[Um delicioso naco de boa prosa, onde o Portugal que NÃO temos é exposto com um humor requintado - Isabel A. Ferreira]
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A caldeirada
Como pertenço ao grupo dos “técnicos de lazer”, minha mulher, democraticamente, só decidiu que eu devia colaborar na elaboração dos serviços culinários de casa. Assim, tocou-me preparar uma caldeirada de peixe e uma sopa. Meti pés ao caminho e já na rua liguei à minha comadre Ortelinda para me dar umas dicas sobre a caldeirada, p’ra fazer figura perante minha mulher, como jeitoso cozinheiro.
Deslocado à peixaria, disse à “técnica da carne do Mar” – assim se intitulou – que pretendia peixe para caldeirada e que chegasse para dois. “Pois sim senhor” – respondeu a técnica.
- “Pode levar um pouco de Perca do Nilo, que é do Uganda e também uma rodela de pescada do Chile; posso-lhe cortar uma lasca desta Dourada grande, que é da Grécia e, também fica divinal a caldeirada se lhe juntar uns cinco ou seis camarões e uma pernita de polvo, que são de Marrocos. Também tem aqui truta salmonada, embora não ligue bem, mas é portuguesa, ali para os lados de Paredes de Coura”.
A “técnica da carne do Mar” deu-se conta que eu estava absorto, olhando para o gelo que envolvia o peixe e alertou para que me decidisse. E trouxe toda a peixeirada que seleccionou.
Nas compras para a sopa, não deixei de pensar que sou pouco apto. Vou comer caldeirada com peixe de vários países e não os conheço, pensei. O Uganda, o Chile, Marrocos aqui tão perto e a Grécia… hei, caramba, a Grécia!!! E Portugal, país que vou conhecendo, onde nasci, que amo, que tive várias ocasiões para ter de dar a vida por ele, não me dá peixe para a minha caldeirada a não ser a truta de Paredes de Coura!
Frente aos expositores que continham os legumes para a sopa, podia escolher couve-galega, alho e batata franceses, grelos, nabos portugueses e, melão para sobremesa, de Espanha.
Melão de Almeirim ou melão “casca de carvalho” do Minho, zero! Procurei tomates para a caldeirada, havia alguns de tamanho normal e muitos dos pequeninos, mas tomates portugueses não. Permaneci triste e pensativo dentro do híper.
Sem me aperceber da sua chegada, tocou-me o Abrantes no ombro e perguntou se estava perdido. Que não, que pensava em nabos.
Foi-se o Abrantes e ruminando a situação de semiperdido no híper dizia a mim mesmo: convidam na televisão ao consumo de bens nacionais. E onde estão os pescadores, os barcos e o mar para termos peixe como os outros? Tem de ser mesmo uma caldeirada internacional ou então feita com os velhos chicharros e tirones (verdinhos).
Mas então a sopa também ter de ser internacional? Pois tem, uma vez que os donos dos híperes não têm tempo de ouvir na televisão o “consuma o que é nacional”. Então, comprei apenas nabos para a sopa e calda de tomate para a caldeirada.
Nabos, pois cheguei à conclusão de que nabos em Portugal é o que mais há e têm mau aspecto. A calda de tomate, porque tomates a valer é o que menos temos e são pequeninos e, os tomates grandes que existiam, eram estrangeiros, muito berrantes, de pouco miolo e de aspecto duvidoso.
Quanto ao grelo havia-os em todos os corredores. Não sei donde eram, mas muitos, maltratados, e o grelo fresco que se podia adquirir já outros o tinham em seu poder. Assim, para além do problema de não termos mar para pescar, temos também um problema agrícola.
Voltei a ligar à comadre Ortelinda para me dar os retoques finais. Fiz a caldeirada e a sopa e disse à mesa que iríamos um dia aos países que pescaram o peixe que estávamos a comer. Era nossa obrigação fazê-lo.
Quanto à sopa, se a agricultura estivesse organizada, é verdade que teríamos nabos a menos no país, mas controlados, teríamos mais tomates e os grelos escusavam de se ver maltratados.
Ainda procurei bananas da Madeira, que são pequeninas e muito saborosas e ananás dos Açores. As bananas eram do Equador, grandes como pepinos e, o ananás da Costa Rica, mais caro do que o nosso açoriano. Nada disto trouxe, pois eram já internacionalizações a mais.
Logo, é importante que haja mar e agricultura organizados no país, para que os peixes grandes não comam a raia miúda e para que nabos, tomates e o grelo existam com equilíbrio.
Artur Soares
(O autor não segue o acordo ortográfico de 1990)
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[O que só demonstra ser um cidadão português inteligente, ao cumprir a Lei vigente - Isabel A. Ferreira]