Porque o ruído é uma das maiores pragas do nosso tempo, e ninguém de direito, faz nada para o desincentivar, muito pelo contrário, aqui vos deixo um excelente trabalho de investigação da autoria de Idalete Giga, professora na Universidade de Évora, poetisa, escritora, dedicada ao Canto Gregoriano.
O ruído pode matar. Lentamente. Daí ser obrigatória a leitura deste texto.
1.- Silêncio versus ruido
2- Hino ao silêncio
1.- Silêncio versus ruido
Se a palavra que vais dizer não é mais bela que o silêncio, não a digas.
(Provérbio Sufi)
A palavra “silêncio” deriva do verbo latino “sílere” que significa “calar-se”.
Segundo Malcolm de Chazal “o silêncio não tem contornos, assim como o espaço não tem limites, porque, tal como o espaço, o silêncio é consubstancial a tudo” (cit. in Smedt, p.19).
O silêncio implica sempre o seu contrário - o ruído. Silêncio e ruído estão constantemente presentes no nosso quotidiano. Há uma variedade infinita de silêncios e ruídos tendo cada um o seu significado próprio, uns agradáveis, outros devastadores.
Se a Psicolínguística da Linguagem está muito avançada cientificamente, o mesmo não acontece com o Silêncio cujos estudos estão a dar os primeiros passos. Entre os investigadores que tentaram construir uma tipologia do silêncio estão o japonês Ikemi e o americano Bruneau que relacionam o silêncio com os processos cerebrais e Marie Troika, da Universidade de Illinois que esquematizou as diversas dimensões do silêncio em três grandes grupos: 1- os silêncios institucionais; 2- os silêncios dos grupos; 3- os silêncios individuais interactivos e não interactivos.
É importante referir, a propósito, os extraordinários avanços dos estudos sobre o cérebro humano. Hoje, sabemos que o hemisfério esquerdo controla a nossa acção em sociedade. É o centro das funções verbais e analíticas. Tem a ver com a palavra. O hemisfério direito controla o nosso património natural. É o centro das reacções do inconsciente e das funções não verbais. Tem a ver com o silêncio. Os estudos do prof. Ikemi e da sua equipa provam que há uma necessidade absoluta do funcionamento harmonioso entre os dois hemisférios e as restantes zonas cerebrais. Segundo o mesmo investigador, o que predomina no homem moderno é o hemisfério esquerdo. As manifestações instintivas, intuitivas e emocionais são afastadas e reprimidas pelos aspectos intelectuais e hiperactivos do nosso eu, resultando daqui um grande desequilíbrio e stress. Ainda segundo Ikemi, o ruído provocado pelo hemisfério esquerdo já não nos deixa ouvir a sabedoria profunda emitida pelo hemisfério direito. O desequilíbrio entre os dois hemisférios causa um conflito entre as mensagens do silêncio natural e as outras impostas, da palavra social. É a origem da doença mental e psicossomática. É um problema de comunicação quer no interior quer no exterior de nós próprios.
1.2.- Silêncio e mutismo
Escuta o silêncio dentro de ti. (Máxima Budista)
Silêncio e mutismo, que aparentemente são sinónimos, têm significados muito diferentes. Chevalier e Gheerbrant abordam este aspecto de forma muito lúcida no seu Dictionnaire des Symboles. Faço aqui uma pequena síntese: “Enquanto o silêncio se abre à revelação, o mutismo fecha-se à mesma. O silêncio abre uma passagem, o mutismo impede-a. O silêncio envolve os grandes acontecimentos, o mutismo apaga-os. O silêncio engrandece, enobrece as coisas, o mutismo degrada-as, destrói-as. O silêncio significa evolução, o mutismo significa regressão”. (n. trad.).
Podemos concluir desta interessante comparação entre silêncio e mutismo que este não se identifica de forma alguma com o silêncio quer interior quer exterior, mas sim com o ruído mental. O silêncio interior significa paz, equilíbrio reencontrado. Este silêncio permite-nos estabelecer um contacto verdadeiro com os outros e com a energia que faz mover o universo. A tranquilidade silenciosa desenvolvida no nosso mundo interior permite que a nossa consciência se desenvolva, se amplie. O valor da nossa interioridade desenvolvida permite que a sabedoria cresça e que cortemos as amarras da ignorância. O silêncio só fala a quem o quer escutar. Por isso, só conseguimos descer ao mais profundo de nós através dele. Se escutarmos o silêncio dentro de nós ele conduz-nos à descoberta da nossa essência. É no silêncio do nosso pensamento que nasce toda a criatividade. É no silêncio que o espírito se eleva e evolui. É através do nosso silêncio interior que Deus se manifesta.
O homem que faz ruído, só recebe ruído de volta (Provérbio Tuaregue)
O mundo contemporâneo é cada vez mais ruidoso e confuso. O silêncio é constantemente violado pelo ruído. Este transformou-se numa droga industrializada. Pessoas de todas as idades, principalmente adolescentes e jovens, ficam aterrorizados com o silêncio. Não o suportam um só momento. Necessitam constantemente de um ruído, de um fundo musical qualquer, quase sempre intenso, seja através da Rádio, T. V. e outros meios. Os níveis de ruído, sobretudo nas grandes cidades, são devastadores para a saúde física e mental, atingindo o sistema nervoso e o cérebro. Desde há muito que se perderam os hábitos de escuta, a capacidade e disponibilidade para ouvir, para nos ouvirmos uns aos outros. O ouvido foi destronado pela vista e passou para secundaríssimo plano. Hoje, dá-se cada vez maior importância à visão. “A imagem vale mais que mil palavras” diz o provérbio. Vivemos num mundo completamente dominado pela imagem, pelas aparências, pelo virtual, pelo ilusório. Um dos sinais dos nossos tempos é a surdez, cada vez mais precoce, nos jovens. Estamos rodeados por um universo de poluição sonora verdadeiramente ameaçadora que nos pode tornar esquizofrénicos, paranóicos e assassinos.
No ocidente acredita-se que para comunicar é preciso falar. Ora não há nada mais falso. O medo do silêncio é uma doença do espírito. O medo de viver o silêncio criou uma cultura medíocre, uma civilização superficial. Pelo contrário, como afirma Durkheim, “o oriente ainda entende o silêncio como uma força poderosa, agitadora das profundezas, que sabe distinguir, desenvolver e proteger. É por isto que existe no oriente uma cultura do silêncio. Ela é, a maior parte das vezes, o centro de toda a estrutura da vida e do mundo” (cit. in Smedt, p. 49).
Os problemas psíquicos e a loucura que atormentam uma grande parte da humanidade são ruídos interiores, ao contrário do equilíbrio, serenidade, paz que são silêncios interiores.
Se vivemos numa civilização barulhenta, onde o ruído é valorizado, como podem as gerações mais jovens conhecer o valor do silêncio? A descoberta do valor do silêncio deve começar desde a mais tenra infância com jogos adequados. O silêncio exterior é um prelúdio, uma excelente preparação para o silêncio interior. Hoje, lamentavelmente, as crianças já não sabem escutar. Mas tudo tem solução. Os défices de atenção, de reflexão e de desenvolvimento global e harmonioso da personalidade podem ser resolvidos através da Arte, entendida aqui como busca e expressão da Beleza que por sua vez é a exteriorização de equilíbrios, de pontos de harmonia. Nenhuma arte despreza o silêncio. Todo o criador sabe que antes de começar uma obra, a concentração, a abertura total ao silêncio são indispensáveis. A arte que melhor leva à descoberta do silêncio é a Música. O silêncio é o seu segredo pois é nele que ela se manifesta, se desenvolve e respira. Todo o som sai do silêncio e a ele regressa. O som melodioso através do silêncio interior que provoca, pode ser um meio de conhecimento e um acesso a estados superiores da consciência. A Música inicia-nos na espiritualidade.
A aprendizagem da Música desenvolve, desde muito cedo, o ouvido interior e os hábitos de escuta que são fundamentais para a relação afectiva e sincera com os outros. Segundo Tomatis, se o ouvido deixar de funcionar bem, provoca directamente a modificação do comportamento. Ouvido, voz e consciência são indissociáveis. O silêncio é necessário à expansão da consciência, pois permite que nos aproximemos do mistério que existe em nós.
Num mundo cada vez mais ruidoso, o valor do silêncio tem de ser redescoberto. Temos de aprender a utilizar a riqueza dos nossos espaços de silêncio, no seio da própria linguagem e da vida quotidiana, evitando assim muitas doenças físicas e mentais. É, pois, urgente uma mudança de rumo radical que transforme a nossa civilização, que privilegie a saúde, que ilumine o nosso espírito, um mundo onde predomine o respeito espontâneo pelo outro.
2- Hino ao silêncio
És a Luz transparente
onde me encontro
a asa protectora
que me envolve
No teu etéreo ventre
a Música nasce
e renasce a cada instante
como Fénix transformada
em pura energia vibratória
Deus habita em ti
no Universo Infinito
intergaláctico
Por isso te amo
e te venero
ajoelhada no Templo
desta poeira cósmica
onde tudo evolui e se transforma
num Eterno continuum»
Referências bibliográficas
Chevalier, J. E Gheerbrant.- Dictionnaire Des Symboles, Éditions Robert Laffont/ Jupiter, Paris, 1982
Giga, I.- Efeitos da Pedagogia Musical Ward no desenvolvimento musical e desempenho Vocal de crianças do 1º ciclo do E. B., Revista de Educação Musical nº 130, Jan/Junho/ 2008, 29-39, - Associação Portuguesa de Educação Musical- APEM
Labouré,D.- Alquimia Cristã, Hugin Editores, Lisboa, 2005
Mainguy, I.- La Symbolique maçonnique du troisième millénaire, Éditions Dervy, Paris, 2006
Smedt, M. - Elogio do Silêncio, Sinais de Fogo Publicações, Cascais, 2001
Tomatis,A. - O ouvido e a Linguagem, Livraria Civilização, Porto, 1977
Idalete Giga