BICADAS DO MEU APARO
Contributos para a história
Recordando Abril de 1974, em Novembro de 1975
Fabricantes de infernos
A fanfarra sem música está viva, ao rubro, em todo o país e em todos os sectores da vida social. A caminhada para sermos sovietizados, é como a marcha inexorável do tempo: não pára. Só os mortos estão quedos e calados, mas os hospitalizados gemem.
A droga entra silenciosamente em Portugal, os políticos mostram os dentes uns aos outros e as forças militares e militarizadas não sabem em que direcção hão-de olhar.
A prostituição é senhora e rainha nas bermas das estradas; os assédios de várias tonalidades conhecem-se; os incestos brotam em conversas nas mesas dos restaurantes e dos cafés e os pedófilos gravitam nas sombras e junto de escolas e colégios. Estamos a ficar um povo-surpresa, ou já somos um povo que está devidamente cadeado.
Neste quintal de 700 por 350 quilómetros, de poucos recursos e de bastantes velhacarias, estamos, neste mês de Novembro de 1975 – numa democracia incerta ou tenríssima – marginalizados ou estonteados pelos injectáveis, vindos de vários ventos, que não o vento verdadeiramente português.
Mas já fomos grandes homens, então. Por tanto que fizeram, por tanto que descobriram, lutaram e amaram a vida e pelo ser português. Hoje ruminamos o passado e, pelo que se passa nesta hora, saboreamos o passado.
Identificamo-nos ou apresentamo-nos como cristãos em qualquer ruela e para efeitos de estatística todos somos católicos e algo mais, desde que notados ou notáveis. Tantos, nos sentimos inteligentes, educados e, quantas vezes, humanistas ou bons rapazes. Mas a verdade, embora lenta, prevalecerá.
Após a ida dos antepassados, centenas de anos volvidos, hoje, a verdade dos nossos tempos e desta geração é bem diferente: todos revolucionários, ocamente reivindicativos, porque nada há. Somos, pelo que se vê, um povo curto.
Actualmente pouco valemos, já nada descobrimos, pouco amamos e muito menos lutamos pelo bem-comum: produzir e distribuir justamente.
Nesta assustadora e malcheirosa confusão social existente – onde a injustiça é justiça, onde o sério profissional é fascista, onde o sacerdote é grande pecador público, onde o que é lei está desactualizado e onde a anarquia é lei… - não sabemos o que somos ou queremos. Apenas as interrogações comandam a vida.
A nossa inteligência é posta em causa, é polémica: porque damos uma no cravo e outra na ferradura. Sentimos o ódio, a vingança, o medo, programamos guerras sociais, dormimos com a dor, a morte e fazemos a neurose: reina a esquizofrenia.
Observamos o lucro, os negócios baços. O poder a qualquer preço, vida fácil, o comodismo e o egoísmo. O drogado e a prostituta perdem a esperança de recuperarem vontade e de serem eles novamente. Somos fabricantes de infernos.
O bêbado e o invertido sentem-se na valeta porque olhados com desdém. Não se vê possibilidades do sorriso. O criminoso e o ateu não são respeitados, perdem a vontade de viver. A confiança e a solidariedade esfumam-se entre nós. Tantos, que tendo falhas, logo ficam marcados e jamais alguém os escuta. As famílias digladiam-se com a nova política, com a liberdade apontada, mas pesada como o peso de elefante. Somos um povo velho, confuso e doente.
A esperança perde terreno junto daqueles que tinham esperança. Anunciamos justiça social e revoltamos os que procuram emprego em tantas portas fechadas. Anunciamos a defesa da família e divulgamos na comunicação social a violência, a pornografia às toneladas e a mentira como modus vivendi. Somos raça de víboras.
Apreciamos e queremos a paz, a ordem e o respeito e fazemos guerra no meio ambiente, anarquia e desobediência constante às hierarquias. Somos um exército sem comando. Mostramos um sorriso ou amizade aos outros e, interiormente, somos a fera, o chefão ou o invejoso. A hipocrisia e o nevoeiro galvanizam-se na cidade.
Deus parece não existir no país e dentro de cada homem e, as crianças não compreendem isto. Cada um ama-se a si mesmo. Construímos o deus que nos convém e somos parasitas do que não temos. Portugueses grandes, fomos. Pequenos hoje, e doentes agora.
Merda! Merda para tudo que seja merda.
(Artur Soares – Novembro de 1975)
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Recordando Abril de 1974, em Março de 1976
Naquela Praça Vermelha
Nunca me preocupei em saber ou em pensar, se, a vida difícil do homem, o desilude ou traumatiza no seu futuro, ou se o beneficia sendo mais livre e, dessa forma, o faça mais útil à sociedade em que vive.
Na verdade, filho da vida dura e difícil que sempre tive, mas lidando sempre descontraído (e ainda bem) com homens de várias raças e cores – essa mesma vida e ambiente pouco fraterno que respirava – levaram-me de muito cedo a admirar entre outras virtudes no ser humano, a verdade e a odiar neles, a ingratidão.
Hoje, através deste cantinho dispensado, queria falar sobre a mentira, o facciosismo, o dogmatismo de um filme apresentado pela “nossa” televisão um destes dias, sobre as pessoas e a vida na Rússia, no programa “A Gente que nós somos”.
Começou o filme por mostrar, mas com rapidez, a Praça Vermelha. Esta rapidez (preocupação?), assim me pareceu, por esconder o luxo daquela Praça, e talvez se deva ao facto de tanta Arte não estar em harmonia com os trajes das pessoas que, naquele local caminhavam.
Quem tenta ler a sociedade, quem tenta entranhar-se no seu modus vivendi, vai-se apercebendo que o grande paradoxo das sociedades, democráticas ou não, é que o homem vai sendo livre para expressar os pensamentos, mas frequentemente vive num cárcere intelectual: possivelmente livre por fora, mas verdadeiramente prisioneiro por dentro.
No filme que falamos, via-se que se tratava de um dia especial – com certeza Domingo ou dia de lavagem aos cérebros – pois as pessoas aglomeravam-se em vários sítios e parecendo não se conhecerem umas às outras.
Filme publicitário, pois claro, porque procurava mostrar uma terra e uma gente descontraída, solta, feliz, mas na verdade, ao atencioso telespectador mostrava um filme opressivo, de individualismo social e, principalmente, a pobreza no vestir de muitas pessoas da Praça, embora lhe quisessem dar uma tonalidade diferente.
Nessa peça/documentário, mostravam-se os bem vestidos, lenços de seda nas mulheres, os relógios nos pulsos, sapatos bem engraxados, etc., foi preocupação do realizador (do filme) para mostrar pormenores afidalgados na sociedade russa, quando, até um palerma atento, se apercebia que tudo aquilo era facciosismo e mentira.
Na verdade, já o bom-senso ensina: Não deixes medrar aquele que pratica a magia. Não pratiques qualquer tipo de inverdade; não oiças nem recorras aos nigromantes ou a conselheiros sem testemunhos dados de carácter; dispensai esses manipuladores para não serdes contaminados por eles.
Tenho a certeza que, na minha Aldeia, os Zés, de bonés ensebados ou de boina que lhes vai tapando o suor de um dia de trabalho rude, devem ter pensado ao ver o filme sobre as pessoas na Praça Vermelha: “querem vender-nos gato por lebre”.
Distinguiam-se um ou dois casais no filme – e tinha de ser – que trajavam melhor que a restante gente. Daí, a sua distinção, mas pareciam contratados para entrar na publicidade e poderem responder a perguntas que lhes eram feitas sobre a vida social, respondendo sempre “nada melhor que isto”; “vida sossegada e bela”; muita felicidade” e por aí fora, segundo a tradução apaixonante dos nossos “locutores/jornalistas/intérpretes portugueses.”
Os casais entrevistados falavam muito pouco à-vontade. Pareciam ter falta de óleo nas cordas vocais. Estavam presos, sérios, desconfiados, demoravam a responder e nem estaleca mostravam para serem actores de ocasião. Uma desgraça, total falhanço naquele documentário.
Fiquei convencido ao ver apenas metade da peça, que aquela gente, aquelas almas, mais pareciam objectos manipulados e coisas de produção, que pessoas com direito à liberdade, à fraternidade, à alegria e o direito a “terem” e “serem” o que cada um pretende. Saladas russas, liberdades de Brejnev!
Não posso deixar para trás, o trabalho de interpretes daquele filme pelos “nossos locutores”, olhando ao tom alegre, encorajante e apaixonante que punham nas palavras, as quais, nos diziam ser as respostas dos distinguidos casais – felizes sempre – na sua tentadora pátria!
Não seria de admirar pois, devido ao bom-viver e à felicidade daquela gente na Rússia, que esses “nossos intérpretes locutores” se demitissem do seu trabalho na televisão - dando origem a duas vagas – e nos trocassem, indo para um dos países comunistas, saboreando tais normas de vida, felicidade que nos deram a entender e a existir, naquela Praça Vermelha!
Mas como diz Abraham Lincoln : “Pode-se enganar muitos por algum tempo; pode-se mesmo enganar alguns por muito tempo, mas não se pode enganar a todos por todo o tempo”.
E porque é urgente recordar e acordar o povo; E porque é proibido esquecer de como vai este país…, se escreveu o presente texto.
(Artur Soares – Março de 1976)