Um magnífico texto de Luís Vicente, escrito a propósito dos despropósitos dos aficionados de tauromaquia que, sendo totalmente incapazes de discernir, recorrem unicamente a duas vias de contestação: o insulto torpe e a argumentação ad hominem.
Vale a pena ler.
(Dedico este texto ao ICE, o Hitleriano, e ele saberá porquê…)
Origem da imagem:
https://utopiaordystopia.com/2012/09/15/1984/big-brother-poster-1984/
Texto de Luís Vicente
«Todos nós, pessoas, somos construções sociais.
Construímo-nos de experiências, de mitos, de alegrias e tristezas, de reflexões e de impulsos.
Às vezes a construção social que somos, desenvolvida num ambiente oco de cultura e rico de mitos e crenças, impede a reflexão e o discernimento.
Assim se geram os acríticos, os tacanhos, os teimosos, no fundo, os incapazes de compreender porque incapazes de reflectir e pensar.
Assim se geram as mentalidades submissas construídas na cultura da casa dos segredos e do big brother.
Assim se geram os Josés Manueis e os Inácios Cristianos.
Totalmente incapazes de discutir seriamente e com honestidade, recorrem unicamente a duas vias de contestação. O insulto torpe e a argumentação ad hominem.
O insulto torpe é mais barato e aprende-se no big brother e na casa dos segredos. É a única intelectualidade de que os grunhos são capazes.
A argumentação ad hominem é o subterfúgio de quem, não tendo argumentos, julga que está a argumentar.
É a conversa do estilo “o Neruda e o Goya eram apaixonados pela festa brava e por isso a festa brava é uma coisa boa”. Oh homem, esqueceu-se do Picasso e do Hemingway… ainda viriam dar mais força ao seu argumento.
E se o Neruda, o Goya, o Picasso e o Hemingway fossem hoje vivos, hoje que a ciência nos ensinou já tanto sobre as raízes biológicas do sofrimento? Continuariam apaixonados pela festa brava? Interrogo-me.
E se em vez do Neruda, do Goya, do Picasso e do Hemingway fosse o Chico, o Pedro, o Wilson e o Zé Ninguém? O argumento tinha menos peso? O Chico, o Pedro, o Wilson e o Zé Ninguém são menos pessoas que o Neruda, o Goya, o Picasso e o Hemingway?
Mais de 40 anos a ensinar em várias universidades por esse mundo fora, vários anos a lutar pela Paz em discussões com Palestinos e Israelitas, com Saharauis e Marroquinos, com XX e YY, ensinaram-me que há culturas que bloqueiam a compreensão, o raciocínio e a tolerância e, com essas, não vale mesmo a pena tentar argumentar. O resultado será sempre acabarmos na fogueira como o Giordano Bruno.
São os toscos que, por mais que lhes demonstrem, continuam a não acreditar que a Terra orbita em volta do Sol, que o Neil Armstrong pisou o solo lunar, que uma folha de erva não é menos importante que o movimento dos astros no universo.
São os quadrados aos quais o Prof. João dos Santos se referia quando dizia “se não sabe, porque é que pergunta?”.»
Luís Vicente
Copyright © Isabel A. Ferreira 2009
(Aspecto da sessão de abertura do Correntes d'Escritas, com o escritor Ascêncio de Freitas em primeiro plano)
É sempre com grande interesse que, na Póvoa de Varzim, acompanho o encontro de escritores de expressão ibérica, denominado Correntes d’Escritas, que este ano celebrou a sua 10.ª edição, com participantes de Portugal, Angola, Argentina, Brasil, Cabo Verde, Chile, Colômbia, Cuba, Espanha, México, Moçambique, Peru, São Tomé e Príncipe e Uruguai, com auditório completamente cheio, numa época em que a Literatura parece estar em agonia.
O meu interesse por este evento abrange várias facetas: primeiramente conhecer de perto os escritores e a sua obra; ouvi-los divagar sobre variadíssimos temas, e, à margem deles, anotar o que se diz, observar o que se faz, o que se aplaude e o que se desaprova, e evidentemente, estou também atenta aos interesses que fazem mover a grande engrenagem destas Correntes, particularmente, os interesses dos editores portugueses (quase sempre os mesmos).
O saldo, certamente, é positivo, em todos os aspectos.
Nestes encontros, porém, temos de tudo um pouco: temos aqueles escritores que verdadeiramente o são, isto é, escrevem para os seus leitores e quando estes os interpelam, são simpáticos, conversam, até fazem perguntas, e nós, como seus leitores, ficamos agradados. E temos os outros: aqueles que escrevem para eles. São antipáticos, e fogem dos leitores como o diabo da cruz. São os que, depois de “fazerem o nome” transformam-se em vedetas, sobem aos seus pedestais, e é dali que nos falam, ou então não falam, limitam-se a encolher os ombros, como quem diz estou demasiado alto para te ouvir. Estes, claramente, decepcionam os seus leitores, e não são, de modo algum, os verdadeiros escritores.
Como acompanho desde a segunda edição estas Correntes, habituei-me já a separar o trigo do joio, e do “trigo” selecciono os melhores grãos, e tiro proveito do que realmente me interessa.
De tudo isto ocorreu-me divagar sobre o que é ser escritor em Portugal.
No meu entender, a arte da escrita banalizou-se. Hoje, qualquer um que tenha um livro publicado é tido como um “escritor”. E eles nascem por aí como cogumelos. Basta aparecer na televisão, com uma vidinha mais ou menos turbulenta ou escandalosa, e logo dali nasce um “livro”, a vender milhares de exemplares, porque o que interessa aos editores é ganhar dinheiro. «A Cultura que se lixe», como os meus ouvidos já tiveram a infelicidade de ouvir. Proteger a Língua Portuguesa ou divulgar a Literatura propriamente dita, já não é da competência dos editores. Pelo menos de alguns.
Então, além da proliferação de livros que contam vidinhas e escândalos, os “escritores” da moda, os best-sellers, são os que andam por aí: badalados e mediáticos. A sua sobrevivência depende do mediatismo. Sem esse mediatismo não sobreviveriam. E até há quem fale em “escritores parasitas”, isto é, aqueles que pagam a alguém para escrever livros e depois colhem os louros.
É preciso estar no lugar certo, no momento certo, com a pessoa certa para que possa singrar-se no mundo da escrita.
Um dia, ouvi (ou li, não sei agora precisar) José Saramago dizer que se o escritor faz um trabalho de escrita, não deveria ter um salário de acordo com o trabalho que realiza? A escrita é a “mercadoria” do escritor, a única coisa que ele tem para vender, então por que não lhe pagam o justo valor?
Talvez porque não haja um “justo valor”. Põe-se o problema das horas de trabalho: como contabilizá-las? Existe uma certa frustração na realização do trabalho da escrita (pelo menos no que me diz respeito): gastam-se horas, dias, semanas, meses e até anos a escrever uma obra, que depois fica na gaveta porque ou não se é suficientemente mediático ou não se tem um bom padrinho, para ter o direito de publicá-la; ou se a publicamos não recebemos o justo pagamento. Os intermediários são tantos, que para o criador sobra a ínfima parte. Isto em Portugal, porque lá fora, o escritor recebe uma quantia razoável antes de ser publicado, e depois uma percentagem sobre os exemplares vendidos, o que é muito mais justo. Desse modo, impõe-se ao editor o dever de divulgar a obra, para este poder reaver o dinheiro investido e mais algum.
Em Portugal passa-se exactamente o contrário. Se queremos ser editados pagamos ao editor e este, não tendo investido nada, nada tem a perder, logo, nada faz para divulgar a obra, e esta, sem divulgação, acaba por ficar encalhada, por muito interessante que seja.
Há quem pense que a escrita (as Artes em geral) não é para ser paga. É algo que transcende o materialismo. No entanto, quando o apelo da escrita nos invade terá de ser amarfanhado pelas necessidades da sobrevivência?
A escrita requer determinadas condições: silêncio, isolamento, lugar envolto pela natureza e disponibilidade de horas (todas as horas só para a escrita). As dificuldades económicas do escritor (e dos artistas em geral) são a vergonha das sociedades, dos governos. Há muito desrespeito pelo seu trabalho. Parece que ele tem a “obrigação” de escrever e sobreviver apenas do ar que respira. A Cultura é ainda uma questão menor.
Hoje em dia, ninguém investe num desconhecido, ainda que a escrita desse desconhecido tenha qualidade. O que interessa é vender, e só vende quem se mostra, quem aparece, quem acontece, quem…
No entanto há tão bons escritores portugueses, que nunca são referidos nos jornais, nas revistas da especialidade, na televisão. E eu pergunto-me: porquê?
Os escritores contemporâneos meus preferidos são o Fernando Campos, o Luís Rosa, o Altino do Tojal, a Luísa Dacosta, entre outros. No entanto quem ouve falar acerca destes mestres da Língua Portuguesa?
Um dia, fui apresentada a um senhor editor de uma conceituada editora portuguesa, na altura da loucura do Big Brother. Ao ser apresentada disseram: Esta é uma escritora que faz edições de autor. E eu acrescentei: Faço edições de autor porque não vou ao Big Brother. O editor disse: Sabe, foi uma encomenda de uma grande superfície…
A encomenda era um livro do rapaz que mais mal falava (logo escrevia) no tal programa televisivo. Mas foi um best-seller. Tive a curiosidade de ler um excerto, quando fui a uma consulta médica e dei de caras com uma revista, onde se fazia parangona ao livro, logo na capa. Fiquei horrorizada com a “literatura” à qual a tal conceituada editora dava cobertura. Uma editora que já me havia recusado um texto. Não quero dizer com isso que eu seja uma “Saramago”, mas considero que a minha escrita é um pouquinho melhor do que a do tal rapaz.
E se quero ser editada por uma editora tenho de pagar o preço de ser escritora em Portugal. Assina-se um contrato, que nunca é cumprido pela editora. E não há lei alguma que obrigue as editoras a cumprir o que está estipulado no contrato. E as contas que deviam fazer-se semestralmente, passa-se um ano, passam-se dois, passam-se três e o escritor que viva do ar que respira, abundante e gratuito…
Será este um modo de servir a Cultura, em Portugal?
Isabel A. Ferreira