Uma excelente Crónica Ilustrada de Filipe Simões sobre o que se convencionou chamar de “festa brava”, e não passa de um atentado cobarde à vida de um ser indefeso, encurralado numa arena…
Vale a pena ler…
Texto de Filipe Simões - artista
Crónica ilustrada para o Jornal O Riachense, Julho 2017
«Desde que o Homem é Homem - e já o é, dizem, há uma catrefada de tempo - que tem a mania de se achar mais que os outros. E quando digo os outros refiro-me a tudo, desde as alfaces e formigas até aos elefantes ou mesmo outros seres humanos, seus semelhantes.
O Homem, reparem que escrevi com letra maiúscula, tem por hábito estabelecer hierarquias onde se coloca sempre no topo, claro, tudo o resto são servos. Se os caracóis soubessem o que é uma hierarquia se calhar também se punham no topo. Ainda bem que não sabem, pois seria uma estrutura bem viscosa.
Olhando para o passado recente, está logo à vista a inevitável questão dos escravos negros que nós tão bem chicoteámos durante gerações. Era uma delícia ver aqueles reles seres inferiores a servirem-nos e nós a manietá-los com toda a imponência e virilidade que nos caracteriza. Foi até alguém ter a brilhante ideia de que "eles" não são em nada inferiores a "nós". Enfim, tradições que se perdem. E bem!
Outra tradição que ainda resiste é a tauromaquia, que consiste em dar uma bela maquia aos tauros (brilhante jogo de palavras, sou realmente um ser superior!).
Se formos a analisar bem a coisa vemos que também aqui há bastante racismo. Primeiro, larga-se o indivíduo no meio de uma espécie de beco sem saída, mas redondo. Depois vêm uma data de rufias todos emproados, uns até montados no seu cavalo (cá está outra vez a mania de superioridade), mandam uns piropos sarcásticos ao tipo encurralado a ver se o provocam, "Oh oh oh, oh tu de chifres, anda cá a ver quem é o maior!", depois fazem umas fintas à Cristiano Ronaldo mas sem a bola, todos armados ao pingarelho e toca de dar umas facadas no cachaço, enquanto uma data de gente altiva ri e aplaude a elegância com que se procede à tortura do infeliz, que só deseja não ter saído da cama naquele dia. Bravo!
Depois do incidente, se houvessem bovinos jornalistas escreveriam a seguinte manchete: "Grupo organizado agride touro até à morte", e no corpo da notícia poderiam ler-se frases como: "Ao que tudo indica trata-se de uma quadrilha referenciada pelas autoridades" e "O touro ainda tentou defender-se marrando naquele que alegadamente seria o chefe do clã, mas de nade lhe valeu". De facto, há tradições muito giras.
Ah! já agora, outra tradição que houve em muitos povos era aquela em que se faziam sacrifícios humanos em nome dos Deuses. Felizmente houve quem conseguisse sacrificar essas tradições em nome do Homem.»
Fonte: