Apesar de todos os dias serem dias de todos os animais.
Mas hoje, celebra-se São Francisco de Assis, que morreu em 03 de Outubro de 1226. É o Santo patrono e irmão de todos os animais não-humanos e plantas (meio ambiente).
E quando se fala em patrono dos animais, não é apenas patrono de cães e gatos, mas de todos os outros animais não-humanos: touros, cavalos, porcos, vacas, galinhas, tigres, leões, aves, enfim, os outros animais que sofrem barbaridades às mãos de humanóides, porque os seres humanos não maltratam os animais, nem permitem que os maltratem.
Para celebrar este dia, que também poderá ser o meu, porque sou um animal humano (não sou, como hoje já ouvi a Maia a dizer: metade animal e metade humana. Qual será a parte animal e a parte humana da Maia?), deixo-vos com um magnífico texto de Leonardo Boff, um teólogo, escritor, filósofo e professor universitário brasileiro que muito prezo (daí o texto estar escrito segundo a ortografia brasileira) .
Por Leonardo Boff
«Os animais: portadores de direitos e devem ser respeitados
A aceitação ou não da dignidade dos animais depende do paradigma (visão do mundo e valores) que cada um assume. Há dois paradigmas que vêm da mais alta antiguidade e que perduram até hoje.
O primeiro entende o ser humano como parte da natureza e ao pé dela, um convidado a mais a participar da imensa comunidade de vida que existe já há 3,8 bilhões de anos. Quando a Terra estava praticamente pronta com toda sua biodiversidade, irrompemos nós no cenário da evolução como um membro a mais da natureza. Seguramente dotados com uma singularidade, a de ter a capacidade reflexa de sentir, pensar, amar e cuidar. Isso não nos dá o direito de julgarmo-nos donos dessa realidade que nos antecedeu e que criou as condições para que surgíssemos.
A culminância da evolução se deu com o surgimento da vida e não com o ser humano. A vida humana é um sub-capítulo do capítulo maior da vida.
O segundo paradigma parte de que o ser humano é o ápice da evolução e todas as coisas estão à sua disposição para dominá-las e poder usá-las como bem lhe aprouver. Ele esquece que para surgir precisou de todos os fatores naturais, anteriores a ele. Ele juntou-se ao que já existia e não foi colocado acima.
As duas posições têm representantes em todos os séculos, com comportamentos muito diferentes entre si. A primeira posição encontra seus melhores representantes no Oriente, com o budismo e nas religiões da Índia. Entre nós além de Bentham, Schopenhauer e Schweitzer, seu maior fautor foi Francisco de Assis, dito pelo Papa Francisco em sua encíclica “Sobre o cuidado da Casa Comum” como alguém “que vivia uma maravilhosa harmonia com Deus, com os outros, com a natureza e consigo mesmo…exemplo de uma ecologia integral”(n.10). Mas não foi este comportamento terno e fraterno de fusão com natureza que prevaleceu.
O segundo paradigma, o ser humano “mestre e dono da natureza” no dizer de Descartes, ganhou a hegemonia. Vê a natureza de fora, não se sentindo parte dela, mas seu senhor. Está na raiz no antropocentrismo moderno que tantos males produziu com referência à natureza e aos demais seres. Pois o ser humano dominou a natureza, submeteu povos e explorou todos os recursos possíveis da Terra, a ponto de hoje ela alcançar uma situação crítica de falta de sustentabilidade.
Seus representantes são os pais fundadores do paradigma moderno como Newton, Francis Bacon e outros, bem como o industrialismo contemporâneo que trata a natureza como mero balcão de recursos, um baú inesgotável de bens e serviços, em vista do enriquecimento.
O primeira paradigma – o ser humano parte da natureza – vive uma relação fraterna e amigável com todos os seres. Deve-se alargar o princípio kantiano: não só o ser humano é um fim em si mesmo, mas igualmente todos os seres, especialmente os viventes e por isso devem ser respeitados.
Há um dado científico que favorece esta posição. Ao descodificar-se o código genético por Drick e Dawson nos anos 50 do século passado, verificou-se que todos os seres vivos, da ameba mais originária, passando pelas grandes florestas e pelos dinossauros e chegando até nós humanos, possuímos o mesmo código genético de base: os 20 aminoácidos e as quatro bases fosfatadas. Isso levou a Carta da Terra, um dos principais documentos da UNESCO sobre a ecologia moderna, a afirmar que “temos um espírito de parentesco com toda a vida” (Preâmbulo). O Papa Francisco é mais enfático: “caminhamos juntos como irmãos e irmãs e um laço nos une com terna afeição, ao irmão sol, à irmã lua, ao irmão rio e à Mãe Terra” (n.92).
Nesta perspectiva, todos os seres, na medida que são nossos primos e irmãos/as e possuem seu nível de sensibilidade, sofrem e são portadores de certa inteligência, que lhes permite fazer conexões cerebrais e assim se orientarem no mundo. Por isso mesmo são portadores de dignidade e de direitos. Se a Mãe Terra goza de direitos, como afirmou a ONU, eles, como partes vivas da Terra, participam destes direitos.
O segundo paradigma – o ser humano senhor da natureza – tem uma relação de uso com os demais seres e os animais. Se conhecemos os procedimentos da matança de bovinos e de aves ficamos estarrecidos pelos sofrimentos a que são submetidos. Adverte-nos a Carta da Terra: “há que se proteger animais selvagens de métodos de caça, armadilhas e pesca que causem sofrimento extremo, prolongado e evitável” (n.15b).
Aí nos recordamos das palavras sábias do cacique Seatle (1854): “Que é o homem sem os animais? Se todos os animais se acabassem, o homem morreria de solidão de espírito. Porque tudo o que acontecer aos animais, logo acontecerá também ao homem. Tudo está relacionado entre si”.
Se não nos convertermos ao primeiro paradigma, continuaremos com a barbárie contra nossos irmãos e irmãs da comunidade de vida: os animais. Na medida em que cresce a consciência ecológica mais e mais sentimos que somos parentes e assim nos devemos tratar, como São Francisco com o irmão lobo de Gubbio e com os mais simples seres da natureza. Estamos seguros de que chegará o dia em que este nível de consciência será um bem comum de todos os humanos e então, sim, nos comportaremos como uma grande família de seres vivos, diferentes, mas unidos por laços de familiaridade e irmandade. »
(Leonardo Boff é articulista do JB on-line e escreveu: «Francisco de Assis: saudade do paraíso», Vozes 1999)
Fonte:
https://www.dm.com.br/opiniao/2017/11/os-animais-portadores-de-direitos-e-devem-ser-respeitados/
Leonardo Boff
«Tudo tem limites, também a tolerância, pois nem tudo vale neste mundo. Os profetas de ontem e de hoje sacrificaram suas vidas porque ergueram sua voz e tiveram a coragem de dizer: "não te é permitido fazer o que fazes". Há situações em que a tolerância significa cumplicidade com o crime, omissão culposa, insensibilidade ética ou comodismo.
Não devemos ter tolerância com aqueles que têm poder de erradicar a vida humana do Planeta e de destruir grande parte da biosfera. Há que submetê-los a controles severos.
Não devemos ser tolerantes com aqueles que assassinam inocentes, abusam sexualmente de crianças, traficam órgãos humanos. Cabe aplicar-lhes duramente as leis.
Não devemos ser tolerantes com aqueles que escravizam menores para produzir mais barato e lucrar no mercado mundial. Aplicar contra eles a legislação mundial.
Não devemos ser tolerantes com terroristas que em nome da sua religião ou projecto político cometem crimes e matanças. Prendê-los e levá-los às barras dos tribunais.
Não devemos ser tolerantes com aqueles que falsificam remédios que levam pessoas à morte ou instauram políticas de corrupção que delapidam os bens públicos. Contra estes devemos ser especialmente duros pois ferem o bem comum.
Não devemos ser tolerantes com as máfias das armas, das drogas e da prostituição que incluem sequestros, torturas e eliminação física de pessoas. Há punições claras.
Não devemos ser tolerantes com práticas que, em nome da cultura, cortam as mãos dos ladrões e submetem mulheres a mutilações genitais. Contra isso valem os direitos humanos.
Nestes níveis não há que ser tolerantes, mas decididamente firmes, rigorosos e severos. Isso é virtude da justiça e não vício da intolerância. Se não formos assim, não teremos princípios e seremos cúmplices do mal.
A tolerância sem limites liquida com a tolerância assim como a liberdade sem limites conduz à tirania do mais forte. Tanto a liberdade, quanto a tolerância precisam, portanto, da protecção da lei. Senão assistiremos à ditadura de uma única visão do mundo que nega todas as outras. O resultado é raiva e vontade de vingança, fermento do terrorismo.
Onde estão então os limites da tolerância? No sofrimento, nos direitos humanos e nos direitos da natureza. Lá onde pessoas são desumanizadas, aí termina a tolerância. Ninguém tem o direito de impor sofrimento injusto ao outro.
Os direitos ganharam a sua expressão na Carta dos Direitos Humanos da ONU, assinada por todos os países. Todas as tradições devem confrontar-se com aqueles preceitos. Se práticas implicarem violação daqueles enunciados não podem justificar-se. A Carta da Terra zela pelos direitos da natureza. Quem os violar perde legitimidade.
Por fim, é possível ser tolerantes com os intolerantes? A história comprovou que combater a intolerância com outra intolerância leva à espiral da intolerância. A atitude pragmática busca estabelecer limites. Se a intolerância implicar crime e prejuízo manifesto a outros, vale o rigor da lei e a intolerância deve ser enquadrada. Fora deste constrangimento legal, vale a liberdade. Deve confrontar-se o intolerante com a realidade que todos partilham como espaço vital. Deve-se levá-lo ao diálogo incansável e fazê-lo perceber as contradições da sua posição. O melhor caminho é a democracia sem fim que se propõe incluir a todos e a respeitar um pacto social comum.»
Leonardo Boff
Leonardo Boff, teólogo da libertação e ex-padre brasileiro foi condenado pela Igreja Católica pelas suas posições. Em 1985, foi condenado a um ano de "silêncio obsequioso".