... este texto que lhe dediquei, na passagem do seu 80º aniversário, em 2007, e que aqui trago à luz, simplesmente porque quero repetir tudo o que lhe escrevi, para dizer da minha admiração e do meu afecto.
DEIXANDO FLUIR A VIDA…
Oitenta anos, Luísa Dacosta!
Uma vida.
Mas o que são oitenta anos, quando se tem a eternidade urdida numa obra, escrita com palavras feiticeiras, que nos prendem, como correntes de afecto?
Oitenta anos, vividos intensamente, sempre em busca de algo que lhe foge, perseguindo sonhos por sonhar, procurando uma luz que nunca viu, trilhando caminhos escarpados, com o Marão à frente, e depois descida a serra, olhar alongado num mar de águas generosas, que lhe mostrou como das palavras fazer barcos, que nos levam a muitos lugares.
Contudo, a busca e a fuga, o sonho e a descoberta de mundos secretos, nos lugares da infância, ou em povoados raros, como A-Ver-o-Mar, não farão parte do percurso daqueles que nascem com a grafia das palavras já desenhadas no seu destino?
Luísa viveu sempre suspensa por um fio frágil, sobre grandes abismos, que foi ultrapassando, em voos de águia, grifando os seus sonhos nas margens desses abismos, para que não se perdessem, e depois seguiu em frente, como se o futuro não existisse. O que diz da sua perseverança e devoção à liberdade, uma das suas mais amadas circunstâncias.
O que poderei dizer de uma escritora de quem já disse tudo o que tinha para dizer, num livro que lhe dediquei, por amor às suas palavras, lançado precisamente há um ano, no dia do seu 79º aniversário, no Correntes d’Escritas, na Póvoa de Varzim?
Em «Luísa Dacosta – «no sonho, a liberdade…» – uma viagem pela sua vida, pela sua obra e pelo seu pensamento – prestei o meu tributo àquela que é reconhecida, pelos estudiosos, como uma das maiores estilistas da Língua Portuguesa, do século XX, e, no entanto, tão mal-amada pelos seus editores, tão pouco divulgada, nos órgãos de comunicação social, tão afastada das montras das livrarias, o que constitui um verdadeiro insulto à Cultura culta.
Ainda assim, todas as palavras já foram ditas, sublinhando a sua qualidade literária e a sublimação que nos provoca a leitura das suas obras.
Entrei no universo de Luísa Dacosta pelos anos 80, depois de ler «A-Ver-o-Mar – Crónicas», um livro que me foi oferecido por um amigo comum, Manuel Ferreira Lopes, então director da Biblioteca Municipal da Póvoa de Varzim, falecido recentemente.
Manuel era o mais dedicado amante da prosa de Luísa, e conseguiu transmitir-me esse entusiasmo, ficando eu, também prisioneira das palavras luminosas da autora de «Nos Jardins do Mar», talvez o livro mais representativo da sua prosa poética, um mergulho em águas míticas, onde um amor verdadeiro, ainda que improvável, acontece…
Um dia, Manuel apresentou-me Luísa, e a partir de então formámos uma tríade, assente em afectos e partilhas. Com Manuel, entrei pela primeira vez no ninho das palavras de Luísa, o moinho de A-Ver-o-Mar, onde os fotografei em amena cavaqueira, depois de um almoço delicioso, confeccionado pela própria Luísa, aliás, uma excelente cozinheira – polvo frito, à moda de Trás-os-Montes, província da sua origem.
Depois de almoçar, percorremos, os três, a praia, vazia, imensa, com o mar a embalar-nos os sentidos. A conversa fluiu e de tudo um pouco falámos. E a trindade fez-se una.
Depois dessa primeira vez, muitas outras vezes regressei ao moinho, e de todas as vezes, consenti-me confundir com as personagens de Luísa, para melhor me aninhar naquele útero, onde foram geradas as mais belas palavras com sabor a sal.
Foram muitas também as vezes que nós os três viajámos até à Galiza, hospedando-nos no Mosteiro de Oseira, onde Luísa aproveitava o silêncio e a paz dos claustros, para ultimar algumas das suas obras.
Com Manuel e o seu entusiasmo contagiante, acompanhei o percurso literário de Luísa a partir de 1984. Ambos partilhávamos o seu afecto e a paixão pelas suas palavras, e as nossas conversas, por muitas voltas que dessem, acabavam por envolver Luísa e a nossa grande mágoa de a ver tão distante das luzes da ribalta, enquanto outras autoras eram largamente divulgadas, dando-se relevo à mediocridade e à incultura, num país já de si tão pequenino.
No dia da morte de Manuel, em 14 de Agosto de 2006, Luísa e eu visitámo-lo na clínica onde foi internado de urgência. Não nos encontrámos, por escassos quinze minutos. Mas ambas estivemos lá, nos últimos momentos do nosso amigo comum. Ele não pôde ver-nos, com os olhos físicos, mas sentiu, com toda a certeza, a nossa presença, naquele quarto, onde a sua alma já pairava, recebendo o nosso adeus silencioso.
Escrevo estas linhas como se fossem também as de Manuel, para celebrar o seu 80º aniversário, Luísa Dacosta, como sei que ele gostaria.
Nunca se diz o suficiente sobre alguém que tem uma obra escrita com palavras cerzidas como quem faz renda de bilros.
Contudo, quero deixar aqui apenas o testemunho de um afecto e um recado, para si, querida amiga: quando se percorre tão intensamente, durante 80 anos, todas as voltas de um destino, e se escreve uma obra tão magistral, como é a sua, olha-se para o futuro como se ele fosse eterno, e para o passado como se ele começasse ontem, porque hoje, a vida é, se a deixamos fluir…
Isabel A. Ferreira
Luísa Dacosta:
N - 16 de Fevereiro de 1927, Vila Real
F - 15 de Fevereiro de 2015, Matosinhos
Completaria hoje 88 anos
Morreu ontem, no hospital de Matosinhos.
O seu corpo encontra-se no tanatório daquela cidade.
Amanhã será cremado, pelas 10h.
Aqui deixo a minha homenagem à escritora que considero uma das maiores estilistas da Língua Portuguesa e cuja vida e obra acompanhei desde 1991, e sobre essa vida e essa obra escrevi um livro, que lhe dediquei com muito afecto: «Luísa Dacosta - "no sonho a liberdade"...»
Até sempre, Luísa Dacosta!
Luísa Dacosta em A-Ver-o-Mar (Póvoa de Varzim), em 16 de Julho de 1995
Luísa Dacosta nasceu em Vila Real de Trás-os-Montes, a 16 de Fevereiro de 1927, provavelmente num daqueles dias surpreendentes de Inverno que a fadou com o desassossego que distingue os seres marginais.
Depois de uma infância e de uma adolescência vividas em liberdade, rodeada de mimo, mas também de vivências que foram determinantes na construção da sua personalidade e que viriam, mais tarde, a ser perpetuadas na sua obra manifestamente autobiográfica, a jovem da província abalou para a capital, onde novas emoções, novas realidades, novos rumos, novas circunstâncias, dariam um novo sentido à sua existência. E quando, em 1944, iniciou a licenciatura em Histórico-Filosóficas, na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, a jovem Luísa trazia já em si a força e a coragem que caracterizam a mulher transmontana, facto que, aliado a uma genuína e saudável rebeldia, dela fez um ser indomável, como os seres selvagens que habitam as alturas, daí a sua visão do mundo conter a dimensão dos grandes horizontes. Ao mesmo tempo, possui uma natureza frágil e dócil que, por vezes, permite enredá-la em redes tecidas por mãos misteriosas, ocultas entre a folhagem de bosques, por onde vagueia um tempo sem tempo. O tempo daquela que escreve.
Ora um tal ânimo não poderia ser desperdiçado numa vida feita de lugares-comuns, de banalidades, de insignificâncias. Autora de uma obra poderosa, assente em mitos que a habitaram, como o de Tristão e Isolda, Narciso, Ceres, Penélope, e nas suas próprias vivências, acrescida de inegável qualidade literária, registo fragmentário de instantes efémeros que marcam uma existência, com Luísa a realidade mais simples transforma-se num momento raro, feito de palavras que flutuam e dançam ao som de ventos que não sopram, vestem-se de roupagem nova, libertando-se, desse modo, da sua forma banal, transformando-se elas próprias, as palavras, em seres únicos, etéreos, eternos e encantatórios.
Com Luísa, a poesia brota de todas as coisas: «Pela janela vem ainda um vago perfume a rosas, mas sem aquela onda sufocante de seiva, de vida, que outrora abafava com seu peso a minha infância, dolorosa, de penetrar o segredo das coisas.» (in Na Água do Tempo – Diário, Quimera).
Com Luísa, os enredos são mágicos: «Penélope incansável, a madrugada destece a urdidura dos filtros da noite, apaga a magia das sombras, esfria as estrelas. Mas não cala o apelo mítico, que sobe dos abismos e se desgarra. Como um lamento de ave, ecoa. Paira sobre as águas. Chega até mim.» (in Morrer a Ocidente – Crónicas, Figueirinhas).
Com Luísa os sons humanizam-se: «Soltou-se, dos abismos, o búzio do vento. Que dor se esfarrapa e franja de encontro aos penedos? Que voz, dolorida, endoidada, cavalgando ondas e crinas de espuma, espraia desesperos e uiva pelas margens da noite? – Meu amor! Meu amor!» (in A-Ver-o-Mar – Crónicas, Figueirinhas).
Com Luísa, o sofrimento é sublimado: «Sombrios, como as raízes da noite, eram os seus cabelos. E os olhos, pesados de amargura, tinham o brilho, incansável, das estrelas. À janela da vida, esperava o amor, o único – sobre o qual o tempo não tem poder.» (in Corpo Recusado, Figueirinhas).
Algumas das principais obras de Luísa Dacosta foram escritas no seu moinho de A-Ver-o-Mar, um presente de amor e depois concha de solidão, onde, qual ave de arribação, «só ia de ano a ano» … E, naquele lugar, onde o silêncio e o mar se enlaçam e as gaivotas adormecem a cada entardecer, o moinho, de paredes brancas, foi berço de uma prosa poética, invulgar, porque imbuída dos segredos das águas e dos sons marinhos, e das toadas da terra, quase imperceptíveis, que as noites vazias tornaram reais. Quem lê A-Ver-o-Mar – Crónicas, não esquece a beleza com que as cenas mais banais do quotidiano das gentes locais são descritas: «A tarde feria-se de sombras, toldava-se dos fumos da ceia. Era chegada a hora em que tudo dói, magoa, sangra, quer seja uma ausência, uma luz, uma pedra.»
Além das obras referidas e ainda outras (que incluem o conto, o ensaio, a crítica) escritas para adultos, obras autobiográficas, que encerram o seu peculiar universo, nas quais, como se disse, os enredos são mágicos, os sons humanizados, o sofrimento sublimado, e as palavras, que dizem da recusa, da solidão, do sofrimento, da angústia, são colhidas como quem colhe flores em jardins secretos, habitados por ninfas, a autora, porque dedicou parte da sua vida ao ensino preparatório, escreveu também vários livros para crianças, e, desse modo, ficou do lado do sonho.
Antes de conhecer a Luísa Dacosta/Mulher, conheci a Luísa Dacosta/Menina, através dos livros que escreveu para os mais pequeninos, e tal como acontece às crianças, também me deixei seduzir com as histórias próprias da infância, onde, todavia, a realidade nunca está ausente. Mais tarde, descobri, nas crónicas de A-Ver-o-Mar, aquele apelo à inocência das mulheres da beira-mar, sofridas, as quais vivem vidas sem sonhos, (como poderá viver-se sem sonhos?...) e cujo destino se enrola nas águas do grande oceano, que lhes dá o sustento, mas também a morte dos seus homens. Foi a partir de então que comecei a render-me à força da narrativa de Luísa, límpida e ausente de lugares-comuns, e parti para a descoberta daquela que escreve como quem faz renda, arrancando da palavra/bilro novas sonâncias encantatórias, que em nós ficam ecoando como vozes longínquas. Escrita/pintura feita de palavras de água púrpura, rósea, anil, violeta que transforma os textos em recriadas aguarelas, e molda paisagens, seres, emoções, sentimentos…
Seguiu-se Morrer a Ocidente, onde a ficção se confunde com a realidade, continuando no domínio das crónicas com sabor a sal. E tal como aquele soldado que, longe da pátria, e a propósito do texto Na Respiração do Tempo, publicado n’ A Vida Mundial escreveu à autora: «... senti o apelo da água... é um renovar tão profundo beber a maresia, a que aqui, a 2000 km do mar, senti nítido o cheiro iodado da Apúlia, pela mão das suas palavras... ler quem tão bem entende o mar, é um murmúrio de livres águas, bem consolador neste quotidiano difícil... Reli há dias... é uma das coisas mais belas, mais íntimas e mais verdadeiras (porque me toca por dentro) que tenho sentido», também eu descobri naqueles textos pedacinhos do meu mundo feito de breves momentos felizes, onde o mar ocupa um lugar relevante (foi à beira-mar que nasci e passei parte da minha existência) e o seu cheiro a algas, as suas gaivotas, as suas águas cantando segredos, ali, naquelas palavras debruadas com os sonhos de Luísa.
Mas foi O Planeta Desconhecido e Romance Daquela que Fui Antes de Mim que mais me impressionou, enquanto leitora. Trata-se de uma obra trespassada de mágoa e de melancolia, se bem que ateada de palavras escritas com saber, que nos lançam no sublime enfeitado de caos, e dão-nos, nua e cruamente, a dimensão da realidade que somos e, sobretudo, para onde vamos, cativos de um tempo que nos desfigura o corpo e nos arrasta até à outra margem da vida. Um livro belo que celebra as emoções, mas também a palavra. Uma vez mais.
Quando é urgente fugir do mundo e da realidade, a leitura é o meu porto de abrigo, e são dois os mestres que me ajudam nessa fuga: Pablo Neruda e Luísa Dacosta.
Pablo leva-me «ao pé dos vulcões, junto aos ventisqueiros, entre os grandes lagos, ao fragrante, ao silencioso, ao emaranhado bosque chileno... onde afundo os meus pés na folhagem morta... e sinto o aroma selvagem do loureiro»... (in Confesso que Vivi).
Luísa «faz-me resistir à vida, ao desgaste do tempo, à morte do corpo, ao apagar das alegrias, ao vazio circundante, ao corte das raízes, à não publicação dos (também meus) sonhos a morrer na gaveta...» (in Na Água do Tempo).
É neste universo, entre a cadência da vida e a beleza das palavras que se move Luísa Dacosta, sem dúvida, um dos nomes mais expressivos da Literatura Portuguesa Contemporânea. Contudo, devido, talvez, à sua recusa em enveredar pela vulgaridade e pelo mediático, conceitos tão entranhados na sociedade actual, cúmplices de uma gritante cegueira cultural, que, infelizmente, tanto valoriza e cultua a mediocridade, uma escritora de tal importância, inclusive, estudada nas universidades do nosso País e até no estrangeiro, não tem merecido, por parte dos media, o justo reconhecimento, nem a oportuna divulgação.
Disse-me, certa vez, um dos seus editores: «Os livros dela não se vendem». Como pode vender-se algo que não é adequadamente promovido? Como pode vender-se algo que não está ao alcance das pessoas? Como pode vender-se algo de que não se tem conhecimento? Em que livrarias estão os livros de Luísa Dacosta, para que as pessoas possam, ao menos, folheá-los? Em que Feiras do Livro estão os livros de Luísa Dacosta, para que as pessoas possam vê-los e, possivelmente, comprá-los?
(…)
Não estarão os livros de Luísa, (…) encerrados em sacos pretos, esquecidos nos recantos mais escondidos das livrarias? As palavras-chave para que um livro se venda são: promover, divulgar, mostrar… E o que não existe, passará a existir. E o que não se vende, talvez passe a vender-se. Não é assim que acontece com os autores que vendem, ainda que alguns não tenham a mínima qualidade literária? Se a má literatura se vende, por que não há-de vender-se a boa Literatura?
Dar a conhecer o universo da mulher/escritora, com o intuito de despertar os leitores para a sua obra, e de os acompanhar na descoberta do seu mundo, imensamente fértil em palavras delicadamente cerzidas, que são as suas, é o objectivo principal deste livro. Trata-se de um trabalho que, de modo algum, pretende ser académico ou erudito, crítico ou de análise linguística. É apenas um olhar, o meu olhar, despretensioso, de leitora e admiradora da escrita de Luísa Dacosta; a experiência de uma jornalista que segue o percurso literário da escritora desde 1984; uma abordagem pessoal, tendo também em conta o que vivi com a escritora, ao longo de vários anos, e o conhecimento do seu modo desassossegado de ser, e do seu pensamento irreverente.
A ideia não é a de analisar a sua obra sob o ponto de vista literário – para tal, há especialistas como Glória Padrão, José Augusto Seabra, Albano Martins, Paula Morão, Ramiro Teixeira, José António Gomes e Alzira Seixo, entre outros – embora, inevitavelmente, possa deambular, uma vez ou outra, e muito vagamente, por esse campo. O cerne de «Luísa Dacosta – «no sonho, a liberdade...» é o de acolher o todo – quem escreve e o que escreve – numa visão meramente jornalística, mais próxima do leitor comum, colocando esta questão básica: quem é Luísa Dacosta? E partindo-se do pressuposto de que conhecendo-se aquela que escreve melhor se compreende aquilo que escreve, atinge-se o âmago do meu objectivo: falar da obra de um dos nomes maiores da criação literária portuguesa contemporânea, dos seus motivos, e do que ao redor dessa obra se foi construindo.
Aliás, penso que todos os que gostam verdadeiramente de ler interessam-se por ler os livros daqueles de quem conhecem o pensamento, o modo de ser, de ver as coisas e de estar no mundo, conseguindo, desse modo, olhar com outros olhos a sua obra.
Partindo da infância, passando pela adolescência, pela juventude, pela publicação do primeiro livro até à actualidade, a minha ideia foi a de reunir numa só obra o saber da menina/mulher que escreve livros, por que os escreve, e como os escreve, aproveitando excertos das suas obras, para ir divagando sobre as coisas do seu universo, e aprofundar um pouco mais o seu pensamento, entremeando com alguns episódios que tive a oportunidade de vivenciar com a autora, procurando despertar o leitor comum para a obra desta que, à margem do mundo, é, sem dúvida, repito, uma das mais fascinantes escritoras portuguesas do século XX, pelo modo como usa a palavra.
Penso que a análise puramente literária da obra de um escritor interessará, talvez, prioritariamente aos estudiosos de Literatura, por isso, a ideia foi realizar um trabalho que conquiste os muito cultos, mas também, e essencialmente, os menos eruditos, para que não só possam ter acesso, como interessar-se por uma obra tão inexplicavelmente colocada à margem do rio literário que por aí vai serpenteando, pejado de ervas ressequidas, a que, também inexplicavelmente, é consagrado o melhor “adubo”.
(…)
Luísa fez da Língua Portuguesa um ninho, onde ninhou palavras que se assemelham a pássaros: livres e belos no seu voejar. Por isso, atrevo-me a dizer que o seu mundo é mais além, é o dos tais seres selvagens que habitam as alturas. E, dessas alturas, Luísa Dacosta pode contemplar horizontes infinitos e lançar as suas palavras a ventos que não sopram, porém, o paraíso literário estará sempre onde estiver um livro seu...
Luísa Dacosta, na Foz do Douro (Matosinhos) em 29 de Julho de 2003
Há muito que acalentava a ideia de fazer uma longa entrevista a Luísa Dacosta, com o intuito de dar a conhecer a dimensão do seu mundo literário, tão pouco divulgado nos órgãos de comunicação social, e tão mal acarinhado pelos seus editores. Um desperdício. Uma blasfémia. Uma lacuna que entendi necessário preencher. Mas o que fazer quando os textos escritos sobre Cultura, uma determinada Cultura, não merecem o melhor acolhimento nas páginas dos jornais? Qual deles se interessaria em publicar uma longa entrevista sobre uma escritora não mediática, não da moda, não “light”, como outras que tantas parangonas têm merecido?
Esperei o momento certo.
Nos finais do ano de 2002, propus à autora a entrevista, depois de verificar que o seu último livro, O Planeta Desconhecido e Romance da que Fui Antes de Mim, uma admirável urdidura ao redor da velhice e de um tempo que já foi mas ainda nos pertence, andava alheado das montras das livrarias e das páginas dos jornais, e, desse modo, o seu nome continuava a ser esquecido. Tão injustamente.
A proposta foi aceite. E naquela tarde de 22 de Abril de 2003, desloquei-me a Matosinhos, onde, no recato do apartamento da escritora, numa sala acolhedora, rodeada de recordações: retratos, pinturas, quase todas ilustrações dos seus livros, obras de arte, esculturas, livros, flores, pequenos objectos de grandes afectos, sentada diante daquela que escreve iniciei a entrevista, propriamente dita, que se prolongou exactamente até ao dia 22 de Julho de 2003. Sempre às terças-feiras, ao início da tarde. Entre as 14h30 e as 16h30. Nessas duas horas, a conversa fluía, e as palavras iam ficando registadas num pequeno gravador. Terminada a tarefa imposta para cada tarde, no recolhimento da casa, lanchava-se, um lanche onde não faltava o chá, uma especialidade da escritora. Um chá que variava de sabores. Devo dizer que nunca havia tomado chá de pétalas de rosas. Um requinte de Luísa Dacosta, aliás, também uma excelente cozinheira. Um dote de mulher transmontana, nas artes de bem receber.
Mas voltando ao lanche, além do chá, não faltavam pãezinhos especiais, com manteiga e compota, biscoitos, por vezes, bombons e outros mimos, com que Luísa me deliciava. Enfim, um lanche requintado, na sua simplicidade de lanche.
Outras vezes, íamos à pastelaria «Chá das Cinco», um espaço acolhedor, discretamente decorado à moda antiga, situada na avenida Brasil, na Foz do Douro, onde tomávamos ora chá, ora batido de manga com doce, “scones” ou torradas, enquanto conversávamos amenamente sobre os casos e ocasos da vida. Depois, dávamos um passeio à beira-rio, e aproveitávamos para maldizer (e o termo é mesmo esse) certas coisas deste nosso mundo conturbado: os políticos e as políticas, a incultura, e também a imundície que nos rodeava, naquelas calçadas que calcorreávamos, a falta de civismo dos que alcunho de “portuguesinhos”, que atiram tudo para o chão, apesar dos recipientes de lixo, espalhados pelos lugares. Lamentável, porque a marginal da Foz do Douro é um lugar lindo, onde podemos dar belas caminhadas se nos alhearmos da imundície que nos rodeia.
E o mar ali tão perto, belo e poderoso, enrolando as suas águas, naquelas praias da foz, pejadas de lixo, mas também de rochas negras, esverdeadas, avermelhadas, prateadas... Rochedos, aos quais ambas nos rendíamos, seduzidas pela sua beleza, à luz, magnífica, do entardecer.
Luísa Dacosta recebeu-me sempre com aquele seu sorriso afável, ainda tão de menina. E esta sua presença humana transformou o encontro entre jornalista e escritora numa afectuosa cumplicidade, e a entrevista, no longo desabafo de um ser que vive à margem do mundo, numa quase forçada solidão, por sentir e pensar de um modo muito mais além.
Ciosa da sua privacidade, a escritora só falou do que entendeu poder partilhar connosco, sem trair as suas mais íntimas vivências. Segredos só seus. Há coisas que são só nossas, e não devem nunca sair de nós. Porém, o que foi dito faz jus ao espírito livre de Luísa.
Dos episódios mais marcantes da sua vida, apenas falou de alguns, poucos. Dos afectivos. De algumas amizades. Não quis falar dos vivos. Mas evocou os mortos, mesmo aquele que não conheceu pessoalmente, mas com o qual se correspondeu e teve uma grande influência na sua vida, como adiante se verá: o Padre Joaquim Alves Correia, exilado na América, mesmo post de mortem. Depois houve o seu encontro com o amigo António José Saraiva, que foi também muito importante para a sua ligação à Literatura e a um conhecimento mais profundo da Língua e de certos autores. E também os dois anos (o que lhe consentiu a vida) de convivência e amizade com Irene Lisboa, embora nem sempre estivessem juntas: Irene, mais em Lisboa, Luísa, doente em Portalegre. Porém, a força combativa da escrita daquela escritora, sufocada por autoras de segundo plano que estiveram mais em voga e tiveram outra aura, foi muito importante para Luísa. Por último, a David Mourão-Ferreira Luísa deve a colaboração no Colóquio/Letras e o apoio à sua obra para a infância, que até certa altura nunca tinha sido comprada pela Gulbenkian. E a David, diz Luísa, deve essa respiração.
in «Luísa Dacosta - "no sonho a liberdade"…» - Um livro sobre a vida, a obra e o pensamento de Luísa Dacosta.
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Faz hoje precisamente 9 anos que o livro foi lançado, no Correntes d’Escritas, na Póvoa de Varzim (16 de Fevereiro de 2006), uma prenda de aniversário, pela passagem dos 79 anos da escritora.
Isabel A. Ferreira