Um belíssimo texto de Raul Tomé, para dizer da vilania da tauromaquia
«Hoje terás de lutar meu nobre amigo.
A noite aproxima-se e o teu oponente já sente o nervoso miudinho a crescer dentro de si. Prepara-se para a ribalta e para os aplausos que ecoam como espingardas por debaixo do mar de luz fervente que inundará aquele indouto povo.
Tem o seu melhor fato vestido. As lantejoulas já brilham para o seu serão engalanado.
A multidão sequiosa aplaude e espera-o no centro daquela bárbara arena.
Pisa a areia e sente cada grão de adrenalina estalar sob a sola imberbe dos seus sapatos.
Começa o espectáculo e em poucos segundos ouve a primeira ovação, depois a segunda e ainda uma terceira.
O seu fato continua imaculado, mas tem nas mãos a cor da morte, da dor e do sangue que derrama.
O seu olhar brilha de ódio e de emoção. E o público rejubila com a sua matança. Sente na boca o sabor escarlate e quente da seiva que faz viver o ser assassino que carrega dentro de si.
E tu, ferido, olha-lo com doçura e condescendência. Lutas até ao fim, mas as armas são diferentes. Ele usa o ferro e o ódio contra o amor e a bondade de quem nunca quis lutar.
Ele não te desafia, ele impõe. Ele não luta, destrói. Ele não é vilão, é demónio.
Mas numa coisa ele tem razão meu corajoso amigo. Ele escolhe lutar contigo porque diz que és nobre e, de facto, a tua nobreza é ímpar… Tu tombas como ele jamais tombaria, lutas como eles jamais lutará… Porque tu não lutas nem por ódio nem por prazer.
Tu lutas por tudo aquilo que lhes falta e antes de tombares, os teus olhos inundados de humanidade e dignidade serão farpas que cravarás no coração ignóbil e estéril do teu desprezível assassino.
Raul Tomé»
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