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Excertos do monólogo teatral dedicado a Xanana Gusmão
3.º Prémio CITAC/2000
CENÁRIO
Pano de fundo negro. Uma mesa e uma cadeira a um canto do palco. Em cima da mesa alguns papéis espalhados.
VOZ-OFF
Respeitável audiência! Iremos assistir a uma peça de teatro, em um único acto, protagonizada apenas por uma actriz em palco, a qual interpretará uma sobrevivente num mundo onde uma minoria poderosa desgoverna e desmanda, enquanto a maioria assiste.
Trata-se da encenação do conflito existencial de uma mulher inquieta e inquietante, que não se verga facilmente, e nunca diante desses poderosos. Implacável com os cobardes, abomina a injustiça, a violência, a mentira e a perversidade, como se verá. A palavra escrita é o seu mundo.
É isto e algo mais que a actriz... (refere-se aqui o nome da actriz que interpretará Jerónima) vos proporcionará, num espectáculo efémero, como efémera é a esperança dos sobreviventes.
Trajando uma saia comprida e uma túnica pretas, e nos pés umas sandálias também pretas, cabelo preso numa longa trança, que lhe cai pelas costas, a personagem entra em cena, segurando uma carta na mão, e encaminha-se, sem pressa, até à boca do palco. Lança um olhar calmo à assistência, e sorrindo subtilmente, a ela se dirige.
JERÓNIMA
(com amabilidade e determinação)
Querido público, obrigada por terem vindo.
Permitam que me apresente. Para já basta dizer que o meu nome é Jerónima. O resto virá a seu tempo.
Creio saber o que vos trouxe até aqui.
(mostrando a carta)
Foi esta carta, eu sei. Escrevi-a exclusivamente para vós. Aliás, devo dizer-vos que ultimamente escrever cartas tem sido a minha sina.
(encaminha-se até à mesa e remexe os papéis que lá se encontram)
Já escrevi para cima de uma centena delas, a várias pessoas: umas conhecidas, outras desconhecidas, umas importantes, outras desimportantes mas todas com uma curiosa particularidade em comum: nenhuma dessas pessoas jamais respondeu às minhas cartas.
Houve tempos, em que eu abominava escrever cartas. Costumava dizer: «Prefiro preencher, de alto a baixo, todas as páginas de uma centena de jornais, do que escrever uma só carta!»
Até ao dia em que me obriguei a dirigir umas tantas linhas a um ilustríssimo senhor doutor juiz (dos seus trinta anos, é importante que se diga) nas quais critiquei severamente o sistema judicial português.
(…)
E este foi o início da minha carreira de epistológrafa, como sabem, termo erudito que serve para designar quem escreve epístolas, o mesmo que cartas.
Apesar de me não ter dado nada bem com esta primeira experiência, não desisti dos meus protestos, e decidi deixar à posteridade, o testemunho de alguém que nunca foi conivente com os abusos e os excessos dos poderes: político, judicial e policial.
De então para cá, tenho escrito muitas, muitas cartas, a políticos, governantes, a gente importante, a editores, a directores de jornais, a potenciais empregadores..., porque isto de escrever cartas não dá de comer a ninguém. Mas nenhuma, nenhuma dessas ilustres personalidades me honrou jamais com umas poucas linhas que fossem!
(…)
(Visivelmente sofrida, desiludida, quase chorosa, Jerónima atira o papel para o chão, e apanha um outro de cima da mesa)
Ah! Querido público, mas o pior ainda estava por vir. De repente, sem trabalho, socorri-me dos amigos influentes, ou melhor, daqueles que se diziam meus amigos e que detinham cargos de chefia em lugares-chave, podendo (se quisessem) ajudar-me a preencher esta sufocante lacuna na vida de qualquer cidadão em idade activa – a falta de trabalho – até porque estava acostumada a ouvir dizer que a minha produção era útil e tinha qualidade, por isso, seria bem-vinda em qualquer lado.
Comecei então a escrever cartas e mais cartas, aos tais amigos, a desconhecidos também, amigos dos meus amigos, propondo-lhes os meus serviços... quase humildemente, como convém...
Mas nada. Nem uma linha. Nem uma resposta. Nem sim. Nem não. Nem uma palavra de conforto, ou de esperança, ou de amizade ou até de solidariedade, sequer. Nada! Absolutamente nada! Cheguei então a mais esta triste conclusão: Quando se está na mó de baixo não se tem amigos!
(Com raiva, Jerónima atira para o chão, o papel que tinha na mão, pega na carta que trazia quando entrou em cena, e dirige-se para a boca do palco)
Escrevi cartas a tanta gente! Poderia estar aqui largas horas a falar delas: das cartas e também das gentes. Mas não se preocupem, não vos tomarei muito mais tempo! Apenas o suficiente para vos dizer que, depois de todas estas desilusões, decidi escrever A Carta, esta, que dirijo a todos vós.
Não antes de ter pensado em escrever a certas personalidades, por ocasião da incrível, da inconcebível, da inacreditável questão de Timor, que recentemente nos arrasou os nervos e feriu a alma! Incrível, inconcebível e inacreditável questão, porque demasiado primitiva para que pudesse ter acontecido nos dias de hoje! Eu não acreditaria, se não tivesse visto, com os meus próprios olhos, as imagens na televisão!
Pensei em escrever ao senhor Clinton, para lhe dizer da sua hipocrisia; aos senhores da ONU para lhes falar da sua inutilidade; ao Ali (enado) Alatas, para lhe atirar à cara todo o desprezo que sinto por governantes cínicos como ele; ao perverso general Wiranto, para gritar-lhe a sua cobardia, e lembrar-lhe de como é fácil, muito fácil ser valente de arma na mão, diante de indefesas crianças, mulheres, velhos e homens desarmados!
Intentei escrever também ao pequeno Habibie, para lhe sugerir que deixasse urgentemente o Palácio de Merdeka, não antes de lhe mudar o nome (para não soar tão mal aos nossos ouvidos), e com a sua caterva de assassinos, de incendiários, de ladrões, de violadores e outra que tal gente, que dá pelo pomposo nome de exército, fossem tomar um grande banho de vida, de humanidade e de civilização nas águas límpidas e calmas do mar de Timor Loro-Sae, para que, no futuro (se ainda houver futuro para tais criaturas), possam governar com sabedoria.
Mas desisti de tais intentos. Por agora.
Pensei igualmente em escrever uma carta a Xanana Gusmão, para lhe dizer da minha ilimitada admiração pela sua Humanidade. Adiei, porém, esta minha intenção.
Deixarei assentar a poeira e escreverei essa carta, sim, quando Xanana puder ler as minhas palavras, tranquilamente, sentado à sombra de uma frondosa árvore, contemplando o pôr-do-sol, na terra que o viu nascer, que o viu lutar, que o viu sofrer, que o viu tornar-se o símbolo do que deve ser, do que há-de ser o Homem do século XXI (se o poder que virá a deter não banalizar a sua personalidade) – o que acredito piamente que não!
Posso até dizer-vos, em tom de profecia, que Xanana terá a delicadeza, a educação, a hombridade de responder à carta que tenciono escrever-lhe, porque Xanana é também poeta, e porque o é, tem o raro privilégio de ver o invisível, de compreender o incompreensível, e saberá, com certeza, dizer-me o indizível.
(…)
EPÍLOGO
Este monólogo teatral, dedicado a Xanana Gusmão, foi escrito para o Concurso Pequenas Estórias de Teatro, promovido pelo CITAC, em 1999. Em 17 de Janeiro do ano 2000, decidi escrever a Xanana e enviar-lhe A Carta, através de um padre timorense que, por essa ocasião, se deslocava a Timor.
Nessa data, desconhecia ainda o resultado do concurso, que só foi divulgado em Fevereiro, desse mesmo ano.
Uns meses mais tarde, recebi uma simpática carta de Xanana Gusmão, a agradecer A Carta que lhe dediquei, e augurando um bom resultado em relação ao concurso.
De facto, a boa sorte veio até mim, inesperadamente: obtive um honroso terceiro prémio, o que, para mim, equivaleu a um primeiro.
Todavia, o mais importante foi a concretização da profecia de Jerónima, quando refere: «Posso até dizer-vos, em tom de profecia, que Xanana terá a delicadeza, a educação, a hombridade de responder à carta que tenciono escrever-lhe...»
Xanana teve a delicadeza, a educação, a hombridade de responder não propriamente à carta de Jerónima, mas à minha carta, demonstrando que o axioma que, como autora, defendi na peça, tinha fundamento.
São estes pequenos gestos que fazem as grandes diferenças entre os pequenos e os grandes homens. Por isso, aqui deixo os meus agradecimentos a Xanana Gusmão, por ter tido a lisura de não defraudar a profecia de Jerónima.
Maio de 2002
in A CARTA
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