugueses americanos, sido acusados de frouxidão e indolência».
- William Becford (aristocrata inglês, romancista, crítico de arte, escritor de viagens e político – 1760-1844). No retrato que fez da Rainha Dona Maria I referiu que ela dominava pela sua atitude majestosa e aliciante, respirando benevolência. Era uma princesa bondosa e demasiado devota.
- «História do Mundo» de José Pijoan – Edição Portuguesa orientada pelo Dr. Álvaro Salema (1979).
Curiosamente, nesta obra existe um mapa representando a Europa ocidental em 1588, onde Portugal não existe como nação. Os países figuram por cores, e a Península Ibérica, constituída já nessa altura, como todos sabem, por Portugal e Espanha, aparece toda a roxo, e nesse roxo lê-se apenas a palavra Espanha. O que eu considero uma afronta.
- Frei Bartolomé de Las Casas (1474-1566) monge dominicano, cronista, teólogo, bispo de Chiapas (México), considerado o primeiro sacerdote ordenado na América, e grande defensor do povo indígena, foi uma importante testemunha ocular, que retratou fielmente a atroz carnificina de indígenas, bem como a desmedida ambição espanhola por metais preciosos. Perante estas barbaridades, não se calou, chegando mesmo a denunciar à Espanha (que na altura possuía um dos maiores impérios coloniais) o comportamento desumano dos colonizadores em relação aos povos nativos. E referiu o monge, num dos seus escritos: «A causa pela qual os espanhóis destruíram tal infinidade de almas foi unicamente não terem outra finalidade última senão o ouro, para enriquecer em pouco tempo, subindo de um salto a posições que absolutamente não convinham a suas pessoas. Enfim não foi senão a sua avareza que causou a perda desses povos e quando os índios acreditaram encontrar algum acolhimento favorável entre esses bárbaros, viram-se tratados pior que os animais e como se fossem menos ainda que o excremento das ruas; e assim morreram sem fé e sem sacramentos, tantos milhões de pessoas».
Tem razão Frei Bartolomé de Las Casas, ao afirmar que a história da conquista e colonização da América, foi uma obra escrita com sangue, não só dos espanhóis como também dos portugueses, dos holandeses, dos franceses, dos ingleses e de quem mais por lá andou a cobiçar riquezas.
Existe uma consonância de opinião entre Las Casas e Thomas Elliot Skidmore, um historiador norte-americano, especializado em temas brasileiros, no que se refere ao tratamento que os colonizadores espanhóis dispensaram aos nativos. Contudo, Las Casas é mais cortante nas suas críticas, quando refere que « (...) os espanhóis entravam nas vilas, burgos e aldeias não poupando nem crianças e velhos, nem mulheres grávidas e parturientes e lhes abriam o ventre e faziam em pedaços (...). Sempre matando, incendiando, queimando, torrando índios e lançando-os aos cães (...) e assassinaram tantas nações que muitos idiomas chegaram a desaparecer por não haver ficado quem os falasse (...) e no entanto ali teriam podido viver como num paraíso terrestre, se disso não tivessem sido indignos...».
Quanto a Elliot, ao recordar a extinção quase plena dos nativos da ilha Hispaniola (ilha que a República Dominicana compartilha com o Haiti) deixa-nos um relato extraordinariamente lúcido do confronto entre as duas culturas, a espanhola e a indígena:
«Em vinte anos, desde o desembarque de Colombo, a população dessa ilha densamente habitada havia sido quase varrida pela guerra, pelas doenças, pelos maus-tratos e pelo trauma resultante dos esforços dos invasores, para obrigá-la a aceitar modos de vida e comportamento totalmente desvinculados de sua experiência anterior».
- Graça Aranha (1868-1931) um ilustre escritor e diplomata brasileiro, num dos seus escritos refere: «Os territórios da América, foram a perpétua miragem europeia; mas, enquanto ingleses, espanhóis e holandeses aí fizeram incursões de traficantes, Portugal, vencendo a resistência de uma terra que não se entregava facilmente, e num momento de indústria ainda mal aparelhada, realizou uma consistente obra de Estado. O país (Brasil) foi descoberto, varado, estudado, conquistado por militares e funcionários, uma nação política foi fundada. Os vestígios dessa organização são os alicerces do Estado brasileiro».
Depois de tudo o que foi dito, há, portanto, que saber escolher as fontes. Não tanto pelo que dizem, negativamente ou positivamente, mas sobretudo pela lucidez com que interpretam os factos e os testemunhos. E então serão mais ou menos credíveis, conforme possuam ou não essa lucidez.
Os portugueses não foram o único povo colonizador da América do Sul. Faltou a Laurentino Gomes o “faro” histórico, que permite contextualizar os factos, e não abordá-los isoladamente, prestando, com isso, um péssimo contributo ao conhecimento da História do seu próprio país.
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ESCLARECIMENTO
Pelo que ficou exposto, e para que não subsista qualquer dúvida na mente dos leitores, sinto-me na obrigação de esclarecer que sou uma assumida anti-colonialista, anti-imperialista, anti-racista, anti-xenófoba, anti-esclavagista e anti-preconceituosa.
Sou contra a pena de morte, contra a violência, contra a tortura e contra ditaduras (de direita e de esquerda).
Sou pela tolerância; defensora dos Direitos da Criança; defensora dos Direitos do Homem; defensora dos Direitos dos Animais; e essencialmente Pacifista.
Tenho o Brasil no coração, como minha segunda pátria; e todos os povos do mundo são meus irmãos; porém, não posso aceitar que menosprezem o meu País, apenas por preconceito, e ficar calada.
© Isabel A. Ferreira
(I Parte)
http://arcodealmedina.blogs.sapo.pt/dom-joao-vi-como-um-principe-valente-485068
(II Parte)
http://arcodealmedina.blogs.sapo.pt/dom-joao-vi-como-um-principe-valente-485454
(III Parte)
http://arcodealmedina.blogs.sapo.pt/contestacao-ao-livro-1808-de-laurentino-487321
III Parte
Dom João VI – Como um Príncipe Valente Enganou Napoleão e Salvou o Reino de Portugal e o Brasil
«Contestação do livro «1808», de Laurentino Gomes»
(2ª edição corrigida e aumentada)
© Isabel A. Ferreira
(Este texto não pode ser reproduzido, no todo ou em parte, por qualquer processo mecânico, fotográfico, electrónico, ou por meio e gravação, nem ser introduzido numa base de dados. Difundido ou de qualquer forma copiado para uso público ou privado, além do uso legal como breve citação em artigos e críticas, s em a prévia autorização por escrito da autora)
(Imagem © J. A. Ferreira)
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DE COMO SE DIZ QUE TUDO ESTAVA MAL NO REINO DE PORTUGAL SEM SE TEREM EM CONTA AS CIRCUNSTÂNCIAS
No meu entender, no capítulo 5, «A Partida» da corte portuguesa para o Brasil, deveriam igualmente ter sido tomadas em conta as circunstâncias em que as coisas aconteceram. Diz-se a dado momento: «Era uma cena impressionante, mas nem de longe lembrava os tempos heróicos, quando a esquadra de Vasco da Gama partiu do mesmo cais…». Oliveira Martins (fonte citada) chama-lhe um cortejo fúnebre.
Ora, este Oliveira Martins pertencia ao grupo Vencidos da Vida, o qual germinou na segunda metade do século XIX, e dele faziam parte literatas, políticos, gente da alta sociedade e aristocratas. Era um grupo, como o próprio nome indica, pessimista, que via Portugal através de vidros esfumados, que os impediam de ver a claridade das coisas.
Não direi que Portugal fosse (ou seja) um país brilhante, mas tinha e tem, sempre teve, gente com muito valor, em todas as áreas. Quem conhece a História de outros países, de outras cortes, de outros reinos, encontrará exactamente os mesmos defeitos com que Laurentino Gomes brinda Portugal e os Portugueses, através de fontes facciosas, desprovidas, na sua grande maioria, de rigor histórico; enfim, os defeitos daquela desditosa corte, que teve a infelicidade de deixar a Europa para ir enfiar-se numa terra agreste, ainda por desbravar e imensa.
Neste capítulo, diz-se a determinada altura que a falta de higiene era um problema crónico. Na cidade de Lisboa «atirava-se pela janela, sem aviso algum e a qualquer hora do dia ou da noite, a água suja, as lavaduras da cozinha, as urinas, os excrementos acumulados de toda a família» registou o francês J. B. F. Carrère. Naturalmente este senhor seria pouco viajado. Se percorresse as principais cidades europeias da época assistia exactamente às mesmas cenas, inclusive, nos bairros mais pobres da luminosa Paris. Lisboa era Lisboa e os seus arrabaldes, e nesses arrabaldes, Carrère podia ver muitas coisas.
Quem hoje visita o magnífico Palácio de Versalhes, encontra pomposos salões e quartos, mas não vê nenhum “quarto de banho e restante higiene”.
Naquela época, e em todas as épocas anteriores e posteriores, o problema da higiene sempre foi um grande problema, comum a todos os povos. Não havia água canalizada, não havia sistemas de esgotos eficientes, e tal lacuna, nas grandes cidades, onde se aglomeravam milhares de pessoas, gerava um autêntico caos, em matéria de asseio. A eliminação de dejectos, como se sabe, é comum a todos os animais, humanos e não humanos. Conheci, em Coimbra, um jovem filósofo de nome Meireles, que me dizia muitas vezes, a propósito das coisas da vida: «Não te esqueças nunca, Isabel, até a Rainha de Inglaterra vai à retrete!». Na verdade nunca me esqueci deste jovem filósofo, nem da sua teoria, muito significativa para a compreensão da condição humana.
O clero e a nobreza ainda iam tendo como rodear o problema, nos seus mosteiros, nos seus palácios, nos seus castelos. E o povo? O povo ainda hoje, em muitos países ditos livres, ricos e civilizados, incluindo o Brasil, e na era de todas as técnicas, sofrem dessa falta de higiene, de que apenas os portugueses são acusados no livro «1808». Ainda hoje, muita gente vive sem água canalizada, sem saneamento básico, no meio do lixo, ou pior ainda “catando lixo” para comer, bem à frente dos olhos dos grandes e poderosos senhores do mundo, que se fazem cegos e surdos aos clamores dos que vivem mal. Sempre foi assim. Espero, contudo, que um dia, deixe de ser.
Portanto, as fontes francesas ou inglesas ou americanas ou outras que escreveram o que escreveram sobre os Portugueses valem o que valem, uma vez que nos seus países, nas suas cidades, a porquidão existia, e a podridão das suas políticas, das suas ideias preconceituosas, dos seus complexos de superioridade, também a havia. O que essas fontes nos deixaram pode comparar-se àquela história do adulto (grande) que bate numa criança (pequeno), que roubou um pão para comer, não tendo em conta a fome que motivou a criança a roubar.
O historiador Pedro Calmon (uma fonte que também é citada no livro «1808») descreve a corte portuguesa como «uma das mais débeis e enfermiças da Europa» no final do século XVIII, época em que Dom João nasceu. E a seguir: «Os casamentos consanguíneos, a herança mórbida, a melancolia da sua corte mística, apática, estremunhada de pavores indefinidos davam-lhe, no reinado de Dom José I a fisionomia de uma velha estirpe decadente».
Eu bem sei que o livro «1808» trata de um pedaço da História do Brasil e de Portugal, e que talvez a História dos outros países não fosse para ali chamada. Mas, analisados os factos, assim, fora do contexto Europeu ou mesmo mundial, dá a impressão de que tudo estava mal no reino de Portugal.
Quando não era bem assim.
Um dia, passeava eu por um lugar sujo, agreste, à beira-mar, cheio de destroços que as águas trouxeram de longe, quando, de súbito, me deparei com uma belíssima pequena flor branca, que havia brotado entre todo aquele caos. Fotografei-a e eternizei-a, mais tarde, num capítulo intitulado «Indiferença – Se não reparas na flor do caminho, não mereces a sua beleza», incluído num livro que escrevi sobre uma série de conceitos muito incómodos para as consciências demasiado aquietadas, do meu tempo.
Ora o que pretendo dizer com isto? É que em todo o mundo, em todas as épocas, em todos os reinos, sempre houve gente débil, enfermiça, melancólica, estremunhada, e casamentos consanguíneos entre a nobreza… e que Portugal passou por fases gloriosas e outras menos gloriosas, como todos os outros reinos. Não podemos alhear-nos do que se passa à nossa volta. Entre todo aquele rebuliço que se vivia no mundo, na época em que tudo isto é relatado, em Portugal havia muitas pequenas flores brancas, nas quais ninguém reparou. E Pinas Maniques*, ainda hoje, existem por todo o mundo, em todos os países, civilizados ou não.
Há um detalhe que gostaria de realçar a propósito desta indiferença: em Portugal existe uma elite intelectual, que vive lá nas suas alturas, constituída por gente muito pessimista, por natureza, quanto às coisas portuguesas, daí entenderem que Portugal é um atraso de vida, mas nada fazem para dar a volta a essa situação. Depois temos o povo que se contenta com pouco, mas está alerta quanto a esse pouco que vão exigindo dos governos. E há ainda uma minoria, que no meio do caos, encontra as tais pequenas flores brancas que desabrocham nos lugares mais inesperados, e que nos dizem que nem tudo vai mal no reino de Portugal. Porém, a essa minoria ninguém dá voz. E o que é preciso é limpar os vidros esfumados, através dos quais essa gente vê o que se passa ao seu redor, para deixar entrar a luz, que brilha, sobre o meu país.
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* Diogo Inácio de Pina Manique foi um magistrado português. Formado em Leis pela Universidade de Coimbra, ocupou diversos cargos, antes de ser designado Intendente-Geral da Polícia (1733-1805) – Braço direito do Marquês de Pombal, Ministro do Rei Dom José I, era o terror dos fora-da-lei.
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DE COMO VIAJAR EM 1808 NÃO ERA PROPRIAMENTE CRUZAR OS MARES EM PAQUETES DE LUXO
No capítulo 7 do «1808», descreve-se «A Viagem».
As viagens, naquela época, não eram feitas propriamente em paquetes de luxo. As condições eram péssimas, medonhas, em todas as frotas, incluindo nas dos ingleses, que até tinham a melhor armada do mundo. Uma distância que hoje se percorre num dia, naquele tempo levava três, quatro ou mais meses. E nessas longas viagens, por vezes, quando os ventos não eram favoráveis, ou as tempestades desviavam os barcos da sua rota, e não podiam abastecer-se, passavam-se grandes necessidades. Faltava água potável, alimentos frescos, as pessoas viajavam apinhadas, umas em cima das outras. O problema da higiene era um grande problema. As doenças podiam ser fatais. E os ratos vinham tomar ar ao convés, tal como as pessoas. Enfim, não se recomendava a ninguém viajar em tais condições. Foram poucas as cortes (ou nenhumas), à excepção da portuguesa, que se aventuraram a viagens tão atribuladas.
Por norma, não costumo confiar, logo à primeira, em todas as fontes que me são apresentadas. Primeiro tenho de saber quem escreveu os textos e em que circunstâncias foram escritos. Gente que se considera melhor e maior do que todos os outros, gente preconceituosa em relação a outras raças, gente que mantenha sentimentos de rejeição pelos antigos colonizadores, gente que olha para a História através de vidros esfumados, não me merecem a menor confiança. Portanto, ponho-me logo de pé atrás.
Daí que as descrições das fontes inglesas, francesas e outras muito citadas no «1808», não me mereçam nenhuma confiança, por serem altamente facciosas, e como tal, leio esses relatos com a descrença que eles deixam transpirar.
Por exemplo, posso não pôr em causa as descrições da viajante Maria Graham ou as da Laura Junot. Elas viram o que viram, porém, o que viram não era diferente do que poderiam ter visto em muitos outros lugares, incluindo nos seus próprios países. Os Portugueses não eram mais nem menos porcos do que os outros povos. Nem mais nem menos bonitos do que todos os outros. O que Laura Junot disse de Carlota Joaquina! Infeliz princesa, não se pode nascer desprovida de beleza! E Laura, seria bonita?
Em 1992 (portanto, na era de todas as técnicas, de todas as evoluções, de todas as revoluções, enfim…) quando estive na Irlanda do Norte, hospedei-me numa residencial. Deram-me um quarto grande, com chuveiro privado, muito bonito, com vistas para uma rua profusamente arborizada. Passei apenas uma noite naquele quarto. No dia seguinte, saí logo pela manhã. Ao regressar, pela tarde, o quarto encontrava-se vazio das minhas coisas, que haviam desaparecido. O que aconteceu? O que não aconteceu? Na minha ausência, a proprietária da residencial decidiu retirar as minhas bagagens para um cubículo, na parte de trás da casa, onde eu mal cabia. O recinto tinha uma porta e uma pequena janela, e nele havia apenas uma cama, onde eu ficava com os pés de fora (porque sou alta), uma cadeira e um lavatório com espelho. Disse-me a “Mrs.”… (já não me recordo do nome dela) que precisava do quarto grande para outra pessoa. Achei tudo aquilo muito estranho, até porque a outra pessoa é que devia ter ido para o cubículo, uma vez que eu cheguei primeiro! E porque considerei muito estranho, tratei de averiguar. O quarto grande manteve-se fechado enquanto estive lá hospedada. Portanto, mentiram-me. Qual a razão? Os banhos. Se eu quisesse tomar banho todos os dias, teria de pagar mais. Estando no cubículo que me foi destinado, não poderia tomar banho, como tinha feito no outro quarto. Como a estadia estava previamente paga, vi-me obrigada a seguir a regra da casa, que era não tomar banho todos os dias.
Isto apenas para dizer que nem tudo o que não reluz é carvão, e que nem tudo o que reluz é ouro, e que a Senhora Maria Graham até podia ter razão quanto aos “modos higiénicos brasileiros”, no entanto os “modos ingleses” não eram absolutamente melhores, nem ontem, nem sequer hoje.
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8
DE COMO A REVOLUÇÃO INDUSTRIAL ENGRANDECEU O IMPÉRIO BRITÂNICO À CUSTA DA EXPLORAÇÃO DO TRABALHO INFANTIL E DAS MULHERES
Tudo o que se descreve no capítulo 9 do «1808», «A Colónia» (brasileira) poderia dizer-se de qualquer uma das colónias inglesas, francesas, espanholas ou holandesas. O que se passava no Brasil, em 1808, não era pior nem melhor do que o que se passava nas outras colónias, com o seu rol de ignomínias tão grandes como as perpetradas pelos Portugueses. Tais descalabros, infelizmente, eram fruto da época e faziam parte de uma mentalidade colonizadora, pouco evoluída, apesar de todos os requintes e elegâncias dos “senhores” que os punham em prática.
É preciso dizer-se que foram os Ingleses que construíram o maior país capitalista do mundo, com todas as suas consequências nefastas. A Revolução Industrial nasceu em Inglaterra e floresceu graças à exploração do trabalho infantil, do trabalho das mulheres, do trabalho escravo. Se não fosse esta circunstância, talvez não tivesse tido o sucesso e o lucro que teve. É fácil falar em evolução. À custa de quem? Há sempre alguém a pagar o pato. E esse alguém, naturalmente, nunca foram os mais fortes e poderosos.
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DE COMO PODEMOS CONFIAR NUM REPÓRTER IMPROVISADO MAIS DO QUE EM FONTES FACCIOSAS
«O Repórter Perereca», título do capítulo 10, é sem dúvida a fonte mais confiável entre as muitas outras ilustres fontes citadas no livro, porque o Repórter Perereca era genuíno. Descrevia o que via, com deslumbramento, sim, mas sem preconceito, sem a intenção de subestimar intencionalmente o colonizador. Ele escrevia o que via e o que sentia (o que não é permitido aos jornalistas profissionais, que só podem relatar o que vêem, se bem que nem sempre esta ética seja cumprida). Fazia-o com a intenção de transmitir a realidade com todo o seu colorido, como a pintura de um quadro. Os outros transmitiam-na a preto e branco, retirando-lhe toda a carga factual, para a transformar em escárnio.
Imaginemos um cronista, a visitar o Rio de Janeiro, na actualidade.
Passeia-se pelo calçadão da Avenida Atlântica; aprecia as garotas de Ipanema; maravilha-se diante das mansões de Copacabana, de Botafogo, e depois deita o olhar à sua volta e lá adiante, no morro sobranceiro ao mar, tem uma panorâmica da favela da Rocinha, que vista de longe, é deslumbrante. Decide visitá-la… Impressiona-se com o que vê e relata o que mais o perturbou nessa visita à favela, esquecendo-se de tudo o resto.
Daqui por uns cem anos, alguém lê essas crónicas, reescreve a História e o que terá para referir, sobre o Rio de Janeiro do ano de 2008?
Tudo tem, portanto, o seu contexto. Tudo tem a sua relatividade. Não pode tomar-se o todo pela parte. E esse é o maior defeito do (ainda assim) interessantíssimo livro «1808».
O pintor Jean Baptiste Debret (citado no livro) que se escandalizou com a falta de boas maneiras dos brasileiros ricos durante as refeições, hoje, em pleno século XXI, poderia escandalizar-se com a mesma falta de boas maneiras à mesa ou em qualquer outra parte, em determinadas cidades ou mesmo entre as famílias mais ricas e poderosas do mundo, inclusive nos subúrbios da actual Paris, ou mesmo no centro da actual Paris.
Temos de saber distinguir as coisas. Os ricos, a que Debret se refere, quem eram? Naturalmente os novos-ricos que fizeram fortuna, tinham dinheiro, viviam à farta, contudo, faltava-lhes a educação, o refinamento, a cultura. Numa colónia com 300 anos (o que é quase nada, tendo em conta os condicionalismos da época), onde a civilização ainda não tinha chegado, como poderiam refinar-se? Ainda hoje, na era de todas as comunicações, encontramos esse tipo de realidade, nos países mais ricos do mundo, incluindo o Brasil. Basta percorrer os arredores dos grandes centros urbanos europeus ou americanos (do Norte ou do Sul, para não falar da Ásia e da África), para vermos as grandes diferenças de estilo de vida entre os que vivem nas grandes avenidas, e os que sobrevivem nos becos e ruelas, ou mesmo na rua, nos bancos de jardim e debaixo das pontes.
E também há outra coisa: diz-se que em Roma sê romano. Penso que todos nós, pelo menos uma vez na vida, passámos por situações em que tivemos de fazer coisas a que não estamos habituados. Eu já. Por exemplo, na Irlanda fui irlandesa: tive de me abster do banho diário, para não destoar dos outros hóspedes. E nas crónicas que tive de escrever acerca dessa minha viagem, não valorizei estas pequenas coisas, porque o motivo que me levou à Irlanda foi outro, bem mais sério. Estou agora a contar essas pequenas coisas, devido apenas (e uma vez mais) às circunstâncias: preciso delas para ilustrar a minha teoria.
E no entanto, como foi extraordinário conhecer the green fields of Ireland, belíssimos e inesquecíveis.
Nos tempos de hoje, nos Estados Unidos da América do Norte, símbolo do capitalismo, existem milhares de pobres. A vergonha do mundo. O abismo entre os ricos e os pobres é imenso. Mas sempre foi assim. Por isso, valorizar o que não é valorizável, num determinado contexto, tem um nome: preconceito.
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10
DE COMO SE “FABRICAM” MONSTROS COM BASE NO PRECONCEITO
O capítulo 13, «D. João», começa por referir que Dom João tinha medo de siris (pequenos crustáceos), caranguejos e trovoadas. Infeliz Dom João! Conheço tantos homens com tão piores medos!
O autor de «1808» poderia ter começado por caracterizar Dom João, por exemplo, a partir do que diz o Dicionário de História de Portugal, dirigido por Joel Serrão, e estaria quase tudo dito: Um homem «que não havia sido fadado pela natureza nem com grandes recursos intelectuais nem com vontade firme e esclarecida, que poderia fazer, ao longo de toda a sua vida de governante, além de procurar impossíveis equilíbrios, inviáveis mediações entre a rotina e a inovação?» E mais adiante: «No meio da solta tempestade nacional, que os ventos da Revolução Francesa desencadearam, tíbio, infeliz e bom, o rei, aos baldões dos acontecimentos, encarnou um período calamitoso da história pátria, em cujos transes se forjou o dealbar do Portugal contemporâneo».
Na verdade, para quem foi apanhado, de surpresa, nessa tempestade, de que se fala; para quem foi obrigado pelo acaso, a ser rei, Dom João conseguiu cumprir a missão para a qual não nasceu, com uma certa dignidade, dentro das suas modestas capacidades.
Conheço (todos conhecemos) gente que passou pelo Poder, deixando um rasto de atrocidades bem maiores do que o medo dos crustáceos (eu aqui dar-lhe-ia outra designação, talvez repulsa). E o medo das trovoadas poderia ter origem em traumas da infância. Todos sabemos como eram tratadas as crianças nesses tempos, basta recordar que a Declaração Universal dos Direitos das Crianças foi proclamada apenas em 1959, até aí os mais pequenos eram tratados como os animais. Se até das crianças o grande filósofo Aristóteles dizia que elas «careciam de todas aquelas qualidades que elevavam o homem acima das bestas, uma vez que lhe faltava a capacidade de pensar racionalmente», o que me dá liberdade de questionar: quando era criança, Aristóteles teria sido, então, uma pequena grande besta? Até os mais sábios cometem erros.
Daí que não possamos julgar os homens pelos seus medos, pelo seu aspecto físico, pela sua infeliz condição, mas tão-somente pelos seus actos.
Neste capítulo, as descrições do desventurado Dom João são as mais grotescas que se possam imaginar. O nosso querido Jô Soares é bem mais obeso do que o Dom João foi, e no entanto é tão amado por Brasileiros e Portugueses. Conheço duas expressões simpáticas para designar os gordinhos – gente de dimensões robustas ou gente espaçosa. Nem todos podem ser um Brad Pitt. Não se deve menosprezar um homem pela sua falta de beleza física. Os homens não podem ser ajuizados pela sua feiura.
Na biografia de Hitler, um indivíduo que não é propriamente “adorado” no mundo, não se diz que ele usava um horroroso bigodinho, que lhe dava um ar muito apalermado, talvez porque esse pormenor não seja importante para a análise do seu legado político. Mas que o bigodinho era horroroso, lá isso era!
No capítulo dedicado à Dona Carlota Joaquina, o capítulo 14, comete-se a mesma descortesia. A desventurada Dona Carlota até no nome foi um pouco infeliz. Mas que culpa teve ela? Não escolheu o nome. Não escolheu a vida de rainha. Não escolheu o marido. Casaram-na aos 10 anos com alguém que desconhecia. Foi mandada, com essa idade, para um país estranho, para ser educada por gente estranha. Infortunada menina! Tais circunstâncias só poderiam conduzir a uma personalidade irascível. Além disso, nem todas as princesas nascem belas, e Dona Carlota Joaquina teve uma tripla infelicidade: a de ser retirada à família, ainda muito menina; a de, na realidade, não ter sido fadada por Afrodite; e a de lhe terem dado por marido um príncipe que não era nem encantado, nem encantador.
Em «O Ataque ao Cofre», capítulo 15, do «1808», diz-se da corte portuguesa que era uma corte cara, perdulária e voraz. Até podia ser, mas compare-se a nossa modesta corte com as luxuosas cortes europeias.
Uma vez mais, não se teve em conta os contextos. O mundo, desde a antiguidade, sempre viveu entre o poder da riqueza (nas mãos de uma minoria) e a fraqueza da pobreza (a esmagadora maioria). Fizeram-se revoluções, utilizou-se todo o género de repressões para derrubar os oprimidos, quando se rebelavam. Contudo, até aos dias de hoje, o poder da minoria, que detém a riqueza e o poder, é a grande mola do mundo. É esse poder que desequilibra a balança da equidade. Estamos todos a afundar-nos num abismo de fome, de falta de água potável, de lixo, de poluição e de destruição da vida no Planeta, em nome da ganância. Mas a minoria rica e poderosa continua a fazer os seus estragos, em nome da voracidade e da ambição desmedida por mais riquezas. A maioria assiste, impotente.
O que mudou no mundo, a este respeito? Absolutamente nada. Pelo contrário, cada vez, os governantes são mais desmedidos, mais ambiciosos e mais corruptos.
E evidentemente, não são os Portugueses os grandes destruidores do Planeta.
Em 1808, o Brasil já contava com 300 anos de História. Várias gerações já haviam nascido naquelas terras. Embora descendentes de vários povos europeus (de bons hábitos), entre eles, os Portugueses (ditos de péssimos hábitos no livro «1808»), indígenas e africanos, havia já uma população maioritariamente brasileira. Se para os Brasileiros, os Portugueses eram um povo pequeno que constituía um entrave à evolução do Brasil, a partir de 7 de Setembro de 1822, data da sua independência, esse estorvo deixou de existir. O que se passou depois desse dia até aos dias de hoje não pode ser atribuído à corte cara, perdulária e voraz que (des) governou o Brasil, nem tampouco aos Portugueses que o deram a conhecer ao mundo.
Também se diz no livro que havia uma corte que se julgava no direito divino de mandar… É preciso dizer que esse direito não era exclusivo daquela corte. Já os faraós e os imperadores romanos se consideravam deuses; e Napoleão dizia-se tão divino, que no dia da sua coroação, a 2 de Dezembro de 1804, na Catedral de Notre-Dame de Paris, ignorando a presença do Papa Pio VII, tomou o diadema das suas mãos e coroou-se a si próprio, de frente para o público, e de costas para o Papa, como se, ali, ele é que fosse o “divino”. A tão criticada corte portuguesa, não era mais nem menos divina do que foram as outras cortes, ao longo de séculos de História, concorde-se ou não com este delírio dos poderosos.
Os Portugueses roubaram riquezas das colónias? Penso que o termo roubar é um tanto descabido, uma vez que as colónias eram pertença do país colonizador, logo as riquezas, que lá existiam, pertenciam-lhe, por direito de descoberta. Roubar, roubariam hoje, se se atrevessem a ir ao Brasil, país independente, surripiar uma arvorezinha da borracha, ou um pauzinho-brasil.
Além disso é preciso ter em conta que todos os outros colonizadores Ingleses, Franceses, Espanhóis, Holandeses usavam as riquezas das suas colónias para os mais variados fins. Era uma prática da época, bem como os cerimoniais do beija-mão, ou a da banda de música (esta ainda hoje é usada por vários povos, incluindo o do Brasil) e de todos aqueles rituais descritos no livro, com tanto escárnio.
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11
DE COMO A INGLATERRA DEVE A UMA RAINHA PORTUGUESA O REQUINTADO COSTUME DO “FIVE O’CLOCK TEA”
Prosseguindo na leitura do «1808», aparece-nos o capítulo 17, intitulado «A Senhora dos Mares» (a frota inglesa), onde se realça a capacidade dos Ingleses no domínio marítimo, estendendo aos quatro cantos da Terra o maior império que a Humanidade tinha conhecido até então (1808). Londres era a maior cidade do mundo (…) Multiplicavam-se fortunas (inglesas) graças a invenções revolucionárias, como a locomotiva a vapor. Nesse ambiente criativo e dinâmico, as ideias circulavam livremente…». (…) Como resultado da Revolução Industrial, combinada com o domínio dos oceanos e a expansão comercial, a riqueza de Inglaterra duplicou entre 1712 e 1792». E por aí adiante…
A Inglaterra era o modelo de riqueza, prosperidade, modernidade. É verdade. Mas isso teve um preço, que Laurentino não salientou no seu livro, e a que já aludi: o da exploração do trabalho infantil e das mulheres, o trabalho escravo e também das riquezas retiradas das suas colónias.
Entretanto, embora afastada da época focada no livro, poderia ter-se referido, a título de curiosidade, a influência na corte inglesa de uma rainha portuguesa, que na opinião da autora inglesa Lillias Campbell Davidson foi uma das «melhores rainhas que alguma vez se sentaram no trono de Inglaterra».
Esta Rainha chamava-se Dona Catarina de Bragança, filha do Rei Dom João IV de Portugal e da sua mulher, a Rainha Dona Luísa de Gusmão. A biografia de Dona Catarina é extraordinária. Educada num convento, viu-se, de repente, conduzida para um país de que apenas ouvira falar. A adaptação não foi fácil, mas Dona Catarina não só sobreviveu às intrigas e a um marido muito mulherengo, como soube usar da sua inteligência e do seu poder. Foi graças a ela que os Ingleses adquiriram o hábito de beber chá, o famoso “five o’clock tea”, uma vez que foi ela quem introduziu o chá, em Inglaterra. Levou também para Inglaterra a porcelana e a ópera italiana, isto em 1662, quando se casou com o Rei Dom Carlos II. O que significa que, ao contrário do que demasiadas vezes se insinua no livro «1808», a corte portuguesa não era assim tão insignificante e desrequintada quanto se quis descrever. Os ingleses desconheciam a porcelana e a ópera italiana, numa época em que já a nobreza portuguesa se deliciava a tomar chá por uma chávena de boa faiança, e se deleitava a ouvir as magníficas óperas italianas.
Este é um pormenor a não desprezar. Evidentemente que a corte portuguesa teve os seus altos e os seus baixos, como todas as outras cortes. Naturalmente nunca passou pela magnificência da corte de Luís XIV, o chamado Rei-Sol, porém, toda aquela ostentação da corte de Versalhes era perfeitamente dispensável, numa época em que o povo vivia em condições miseráveis. Além disso, não devia ser, de todo, confortável, andar ataviado com todos aqueles panos e laços, perucas e pó-de-arroz. Era de facto, um exagero. De qualquer modo, essas modas francesas chegariam também a Portugal.
Neste capítulo, poderia ter-se referido também como os dinâmicos Ingleses se aproveitaram da fragilidade do pequeno povo português para se “governarem” melhor. Basta referir o “abarrotamento” dos portos brasileiros com mercadorias perfeitamente inúteis e inusitadas, impingidas pelos nossos “aliados”. Imagine-se o que entraria nos portos, se eles, os Ingleses, não fossem nossos aliados!
Mas isto sempre se fez. Os mais fortes sempre dominaram os mais fracos. O que não pode é escamotear-se os factos e apresentar a História através de vidros esfumados, denegrindo um povo e iluminando outro, apenas por preconceito.
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DE COMO A ESCRAVATURA FOI A NÓDOA NEGRA NA SEDA BRANCA DE TODOS OS POVOS COLONIZADORES
No capítulo 20, sobre «A Escravatura», os portugueses são considerados uns brutos no que respeita ao tratamento que davam aos escravos. Nesta questão, não há bons nem maus. Todos são maus: Portugal, Inglaterra, França, Espanha, Holanda, Dinamarca, Estados Unidos da América. São todos maus.
Todos beneficiaram da descoberta de novas rotas marítimas pelos Portugueses. Todos foram potências coloniais. Todos traficaram escravos em massa. Todos praticaram genocídio.
Mas é preciso ter em conta dois detalhes, se bem que a escravatura não tenha justificação possível:
Primeiro, a escravatura existe desde tempos imemoriais. Com que mão-de-obra construíram os Egípcios os seus piramidais monumentos? Os próprios sábios gregos, os grandes filósofos, criadores da chamada demos-kratia, tinham escravos brancos. Os civilizados romanos praticavam a escravatura. Quem não conhece a história da grande revolta dos escravos, protagonizada por Spartacus, um trácio, branco, que foi feito escravo? Era comum, quando um povo poderoso invadia um povo menos poderoso, fazer dele seu escravo, e violar-lhe as mulheres. Isto sempre se fez e, infelizmente, continua a fazer-se, até aos dias de hoje. Nada evoluiu, nesse aspecto. A violação de mulheres, por soldados invasores de terras, perdura desde as primeiras invasões conhecidas na História, mas o pior de tudo isto é que, apesar de todas as declarações dos Direitos Humanos, continua a persistir no século XXI depois de Cristo.
Segundo, a escravatura dos negros africanos partiu da própria África. Negros poderosos capturavam negros menos poderosos para os vender aos brancos. E os brancos, apesar de se dizerem cristãos, aproveitaram-se dessa exploração de negros pelos próprios negros.
Ainda hoje, na era de todas as evoluções, a escravatura existe, com negros, brancos, crianças, mulheres, bem nas barbas das organizações, ditas defensoras dos direitos da Humanidade. Quantas mulheres brasileiras (entre muitas outras mulheres e crianças de ambos os sexos), em pleno século XXI, não são escravas sexuais na Europa, e noutras partes do mundo?
A inglesa Maria Graham (uma das fontes de Laurentino Gomes) traçou uma visão constrangedora da escravidão no Brasil. Não teria ela conhecimento da escravatura e massacre dos milhões de índios das magníficas tribos americanas, dos africanos e asiáticos que foram mortos ou escravizados pelos colonos Ingleses? Os barcos flamengos e holandeses abarrotavam de escravos, para abastecerem as suas possessões na América do Sul, Pacífico e África. Em 1640, os Holandeses tornam-se os principais fornecedores de escravos da Espanha. Em meados do século XVII, os mesmos holandeses eram o povo que mais traficava escravos no mundo, aproveitando-se das rotas abertas pelos portugueses.
Foram os Holandeses, Ingleses, Franceses, Alemães e Portugueses que produziram o monstruoso conceito da superioridade do homem branco, mais tarde aproveitado pelo alucinado Hitler e seus seguidores.
Diz-se no livro «1808», que os Portugueses foram os últimos a abolir a escravatura. Sim? Mas foram os primeiros a abolir a pena de morte, e dos poucos que, actualmente, não têm pena de prisão perpétua.
E quando o pequeno e pobre povo português manteve os portos brasileiros fechados, não fez mais do que preservar dos olhos gulosos dos outros colonizadores, um pedaço de território que era seu, por direito de descoberta. Está mal? Claro que está. Mas visto à luz da mentalidade da época estava muito bem.
Veja-se os actuais países africanos que se libertaram do jugo de França, no século XX (Marrocos, Tunísia, Guiné, Camarões), e o que foi o legado do Império Colonial Francês! Veja-se o que se passa actualmente na África do Sul (colonizada por Holandeses e Ingleses) onde reinou até há poucos anos o pior dos regimes racistas: o apartheid. Veja-se também em que estado ficaram as ex-colónias africanas portuguesas. Não há que rir uns dos outros. Todos são culpados de crimes contra a Humanidade. É preciso que isto fique bem claro.
As fontes utilizadas em «1808» para consubstanciar o capítulo sobre a Escravatura não foram as mais felizes, uma vez que os países de origem dos escribas cometeram também as maiores atrocidades, e a partir do modo como estas fontes apresentaram o assunto, fica-se com a impressão de que apenas os Portugueses foram cruéis. O viajante espanhol Juan Francisco de Aguirre, que tão mal disse da actuação dos Portugueses, relativamente ao trato dos escravos, saberia dos massacres que o seu povo praticou contra os Incas, brilhante civilização implantada na região andina, desde o sul da Colômbia, até ao norte da Argentina e do Chile, e que os espanhóis destruíram no século XVI? Conheceria o que Fernando Cortés, conquistador espanhol, fez ao povo Asteca, um povo que atingiu um alto grau de civilização, cultura e organização política? O último imperador asteca foi supliciado em 1522, por Cortés. Saberia Aguirre das torturas infligidas aos Maias, índios da América Central, que os espanhóis colonizaram?
Quanto à posse de escravos pela Igreja Católica, depois das Santas Cruzadas e da Santa Inquisição, de muito má memória, tudo era possível! Não foi apenas a Igreja portuguesa que se portou mal. A Igreja de qualquer outro país onde se praticava o Catolicismo não é isenta de culpa. De grande culpa. Em nome de Deus, cometeram-se e continua a cometer-se as maiores atrocidades e os maiores crimes contra a Humanidade, durante um longo tempo. E quem começou essa matança? Certamente não foram os Portugueses.
Este capítulo acaba com uma observação interessante: «Em muitos casos, a liberdade (dos escravos) era um mergulho no oceano de pobreza composto por negros libertados, mulatos e mestiços, à margem de todas as oportunidades, incluindo educação, saúde, moradia e segurança – um problema que, 120 anos depois da abolição oficial da escravatura, o Brasil ainda não conseguiu resolver».
Como já foi referido, em 1808, o Brasil já contava 300 anos de História. Várias gerações já haviam nascido naquelas terras. Embora descendente dos indígenas, do branco europeu (de bons hábitos) entre eles os Portugueses (considerados por Laurentino de péssimos hábitos), e dos negros africanos, havia já uma população marcadamente brasileira. O que impede, então, os Brasileiros de, passados 120 anos sobre a abolição oficial da escravatura, não conseguirem resolver os problemas que são apresentados no livro? A dita pequenez do colonizador português? As audácias dos outros povos brancos que com eles se misturaram? Ou a ineficácia de um povo que ainda não se encontrou e tem vergonha de si próprio?
Fazendo uma pesquisa na Internet, deparei-me com uma frase procedente de uma brasileira, que resume uma ideia (que eu já conhecia quando frequentava a Universidade Gama Filho, no Rio de Janeiro: «Vejamos os EUA por exemplo: lá foram colónia de ocupação, nós aqui (Brasil) de exploração».
Isto é uma ideia completamente errada. Quando começará a ensinar-se aos Brasileiros a História do Brasil tal como ela é? Vejo que pouco mudou nesse sentido. Enquanto estudei no Brasil, eu, que tinha já feito alguns estudos em Portugal, vi-me obrigada a “ouvir” bastantes disparates no que respeita à História dos dois países. Nessa época estava eu a fazer o exame de História Mundial, para ingressar numa universidade do Estado (já havia feito o de Língua Portuguesa, com a nota máxima de 10), o professor abeirou-se da minha pessoa (que fugia um pouco ao padrão brasileiro – tinha pele clara, era alta, esguia, olhos castanho-esverdeados, cabelos a pender para o louro, presos à moda das índias) e perguntou-me se eu era brasileira. Como nunca reneguei a minha origem, disse-lhe que não. Então de onde era? Portugal. Respondi. Imediatamente o professor marcou a minha prova com um “x”. Na altura, aquele gesto não me disse grande coisa, embora ficasse um pouco intrigada. Porém, na minha inocência, nada que fosse impensável. Passados uns dias, regressei para fazer o exame de História do Brasil e a minha prova foi novamente marcada com outro “x”. Desta vez, fiquei com a pulga atrás da orelha. E logo que a pauta das notas saiu, o impensável aconteceu: à frente do meu nome, nos dois exames de História, havia um mísero 2 ou 3, quando eu tinha a certeza de ter feito exames para 8/9. Na pauta ao lado, a do exame de Língua Portuguesa (quando ainda ninguém sabia a minha nacionalidade) lá estava, o meu brilhante 10. A conclusão foi rápida: uma portuguesa nunca entraria numa universidade do Estado, no Rio de Janeiro, por isso a minha prova foi marcada com um “x”.
Apesar da decepção, não desisti, e fui fazer exame para as vagas da Universidade Gama Filho. Éramos cerca de 250 alunos, para 14 vagas. Eu fiquei entre os 14. Lá, o meu saber foi recompensado. Era um lugar de Estudo, onde se pagava bem, e o dinheiro é daquelas coisas que não têm nacionalidade.
O território onde hoje se encontram os EUA era habitado por magníficas tribos de índios, tal como o Brasil. E o que é que os Ingleses (colonizadores) e os Americanos (descendentes dos Ingleses) fizeram com eles? Massacraram-nos, e os que sobreviveram reduziram-nos a reservas. E o que fizeram com os escravos que levaram de África? Exploraram-nos e torturaram-nos. Que ideia fará aquela brasileira, de ocupação e de exploração, para dizer o que disse?
© Isabel A. Ferreira
(Continua)
(I Parte)
http://arcodealmedina.blogs.sapo.pt/dom-joao-vi-como-um-principe-valente-485068
(II Parte)
http://arcodealmedina.blogs.sapo.pt/dom-joao-vi-como-um-principe-valente-485454
(IV Parte)
http://arcodealmedina.blogs.sapo.pt/dom-joao-vi-como-um-principe-valente-489691
II Parte
Dom João VI – Como um Príncipe Valente Enganou Napoleão e Salvou o Reino de Portugal e o Brasil
(Contestação do livro «1808», de Laurentino Gomes)
(2ª edição corrigida e aumentada)
© Isabel A. Ferreira
(Este texto não pode ser reproduzido, no todo ou em parte, por qualquer processo mecânico, fotográfico, electrónico, ou por meio e gravação, nem ser introduzido numa base de dados. Difundido ou de qualquer forma copiado para uso público ou privado, além do uso legal como breve citação em artigos e críticas, s em a prévia autorização por escrito da autora)
(Imagem © J. A. Ferreira)
3
DE COMO UM PEQUENO REINO SE FEZ IMPÉRIO, E DE COMO DETERMINADAS CIRCUNSTÂNCIAS FAZEM TODA A DIFERENÇA
Apesar de ter um território pequenino, durante os séculos XV e XVI, Portugal foi uma potência mundial económica, social e cultural, constituindo-se o primeiro e o mais duradouro império colonial, facto de que posso não orgulhar-me grandemente, pois não sou, de todo, adepta da colonização imposta. No entanto, não é da inteligência ignorar o passado, como se ele nunca tivesse existido.
Descobrir terras, caminhos marítimos, dar novos mundos ao mundo, sim, é louvável para um pequeno povo. No entanto, a imposição de uma outra cultura, de uma outra religião, de outros costumes e da escravidão, aos povos descobertos, considero que foi uma crueldade desmedida. A mesma crueldade que consideraria se Portugal, hoje, fosse invadido por extremistas islâmicos e me obrigassem a vestir a burka (burca ou burga é uma versão radical do xador, uma veste feminina que cobre todo o corpo da mulher, até o rosto e os olhos), ou me obrigassem a virar para Meca, várias vezes ao dia.
Apesar de poder contestar o passado (é um direito que me assiste) devo aceitar que os tempos eram outros, o pensar das gentes era outro, os contextos eram outros, e portanto os Portugueses fizeram o que fizeram, tal como todos os outros povos conquistadores de terras e de gentes.
Ao ler o livro «1808», porém, fica-se com a sensação de que os Portugueses foram os únicos povos a colonizar, a escravizar e a impor uma cultura e uma religião aos indígenas, que viviam nas terras descobertas; fica-se com a amarga sensação de que os Portugueses eram os mais feios, os mais porcos, os mais maus (apossando-me do título de um filme de 1976, do realizador Ettore Scola), e os mais ignorantes do mundo.
Às fontes que Laurentino Gomes consultou, maioritariamente inglesas e de viajantes ocasionais, para a descrição das partes mais desprestigiantes da nossa corte e do nosso Príncipe Dom João e de Dona Carlota Joaquina, deve dar-se um valor relativo. Se visitássemos a cidade italiana de Nápoles, em Maio de 2008 (cujo povo, por circunstâncias várias, decidiu despejar todo o lixo na rua) e descrevêssemos o que vimos, sem abordar essas tais circunstâncias, daqui a duzentos anos, alguém diria que o povo de Nápoles não tinha bons hábitos de higiene, quando, em toda a Europa, já todos eram muito civilizados.
As coisas ditas fora do seu contexto soam a aleivosia.
Não ponho em causa a veracidade dos factos mais desprestigiantes para Portugal, descritos no livro «1808». Dom João era feio? Dona Carlota Joaquina era horrorosa? Sim, e daí? Quanta gente feia há por aí a reinar, a governar e a governar-se? Ser feio não é defeito, é uma circunstância. Nem todos nascem belos. E o que é feio para uns pode até ser bonito para outros. A beleza é um conceito subjetivo. E a feiura, a obesidade, as roupas mal talhadas ou a vida privada (a não ser que haja depravação) não devem ser motivo para incluir numa crítica que se queira fazer à política de um governante.
Dom João e Dona Carlota Joaquina não foram muito dotados pela natureza. E que culpa têm eles? A beleza não se põe na mesa. Não foram felizes? Como poderiam ser, se o casamento deles foi uma imposição? Os seus hábitos de higiene não eram recomendáveis? Como poderiam ser, nas circunstâncias da época? Raros seriam aqueles que teriam hábitos higiénicos recomendáveis, num tempo em que não havia redes de saneamento eficientes. Esta era uma carência generalizada, e ver-se livre dos dejectos humanos era uma tarefa bastante preocupante e difícil, naquela época, em todos os palácios do mundo.
No livro «1808», fala-se, de um modo escarnecedor, do ataque de piolhos, a bordo dos barcos, e que obrigaram as damas da corte a raparem o cabelo, incluindo Dona Carlota. Fala-se no aspecto paupérrimo com que Dom João e a mulher e toda a comitiva se apresentaram, ao desembarcarem no Rio de Janeiro, em 1808. É preciso ter em conta que naquela época não se viajava propriamente em paquetes de luxo. A água para beber, nos barcos, era escassa, imagine-se para tomar banho ou lavar a roupa, a bordo! Foram quase três meses e meio no meio do mar. Uma vez mais as circunstâncias não eram as ideais, para que a corte desembarcasse em boa forma, com belas vestes, a cheirar a alfazema ou a perfumes franceses.
Isto servia para qualquer corte do mundo. Os hábitos de higiene eram parcos em todas as cidades da Europa, dita civilizada. A Londres dessa época era tão ou mais suja do que Lisboa. As ruas de Paris, cidade maravilhosa, “cidade luz”, eram imundas, e ainda hoje, não se apresenta com grandes asseios. Em 1992, quando lá estive, vi cidadãos de “boa figura” a levarem as baguettes (um pão comprido) desembrulhadas, debaixo do sovaco, literalmente, uma vez que muitos deles (homens) vestiam t-shirts sem mangas. E enquanto me passeava no Champ de Mars, sujei os sapatos, várias vezes, nos abundantes dejectos de cães, espalhados pelos caminhos do jardim.
Os reis das cortes europeias da época de Dom João VI também comiam os franguinhos assados com as mãos. Era o que dava mais jeito. Atiravam os ossos para o chão. Limpavam as mãos à roupa. Nem todos. Concordo. Depois de Luís XIV, na corte de Versalhes as coisas mudaram, e foi imposta uma certa etiqueta, mas na generalidade comia-se com as mãos. Ainda hoje vemos coisas do género, cometidas por gente que se diz muito elegante. No entanto, apesar da sumptuosidade do palácio, nele não havia quartos de banho. Logo, o chiquíssimo Luís XIV também usava um penico, tal como Dom João VI, ou outro qualquer rei ou rainha da época, ou qualquer comum mortal. Por isso, é um tanto descabido que Laurentino Gomes motejasse de um modo acintoso sobre o facto de Dom João VI usar um penico, que era levado palácio fora, para ser despejado. Era assim, em todos os palácios, em todas as casas nobres, por toda a Europa.
No entanto, há um outro pormenor que, embora não absolva Dom João VI da sua “falta de maneiras”, pode justificar essas atitudes menos próprias de um Príncipe Regente, candidato a Rei. É que ele não foi educado para ser rei. Como já referi, os príncipes herdeiros do trono tinham uma educação refinada, apropriada à sua condição de futuro rei. Ora Dom João não estava destinado a ser rei, logo, não se perdia muito tempo com as maneiras dos príncipes “menores”, e eles acabavam por proceder como o comum dos mortais, uns mais, outros menos. Tudo seria uma questão de personalidade.
Ainda um outro pormenor, este de carácter íntimo: quando uma pessoa não é bonita, nem feliz, sentirá vontade de se refinar, de se enfeitar (para quê? para quem?)? Dom João não nasceu para ser rei. Dom João não nasceu belo. Dom João não se casou por amor àquela menina espanhola que lhe impingiram. Dom João era displicente. Sim. Que motivos teria para não ser? As forças das circunstâncias fizeram-no Príncipe Regente e, mais tarde, Rei, e a idade do “refinamento” já havia passado. A existência era um fardo demasiado pesado para ele, que teve outro sonho de vida.
Depois foi para o Brasil. Uma terra quente, que torna as pessoas molengonas. É por isso que se diz que os Brasileiros, os Africanos, os Algarvios não gostam muito de trabalhar. São preguiçosos. Não será bem assim. O calor não é muito compatível com o trabalho. É verdade. Contudo, há grandes fortunas no Brasil. E estão nas mãos de quem? Dos Brasileiros, Brasileiros de gema? Não. Estão nas mãos dos estrangeiros, entre eles, muitos Portugueses. O calor, a esses, não afectará? Talvez esta particularidade da preguiça se deva à motivação.
Quem são afinal os Brasileiros?
No dia 22 de Abril de 1500, Pedro Álvares Cabral chega a Terras de Vera Cruz, mais tarde de Santa Cruz, e depois da exploração do pau-brasil, terras do Brasil. E quem vivia nessas Terras de Vera Cruz? Povos indígenas, com uma cultura própria e muito rica. Diz-se no livro «1808» que «os Portugueses achavam-se superiores aos indígenas e, portanto, deveriam dominá-los e colocá-los ao seu serviço». Não eram apenas os Portugueses que assim pensavam. Os Ingleses, os Franceses, os Holandeses, os Espanhóis, todos os povos colonizadores daquela época, pensavam o mesmo e fizeram o mesmo, com os povos que encontraram nas terras que foram ocupando. São todos condenáveis, à luz dos nossos valores actuais. Porém, naquela época, era assim que se pensava e agia. Por isso se diz que o mundo vai evoluindo, e que o Homem deve aprender com os erros do passado, para construir um futuro melhor. Porém, uma coisa é o que se diz, outra coisa é o que se faz, e o que poderia ser evolução não tem passado de retrocesso.
Além disso, o que dizer hoje dos Brasileiros (já lá não mandam os Portugueses há duzentos anos) que invadem a terra dos indígenas, matam-nos, queimam as suas aldeias, para lhes “roubarem” a madeira, e com isso, devastam a Floresta Amazónica, que está em perigo?
Portanto, às fontes inglesas, utilizadas no livro «1808» que falam do modo desumano como os Portugueses trataram os indígenas e mais tarde os escravos africanos, devemos acrescentar o modo como todos os povos colonizadores (Ingleses incluídos) tratavam cruelmente os seus escravos e os povos indígenas das respectivas colónias. Pelo que lemos no livro, esta parte é tratada como se apenas os Portugueses fossem os “piores do mundo”. No entanto, em questão de maldade, nenhum povo colonizador é isento de culpa.
Bem sei que o livro é sobre factos históricos portugueses com ligação ao Brasil, mas ainda assim, naquela época, Portugal era Portugal e as suas circunstâncias, inevitavelmente aglutinadas às circunstâncias dos restantes reinos do mundo.
Ora os Portugueses chegaram ao Brasil e já lá havia índios e índias, ao que parece irresistíveis. Depois vieram os negros e as também irresistíveis negras de África. Com a abertura dos portos, foram chegando uns e outros europeus. Mais tarde, chegaram os refugiados das grandes guerras europeias: judeus alemães, russos, polacos. Vieram também os italianos, os gregos, os japoneses. Enfim, eles e elas irresistíveis, e eis que temos hoje brasileiras e brasileiros lindíssimos, fruto dessa união de povos.
Os Brasileiros não sentem orgulho das suas origens? Penso que não haverá nenhum brasileiro actual, que não seja descendente de algum europeu, ou africano, ou asiático, ou americano… Brasileiros puros, encontrá-los-emos apenas, talvez, entre os indígenas, chamados índios, que não se misturaram com os colonos ou com os imigrantes que chegaram mais tarde.
Porquê, então, essa aleivosia contra os Portugueses?
Os actuais Norte-americanos têm uma história análoga à dos Brasileiros. Os Ingleses e, mais tarde, um povo já nascido nos Estados Unidos da América do Norte o que fizeram com os indígenas? O que fizeram com os escravos africanos? O que são hoje as suas ex-colónias? O que é hoje a África do Sul, ocupada primeiramente pelos muito civilizados Holandeses, e depois pelos também muito gentlemen Ingleses?
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4
DE COMO A MÁ UTILIZAÇÃO DAS PALAVRAS PODE DISTORCER REALIDADE
O jornalista Laurentino Gomes, no seu livro «1808», utilizou o termo fuga ao referir-se à viagem do Príncipe Dom João para o Brasil. Tem todo o direito de o fazer, e, aliás, nem sequer foi o primeiro a dizê-lo. Há historiadores portugueses que o dizem. Porém, se quisermos escrever História com imparcialidade, significando isto atermo-nos simplesmente aos factos históricos, tal qual eles se nos apresentam, sem fazer nenhum juízo de valor e afastando a nossa ideologia política (um anti-monárquico tem a tendência para desprezar todo o legado da monarquia; um esquerdista tem a tendência para dizer mal de tudo o que fez Oliveira Salazar; e por aí adiante), ficamos com uma outra visão da História.
Se analisarmos, a frio, os factos da época em que Dom João viajou para o Brasil, com a sua corte, nunca diríamos que ele fugiu porque teve medo de Napoleão. Ele encontrava-se entre a espada, a parede e um usurpador de reinos, atrás dessa parede. De um lado os Ingleses (a espada), seus aliados de sempre, embora interesseiros (veja-se as condições impostas por eles em troca da sua protecção na viagem para o Brasil: abrir os portos brasileiros, apreensivos que estavam os Ingleses com o Bloqueio Continental decretado por Napoleão). Do outro lado, uma grandiosa Espanha (a parede) interessada no nosso pequeno território e nas terras do nosso grande império, e que tinha acabado de trair Portugal na chamada Campanha do Rossilhão. E por detrás dessa parede, o usurpador de reinos (Napoleão) que acabara de assinar o tratado de Fontainebleau, através do qual repartia o reino de Portugal pela França e pela Espanha.
Se Portugal se submetesse a Napoleão e aderisse ao Bloqueio Continental perderíamos o nosso país, e as esquadras britânicas (as maiores e melhores da época) apossar-se-iam da Ilha da Madeira, de Cabo Verde, do Brasil e das colónias africanas, que possivelmente jamais nos seriam restituídas. E talvez também ficássemos à mercê dos Franceses, dos Espanhóis, dos Holandeses e de quem mais andava pelo mundo a engordar os seus reinos.
Então, o que fazer? Embora à custa do sacrifício e da grande preocupação do povo, Dom João fez uma retirada estratégica (penso que esta expressão é a que melhor corresponde à decisão do Príncipe) utilizando, para tal, uma arma muito conveniente: a astúcia. Dizendo que sim a Napoleão, dizendo que sim, aos Ingleses. Vacilou? Quem não vacilaria em tal situação? O que pretendia empreender era uma verdadeira e arriscada aventura. Podiam perecer todos nas águas profundas do oceano, e com eles, Portugal afundar-se-ia também. Contudo, sair do país era algo que merecia o risco. Em jogo estavam um reino, uma dinastia, um império. Se resultasse, nem tudo estaria perdido.
No último parágrafo do capítulo 1, «A Fuga», Laurentino Gomes escreve «que havia uma terceira alternativa para D. João: ficar em Portugal, enfrentar, ao lado dos Ingleses, Napoleão, mesmo correndo o risco de perder o trono e a coroa. Os factos mostrariam mais tarde que as hipóteses de sucesso eram grandes, mas em 1807 essa opção não estava ao alcance do inseguro e medroso príncipe regente. Incapaz de resistir e enfrentar um inimigo que julgava ser muito mais poderoso…». Claro que não! Ninguém sabia que o poderoso exército de Napoleão estava depauperado. É muito fácil, a todo este tempo de distância, dizer que se Dom João tivesse ficado, se Dom João tivesse resistido… Acontece que a História não se faz com ses. Era preciso tomar uma decisão rapidamente. Dom João tomou-a, não porque fosse incapaz de resistir e enfrentar um inimigo que julgava poderoso, mas porque um valor mais alto se levantou: o da preservação do seu reino, do seu império colonial, e a continuidade da sua dinastia.
Quando Laurentino Gomes se refere a Dom João como o inseguro e medroso príncipe, que injustiça! Inseguro, sim, talvez, pelos motivos já expostos. Mas medroso? Que injúria! Um homem tímido, que não nasceu, nem foi educado para ser rei e que deixa a sua terra e parte para poder salvar o seu reino, não é propriamente um medroso. É alguém que sabe jogar com as peças que tem, e no final, consegue dar um “xeque-mate” a Napoleão, o mais poderoso homem da época.
O capítulo 2, com o título «Os Reis Enlouquecidos» é muito curioso, porque tenta justificar a loucura da rainha, depois de, no subtítulo, tê-la chamado de louca sem qualquer rodeio. E o que fica são as primeiras impressões. Bem, o certo é que as doenças mentais tanto afectam a realeza como os plebeus. E uma doença é de lamentar em quaisquer dos casos. Não é aceitável colocar na berlinda, assim cruamente, alguém que não tem culpa da sua alienação, provocada por doença mental.
Num determinado parágrafo, que começa com uma citação do historiador pernambucano Manoel de Oliveira Lima, diz-se: «Se lançarmos os olhos para a Europa de 1807…». Sim, o que vemos? Reis, dinastias, imperadores, quase todos subjugados a Napoleão. Nesse rol não consta o nome de Portugal. O pequenino país, encostadinho ao mar, com um grande gigante por vizinho (o rei de Espanha andava a mendigar em solo francês a protecção de Napoleão – diz-se no livro), não está nessa lista de subjugados. E mais se diz que Dom João VI era medroso. Neste livro, usa-se e abusa-se demasiado, do indeciso e medroso Dom João. Muito injustamente. A História não pode fazer-se utilizando este tipo de argumento. O que interessa fundamentalmente são os actos e as suas consequências, e nuns e noutros verificou-se que Dom João, apesar da indecisão, ousou seguir em frente. Não se acovardou.
É preciso dizer, igualmente, que o reinado de Dom João VI decorreu numa época de grandes mudanças não só em Portugal como no mundo, e teve o azar de ser um joguete e vítima da longa luta da Inglaterra contra Napoleão, durante o Consulado e o Império deste.
O que Dom João VI teve de enfrentar durante a sua regência e o seu reinado fizeram dele não o covarde descrito no livro «1808», mas o corajoso monarca que conseguiu ultrapassar todas as dificuldades, sem deixar cair o reino.
Depois das tentativas fracassadas para um impraticável equilíbrio entre a França revolucionária e a Inglaterra imperialista, eis que Portugal vê-se a braços com o despontar vertiginoso da Revolução Francesa e a inevitável guerra europeia; com o Tratado de Fontainebleau (que dividia Portugal entre a França e a Espanha), ignorando que Portugal não era terra de ninguém: Portugal era um reino governado por um rei; com o Bloqueio Continental; com a campanha do Rossilhão, durante a qual os portugueses foram traídos pela Espanha; com a guerra com a Espanha e a perda de Olivença; com as invasões francesas ao território português em 1808, 1809 e 1810; e com a transferência da corte portuguesa para o Brasil (1808-1821) elevado a reino em 1815.
Isto foi «a derrocada de um mundo e o nascimento de outro. Nada mais foi igual depois da Revolução Francesa e da imposição do imperialismo de Napoleão».
Mais tarde Dom João VI teve de enfrentar ainda: as conspirações liberais de 1817 (em Portugal e no Brasil); a vitória liberal de 1820; o regresso da corte a Portugal (1821) instada pelas Cortes de Lisboa; a independência do Brasil (1822 – Dia do Fico (9 de Janeiro) e o Grito do Ipiranga pelo Príncipe Dom Pedro, a 7 de Setembro); o Juramento da Constituição de 1822; a Vila-Francada em 1823 (movimento militar promovido por Dom Miguel, com a cumplicidade de sua mãe, Dona Carlota Joaquina); e no ano seguinte, 1824, a Abrilada, também fomentada por Dona Carlota Joaquina.
Como já foi referido, em 1807, Dom João decidiu pela transferência da corte portuguesa para o Brasil, evitando ser aprisionado com toda a família real e o governo, tornando possível manter a autonomia portuguesa a partir do Rio de Janeiro. Manteve assim também o Brasil em poder de Portugal, embora isto o tivesse feito mais dependente em relação à Inglaterra, com a imposição da abertura dos portos brasileiros ao comércio internacional e o tratado Luso-Britânico de 1810, desastroso para a economia portuguesa, embora (ou por isso mesmo) decisiva para o progresso e a independência brasileira.
A ideia de que a Família Real Portuguesa fugiu para o Brasil é derrubada pelo facto de, na época, o território brasileiro pertencer a Portugal. O que realmente ocorreu foi a transferência da sede da Corte para outra parte do Reino.
Na minha pesquisa, vários foram os termos que encontrei para designar a saída de Dom João de Portugal para o Brasil: transferência, retirada, deslocação da corte...
Jaime Cortesão chegou mesmo a chamar-lhe “emigração”.
Damião Peres (um dos grandes historiadores portugueses que também consultei) considerou-a uma tomada de posição de esclarecido senso político.
Eu adoptei a teoria da retirada estratégica.
Dom João teve visão de estadista e esta retirada foi uma manobra política inteligente para enfrentar a hegemonia napoleónica.
Dom João era um homem de tácticas: protelar as soluções era uma dessas tácticas, segundo alguns autores, e essa atitude foi muitas vezes confundida com “covardia”. Porém, ao analisarmos sem preconceitos ou ideias predefinidas estas hesitações de Dom João, poderemos considerá-las “prudência” e não “covardia”.
Outros consideraram-no despreparado para governar.
O certo é que, no Brasil, o governo de Dom João VI tomou notáveis medidas, as que se impunham, para manter a colónia, introduzindo-lhe novos ventos que sopraram em direcção ao progresso: liberou a actividade industrial em 1808; criou o Banco do Brasil em 12 de Outubro de 1808; declarou uma autonomia administrativa em 1815; fundou a Biblioteca Real e a Imprensa Régia, as Academias Militar e da Marinha e um hospital militar; criou uma fábrica de pólvora no Rio de Janeiro e o ensino superior (duas escolas de medicina), pois até então Portugal nunca permitira a fundação de uma universidade na colónia, ao contrário da Espanha nos seus domínios da América espanhola; criou o Jardim Botânico e a Academia das Belas Artes; abriu ao tráfico uma rede de estradas que se estendeu a quase todo o Brasil; concedeu protecção aos transportes marítimos que estabelecessem relações directas entre a colónia e os grandes centros europeus; fez um largo apelo ao trabalho dos estrangeiros, para suprir o mais possível, por motivos de ordem humanitária, o esforço do escravo; prosseguiu a obra de fixar em povoações um grande número de elementos indígenas; e procurou explorar de uma maneira mais inteligente os vários recursos do país.
Seria esta a obra de um homem covarde? Dom João VI, que morreu a 10 de Março de 1826, protagonizou o momento da entrada de Portugal na contemporaneidade.
E isso não foi coisa pouca.
No capítulo 3, do «1808», intitulado «O Plano», começa-se logo por referir algo espantoso: «A invasão iminente de Portugal pelas tropas de Napoleão Bonaparte obrigou o príncipe regente Dom João a optar pela fuga». Logo a seguir tecem-se considerações que, na realidade, correspondem a factos históricos já aqui referidos.
Portanto, não se entende por que motivo se escolheu os termos obrigou e novamente a fuga, para relatar a retirada estratégica de Dom João. Napoleão não obrigou Dom João a fugir de coisa alguma. Pelo contrário, Napoleão queria, isso sim, obrigar Dom João a ficar e a submeter-se ao seu poder. Era mais um reino que engrossaria o seu já tão grande império. Dom João recusou tal humilhação. Nenhum outro rei ousou desobedecer aos ultimatos de Napoleão, mas Dom João sim. E uma tal ousadia não combina com o termo medroso, que tão insistentemente é utilizado por Laurentino Gomes para caracterizar o Príncipe Regente. A invasão iminente de Portugal por Napoleão, apenas acelerou a tal retirada estratégica, há muito reflectida.
No final deste capítulo, Laurentino Gomes utiliza uma fonte, uma vez mais, inglesa, Sir Charles Oman, que não sei onde foi buscar a seguinte informação: «Não há exemplo na história de um reino conquistado em tão poucos dias e sem grande resistência como Portugal em 1807 (…) Era um testemunho não apenas da fraqueza do governo português, mas também do poder que o nome de Napoleão inspirava nessa época».
Em primeiro lugar, o reino não foi conquistado, no sentido literal do termo. O reino foi ocupado pelos franceses, ocupação essa, facilitada pelas ordens de Dom João que, tendo nomeado um Conselho de Regência, para o substituir na sua ausência, ordenou-lhe que recebesse os Franceses como amigos, para evitar represálias. E assim foi feito. Junot chegou a Portugal com as suas tropas esfarrapadas e foi recebido amigavelmente.
Ora isto não tem nada a ver com conquista, nem com fraqueza do governo português. Tem a ver, uma vez mais, com uma estratégia astuciosa, por parte de Dom João, que pensava no todo-poderoso exército francês. Contudo, os Franceses chegaram muito debilitados, e encontraram um povo que, desmotivado, os acolheu placidamente, por ordem régia. Aqueles, tendo deste modo a vida facilitada, instalaram-se no reino, como se o reino lhes pertencesse. Mas por pouco tempo. As revoltas contra a “ocupação” francesa foram-se multiplicando por todo o país, e não tardou que os Franceses fossem corridos de Portugal, com o auxílio, evidentemente dos Ingleses, sem o qual tal feito não teria sido possível.
Aqui, uma vez mais, é necessário ter em conta as circunstâncias. Os Portugueses encontravam-se sem rei nem roque, mas ainda assim, conseguiram resistir, e Portugal não caiu nas mãos dos Franceses. Isto é um feito que não é para qualquer um.
Apesar de Napoleão inspirar poder não impediu que os Portugueses não se lhe rendessem. Três vezes a França invadiu Portugal, três vezes foi escorraçada. Da segunda invasão, pelo general Soult, as fontes históricas dizem que este «reconhecendo a inutilidade da resistência, fugiu desordenadamente e abandonou Portugal». Isto, sim, é uma fuga, no sentido prático da palavra. Fugiu, com medo de que o destroçassem.
***
5
DE COMO UM IMPÉRIO DITO DECADENTE CONSEGUE SOBREVIVER E IMPOR-SE ENTRE IMPÉRIOS PODEROSOS
No capítulo 4, «O Império Decadente», uma vez mais Laurentino Gomes não contextualizou as circunstâncias que conduziram a essa decadência. Em todas as épocas, todos os impérios passaram por períodos de decadência, pelos mais variados motivos. Diz-se que não há bem que sempre dure, nem mal que nunca acabe. Isto aplica-se aos impérios. A todos os impérios. A todos os usurpadores. A todos os colonizadores. E Portugal não fugiu à regra.
Portugal era, sim, um país pequeno, com poucos recursos, mas cheio de gente valorosa. Não fosse isso, não teríamos conseguido sobreviver às inúmeras investidas de Espanha, e o império colonial português (embora não me orgulhe desta “coisa” de império colonial, mas não posso ignorá-lo, porque fez parte de um passado que foi comum a outros povos colonizadores – Ingleses, Espanhóis, Franceses, Holandeses, e que em questão de “civilização” não foram “melhores” do que os Portugueses) não se teria mantido durante tanto tempo, o que não será também motivo de orgulho, mas enfim, faz parte da nossa História.
O que é motivo de orgulho é que desde a sua fundação, Portugal viu-se envolvido em incontáveis guerras e batalhas, para manter a sua autonomia, e as vitórias foram, de longe, muito mais numerosas do que as derrotas. O que significa que o pequeno e ignorante povo (no dizer de fontes facciosas) não era assim tão pequeno, tão ignorante e tão desprovido de predicados.
«De todas as nações da Europa, Portugal continuaria a ser, no início do século XIX, a mais católica, a mais conservadora e a mais avessa às ideias libertárias que produziam revoluções e transformações em outros países». Lê-se no livro «1808».
Ora, é preciso ter em conta, uma vez mais, a situação geográfica de Portugal, a orelha da Europa. De um lado o mar imenso, ao qual, mesmo os intelectuais, os nobres, os cultos, os estudiosos, não tinham um acesso fácil, naquela época. Do outro lado a Espanha, o nosso único país vizinho, com o qual estávamos quase sempre em guerra defensiva; um território que, por vezes, era perigoso atravessar sem escolta, e que tinha de ser percorrido de carruagem, a cavalo ou a pé, para se chegar à cidade luz ou ao centro da Europa. Não era fácil, na época. Daí o quase isolamento de Portugal. O que podia fazer um povo encravado entre o mar e uma Espanha hostil, naqueles tempos, quando uma carta que se escrevesse a alguém demorava meses a chegar ao seu destino? As notícias das revoluções, quaisquer que fossem (políticas, sociais, culturais, religiosas) chegavam ao conhecimento dos Portugueses, quase só quando tinham acabado. Como poderiam eles beber, tão rapidamente quanto os outros países, os novos tempos que iam surgindo numa Europa em evolução?
Estou convicta de que o atraso que Portugal sempre manteve em relação aos restantes países da Europa, numa época em que os meios de comunicação eram precaríssimos, assenta nestas duas barreiras físicas: a grande e profunda extensão das águas do oceano Atlântico e a imensa terra de Espanha. Basta olhar para o mapa da Europa, para se ter uma visão global desse posicionamento, desfavorável a um contacto mais assíduo de Portugal com a nova realidade europeia.
Então o que restava fazer? A Igreja, que foi Poder na Europa, durante a Idade Média, poder que foi perdendo com o avançar do Iluminismo, em Portugal teve a oportunidade de se instalar e perdurar, precisamente porque o povo se “acomodou” a um destino condicionado pela já referida situação geográfica. A Revolução Francesa e mais tarde o regime napoleónico não chegaram propriamente a criar raízes em Portugal, mas também na Espanha. No século XVI, quando o Protestantismo circulava já pela Europa, na Península Ibérica não entrou com a força com que vingou em outros países europeus. Por isso, não admira que a vida social portuguesa (mas também a espanhola) «se pautasse pelas missas, procissões e outras cerimónias religiosas», conforme se diz no livro. Isto aconteceu não porque os Portugueses fossem mais beatos do que os restantes povos europeus. Não foi em Portugal que nasceram as grandes Ordens Religiosas que dominaram a vida na Europa, durante séculos. Na Espanha, na França, na Itália, a Igreja sempre teve uma influência dominante, tão dominante ou mais do que em Portugal.
Além disso, desde tempos longínquos, quando a vida se torna difícil, o povo tem a tendência para recorrer ao transcendente. O apego à religião não é um fenómeno exclusivamente português. É preciso ter em conta os contextos em que as religiões se impõem. Ainda hoje vemos que é fácil “impingir” uma crença a alguém que está moralmente frágil.
Diz-se neste capítulo que Antero de Quental, poeta e escritor Português, ao analisar o quadro desolador da metrópole e da sua vizinha Espanha, no século XVIII, disse: «Saímos de uma sociedade de homens vivos, movendo-se ao ar livre, e entramos num recinto acanhado e quase sepulcral, com uma atmosfera turva pelo pó dos livros velhos, e habitado por espectros de doutores».
Bela prosa. Gosto de Antero. No entanto seria necessário situar este texto, para quem não conhece o percurso do poeta. De onde teria saído Antero? Onde teria entrado Antero? Talvez possamos imaginar que Antero tenha chegado a Portugal, vindo da luminosa Paris. Porém, também é preciso dizer que Antero era socialista, republicano, revolucionário, um inconformado, anti-monárquico, e sobretudo muito pessimista em relação às coisas do seu país (era um homem bastante depressivo, o que o levaria ao suicídio), tudo aspectos muito curiosos e necessários para analisar as suas palavras. E é do pessimista ver o mundo através de vidros esfumados, que não deixam ver a claridade.
Laurentino Gomes arremata este episódio com o seguinte: «Embora Quental tenha incluído a Espanha no rol do atraso, Portugal era, dos dois países, de longe o mais decadente e o mais avesso à modernização dos costumes e ideias». E isto não é justo que se diga. Portugal até poderia ter sido, pelos motivos já expostos (o da situação geográfica) o mais decadente dos dois países, naquela época precisa, mas não era e nunca foi avesso à modernização, nem evolução dos costumes e ideias. Poderia referir aqui uma infinidade de exemplos, que contrariaria essa ideia, e que daria para escrever um outro livro, no entanto, direi apenas que Portugal, depois de um período caótico que se seguiu às invasões francesas, e de uma crescente influência da economia inglesa sobre os mercados portugueses (os ingleses cobravam o seu preço, pelo apoio que dispensavam aos Portugueses) viveu um período de “renascimento”.
Em 1851 o Marechal Duque de Saldanha estabeleceu uma nova era política em Portugal, através de um golpe de estado que ficou conhecido por Regeneração, o qual tentou recuperar Portugal do atraso económico e tecnológico em que estava afundado. E foi razoavelmente bem-sucedido, nas áreas dos transportes, da exploração agrícola e da indústria.
O problema do atraso de Portugal foi sempre um problema de posição geográfica e de sobrevivência. Durante longos anos, e muito frequentemente, teve de defender o seu território das investidas da vizinha Espanha. Ora, as guerras não se fazem sem armas, sem exércitos, e para tal é preciso um fundo de maneio. E quando um povo é pequeno e com poucos recursos, a prioridade vai para a sobrevivência e como se defender dos invasores. A cultura, a ciência, as artes têm de aguardar melhores oportunidades. Contudo, ainda assim, os Portugueses são grandes na Literatura, na Poesia, na Engenharia, nos inventos. E também na Arte, basta dar uma vista de olhos pelos «Tesouros Artísticos de Portugal», livro coordenado e orientado pelo Dr. José António Ferreira de Almeida, professor catedrático de História de Arte. Aí vemos toda a riqueza artística de um Portugal, que, nesta matéria, não fica abaixo de nenhum outro país, considerado “grande”, “civilizado”, evoluído”.
A fonte Lilia Schwarcz, citada no «1808», diz a determinada altura: «Portugal contentava-se em sugar as suas colónias de maneira bastante parasitária». E a Inglaterra? E a França? E a Espanha? E a Holanda? Não “sugavam” as suas colónias de modo parasitário? Faça-se um périplo pelas ex-colónias desses países e veja-se o que foram enquanto colónias, e o que são hoje, como países livres. Sobre isto não será necessário dizer muito mais, uma vez que as evidências falam por si.
No entanto, também é necessário sublinhar que as colónias eram território dos colonizadores. Não eram dos povos nativos. É errado? É. Mas assim era, naquela época.
Mais adiante lemos que o nosso rei Dom José I, pai de Dona Maria I, foi um rei fraco, no entanto seria preciso explicar a origem dessa fraqueza. Ele era tão fraco como alguns reis Ingleses, Franceses, Espanhóis. O famoso rei Henrique VIII (que ainda era mais obeso do que Dom João VI) tinha, em escala muito maior, a mesma fraqueza de Dom José I – ambos não podiam ver umas saias. A filha deste, Dona Maria I, era tão beata como tantas outras rainhas e princesas da época. Da maneira como os factos são apresentados no livro «1808», quem não conhece nada de História Mundial fica com a sensação de que apenas os portugueses eram uns fracos, uns ignorantes, uns ociosos, uns aproveitadores, uns misseiros, uns papa-hóstias. E isso é injusto, embora admita que em meados do século XIX, Portugal ainda era muito conservador, em relação aos outros países da Europa. Mas não nos esqueçamos das barreiras físicas e da necessidade de sobrevivência e de nos defendermos da poderosa Espanha.
Em Portugal havia muitas igrejas e mosteiros? Claramente. Mas é preciso que se tenha em conta o seguinte: Portugal, nos tempos da sua fundação, era uma terra por desbravar. Então, Dom Afonso Henriques, nosso primeiro Rei (1128-1185) entendeu, e muito bem, entregar terras aos monges brancos – que entretanto andavam pela Europa a espalhar cultura e espiritualidade – para que as desbravassem, cultivassem, colonizassem e nelas construíssem os seus mosteiros.
«Fixada em Portugal desde o século XII, a Ordem de Cister acompanhou a formação do território e a afirmação política da primeira dinastia. Estendendo progressivamente os seus mosteiros nas regiões centro e norte graças à especial protecção régia, os monges brancos contribuíram de forma decisiva para a colonização e desenvolvimento das vastas áreas que ocuparam, aplicando técnicas agrícolas inovadoras e intensivas e, sobretudo, uma grande disciplina de organização do espaço. Os conjuntos monásticos, que seguiam métodos de implantação e distribuição espacial muito semelhantes, revelam também partidos arquitectónicos e construtivos afins, o que lhes confere um inegável ar de família. Muitos deles conservam, ainda hoje, importantes espólios artísticos que incluem azulejaria e pintura, talha dourada, ourivesaria, escultura e outros testemunhos da evolução da arte portuguesa ao longo dos últimos séculos. É, no entanto, a privilegiada relação com a paisagem que os torna, aos nossos olhos, singulares. Se os mosteiros de Cister conseguiram transformar as envolventes, mercê do desbravamento de terras e da planificação de engenhosos sistemas hidráulicos, com encanamento e encaminhamento de caudais, construção de enormes condutas subterrâneas ou regularização das margens de rios e ribeiras, eles fazem actualmente parte integrante de unidades paisagísticas mais vastas, às quais dão um valor acrescido que importa preservar e valorizar». (Fonte do Instituto Português do Património Arquitectónico – IPPAR).
A esta vertente prática, juntou-se evidentemente o aspecto espiritual, que entre os Cistercienses era (e ainda é) vivido de um modo intenso.
Outras Ordens (religiosas e militares) foram-se implantando, e todas elas, umas mais do que outras, tornaram-se importantes para o desenvolvimento de Portugal. É evidente que nem tudo foi bom. A Igreja Católica ultrapassou os limites da sua missão evangelizadora. O tempo da implantação do Tribunal da Inquisição ou Tribunal do Santo Ofício, instituição criada em 1231 pelo Papa Gregório IX (e não pelos Portugueses) e todas as nefastas consequências que daí advieram, não é tempo de boa memória. Contudo, essa não foi uma exclusividade portuguesa. Na Espanha, na Itália, na França (veja-se a conhecida história de Joana d’Arc), a Inquisição deixou marcas profundíssimas de grande violência e crueldade. Em 1834, a implementação do Liberalismo em Portugal determinou a expulsão das ordens religiosas e consequente confiscação dos seus bens e propriedades. Entretanto, para trás, ficaram uma infinidade de mosteiros e igrejas, que hoje fazem parte do rico património português (evidentemente os que não estão em ruínas), e um razoável legado religioso e espiritual.
Sim, temos Nossa Senhora de Fátima. Mas os Franceses têm Nossa Senhora de Lourdes e Santa Joana d’Arc; Itália, Santa Catarina de Sena; o Brasil, Nossa Senhora Aparecida; Espanha, Nossa Senhora do Pilar; a América Latina, Nossa Senhora de Guadalupe, enfim, cada país com os seus Santos e devoções.
Os excessos da Igreja Católica deixaram marcas negras em Portugal, como no resto do mundo, mas se não fosse a Igreja Católica, a Cultura europeia, hoje, não seria o que é, uma vez que foram os padres, os homens mais cultos da Idade Média, que preservaram a cultura greco-romana, através do ensino e da cópia de manuscritos (o monge copista chegou a ser um cargo importante dentro dos mosteiros) num tempo anterior a Gutenberg, que teria nascido por volta da década de 1390, e morreu a 3 de Fevereiro de 1468.
Nem tudo foi bom. Não! Mas o que foi bom permaneceu até aos dias de hoje. E o que foi mau, não foi esquecido, e esperamos que não volte a acontecer. Estar alerta, é outra das funções da História.
© Isabel A. Ferreira
(Continua)
(I Parte)
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(III Parte)
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(IV Parte)
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