Por Eduardo Ferraz da Rosa (Dr.)
1. Com lançamento anunciado para amanhã (dia 16 de Abril) na Biblioteca Nacional em Lisboa, a 2.ª edição do livro de A Confiança no Mundo inclui um posfácio novo de Eduardo Lourenço, texto que o “Público” divulgou sob o título de “O desejo amoroso do mal” e onde o reputado professor e ensaísta – salientando fundamentalmente que esse trabalho denuncia “uma função problematizadora da própria mitologia democrática sob a qual, em princípio, assenta a ordem ideal da chamada Civilização Ocidental e não só” –, escreve subtilmente assim:
– “A questão da tortura no mundo actual é tratada pelo nosso antigo primeiro-ministro numa perspectiva assumidamente política, sociológica e cultural, não apenas como uma realidade e um escândalo ético de um passado memorial em perpétua repetição, mas como escândalo e contradição ética intolerável na perspectiva de uma ordem propriamente democrática tal como algumas das nações mais ilustres – e ilustradas – do nosso mundo contemporâneo quase miticamente a apresentam”.
E mais adiante, ao subscrever que “Cada homem é a condição humana na sua integridade”, Eduardo Lourenço salienta: “Esta é a linha vermelha que separa todo o respeito que se deve a essa ‘identidade’ universal e particular ao mesmo tempo, de todas as tentações de a converter em ‘objecto’ sobre o qual qualquer se humano creia ter direitos.
“Dessas tentações (...) a do uso da tortura é a mais inumana. Denunciar abstractamente o seu uso não é pequeno mérito. Não isentar deles os actores mesmos que ocasionalmente violaram ou violam ainda o pacto democrático que por excelência a exclui e a si mesmo se nega é mais arriscada. E por isso mesmo mais meritório. Não é um combate contra um inimigo imaginário”...
2. Esta obra, logo a quando do lançamento da sua primeira edição, provocou várias e muito díspares reacções políticas, culturais e ideológicas, às quais não foram alheias, evidentemente, as anteriores actividades pessoais e as responsabilidades partidárias e governativas de Sócrates e do PS, o mesmo sendo talvez de esperar novamente agora e apesar dos implícitos ou explícitos avales que lhe foram dando, por exemplo e entre outros, personalidades tão política e intelectualmente distintas como Lula da Silva (que a prefaciou), Mário Soares (que a apresentou), Vital Moreira (que sobre ela escreveu) e agora Eduardo Lourenço (que agora lhe dispensou um posfácio).
Todavia, vinda de outro quadro de leitura filosófica e ética, e a partir ainda de diferenciadas categorias e tradições de pensamento, parece-me digna de ser assinalada aqui – até porque menos consensual, ou menos mediatizada... – também aquela que foi desenvolvida pelo meu colega filósofo Paulo Borges, argumentando precisamente do seguinte modo:
– «José Sócrates, Lula da Silva e Eduardo Lourenço têm obviamente razão e a maioria de nós reconhece-se nas suas palavras e sentimentos de indignação perante um acto tão bárbaro e inumano como a tortura. Mas infelizmente, eles e muitos de nós, vítimas do preconceito antropocêntrico e especista que domina a nossa cultura, esquecemos que a tortura de que são vítimas os seres humanos têm sido e é cada vez mais nos nossos dias uma manifestação apenas da inimaginavelmente mais ampla e cruel tortura que infligimos aos animais.
«Com efeito, pense-se em como são criados, (mal)tratados e abatidos os biliões de animais que anualmente usamos para nossa alimentação, vestuário, divertimento, experiências ditas científicas e trabalho. Biliões de vidas que, como as nossas, se manifestam em corpos e mentes sensíveis e vulneráveis à dor, ao medo e à angústia. Biliões de vidas que, como as nossas, aspiram à liberdade, à segurança e ao bem-estar e são arrancadas aos seus habitats naturais ou produzidas numa demência industrial para serem instrumentalizadas, violentadas, torturadas e destruídas sem a menor consideração pela sua alteridade e pelo seu estatuto de seres conscientes e sencientes. Ou seja, precisamente o mesmo, mas em muito maior escala, que atrás se definiu como a quinta-essência da tortura, expressão do ‘Inumano’ e ‘acto por excelência que se assume como pura vontade do Mal, quer dizer, da negação do estatuto do Outro como outro’, que muitas vezes, como nos circos, touradas e demais espectáculos, ainda é ‘acompanhado pelo prazer do mesmo acto que anula o outro e em que nós nos anulamos suprimindo inocentemente a nossa essência humana».
3. Por seu lado, em A Confiança no Mundo, como é sabido, sendo abordado o problema teórico e a consumação prática da Tortura em regimes democráticos, defende o seu autor que esse fenómeno constitui – claro! – não só um atentado à intrínseca e inerente dignidade dos seres humanos, quanto (ou conquanto) é um índice da profunda degenerescência e falsificação a que todos os regimes políticos – mesmo os liberais ou jurídico-formalmente estruturados como Estados de Direito – podem estar sujeitos, no que assim se instituiriam em aparelhos destituídos de legitimidade ético-política e de autoridade moral.
– Esta tese, cuja perspectiva de abordagem, embora não sendo academicamente inédita, traz alguns sugestivos contributos sintéticos para uma mais articulada questionação do fenómeno da Tortura no pensamento tradicional e na história política, securitária, colonial e militar-imperial recente das clássicas democracias europeias e norte-americana (aqui, nomeadamente após aos atentados terroristas do 11 de Setembro, com as contra-posições tácticas e estratégicas assumidas pelos EUA a nível jurisdicional, penitenciário e torcionário...), – mas reclamaria porém igualmente uma incisiva aplicação à História de Portugal, por maioria de razão agora nesta atribulada passagem e comemoração dos quarenta anos do 25 de Abril, quando, entre muitas outras coisas, conviria não esquecer a indomável resistência de tantos militantes anti-fascistas e democratas (que sofreram e de variado modo definharam ou morreram às mãos de carcereiros impiedosos e de agentes assumidamente serventuários da Ditadura), cujos testemunhos vivos e pungente memória psicofísica, moral, sociopolítica, narrativa e espiritual – a não silenciar nunca! – permanecem como outros tantos avisos e desafios à nossa incauta ou desarmada confiança no mundo e nos homens de hoje e de amanhã...
4. Este livro de Sócrates, sendo pois agora mais filosoficamente lido (ou legível...) de modo generoso, como o faz Eduardo Lourenço, poderia porém e justificadamente assim não só trazer à reflexão uma mais ampla e referencial evocação ética e quase metafísica do problema (e do Mistério?) do Mal – tanto no que ele absolutamente opõe, ou tenta, digo, derivadamente subtrair, ao Bem... –, quanto mais sistemática, criteriosa e consequentemente deveria estender a sua crítica visão a tudo o que, em recorrente incidência, por entre a barbárie radical da violência universal sádica e niilista da Tortura e seus suposta ou alegadamente banais (e menores?) actos maléficos quotidianos – como a mentira, a injustiça, a opressão, a exploração e todas as outras simulações ocultantes da verdade... –, ainda permanece intencional e quase inocentemente fruto da tal invocada (e desculpabilizante?) inumanidade ou desumanidade de que (todos e em que medida?) alegadamente seríamos, ou parecemos ser, parte integrante ou interessada...
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Em “Os Sinais da Escrita”:
http://sinaisdaescrita.blogspot.pt/2014/04/o-silenciamento-das-torturas-1.html
e Jornal “Diário dos Açores” (Ponta Delgada, 15.04.2014)