Subscrevo este texto, porque fala de uma verdade que muitos pretendem esconder.
A eutanásia, para muitos, é uma moda, como outra qualquer…
Lamentável!
Texto do Dr. Pedro Girão
«Recebi esta pergunta de um amigo: como médico, qual a tua opinião acerca da eutanásia?
Não publiquei nada sobre a eutanásia por vários motivos, sendo os principais a complexidade do tema e a avalanche de comentários e opiniões – um “ruído de fundo” que abafou quase todas as opiniões tranquilas. Agora que já está aprovada (pelo menos na generalidade), e julgando que possa haver um pouco mais de tranquilidade, faço um resumo do que penso acerca do assunto, sem nenhuma pretensão de ter a razão do meu lado. É, apenas, a minha opinião.
O meu ponto de partida é, naturalmente, este: como médico, “sou contra”. Digo naturalmente porque, conforme compreenderão, não sinto à partida como missão nem como vocação natural colocar um termo à vida. Quem não leu o conto de Miguel Torga “O abafador” pode supor que a eutanásia seja um tema “moderno” ou “civilizado”; não é tal: o conto é de 1944, reflectindo uma prática ancestral de uma aldeia perdida atrás dos montes. E, se um médico em geral procura prolongar a vida, um anestesista em particular é um “ventilador”, e não um “abafador”...
Dito isto, o ponto de partida não é tudo – e não é necessariamente o ponto de chegada. (A partir daqui, irei usar o termo “profissional de saúde”, para englobar médicos e enfermeiros, que são parte integrante, testemunhas e actores de uma mesma realidade.)
Questão prévia: qualquer profissional de saúde sabe distinguir entre eutanásia passiva e activa; e qualquer profissional de saúde sabe que a primeira, e por vezes mesmo a segunda, são diariamente praticadas nos hospitais em doentes verdadeiramente terminais, sem qualquer controvérsia. (Sublinho o “verdadeiramente terminais”, querendo com isto dizer: doentes cuja esperança de vida é de poucas horas, ou no máximo poucos dias; doentes sem qualquer esperança de recuperação.) Lamentavelmente, basta passar os olhos pelo insuportável “ruído de fundo” destes dias para saber que pouca gente sabe qual a diferença entre eutanásia activa e passiva, e pouca gente sabe que ela faz parte da realidade actual. Concretizando, num doente “verdadeiramente terminal”, que mais frequentemente é um doente com cancro, pode suspender-se o tratamento necessário à sobrevivência do doente (eutanásia passiva), ou administrar-se algum tipo de sedativo/analgésico, que habitualmente compromete também a função respiratória, abreviando um pouco a vida do doente (eutanásia activa). Esta é a prática habitual, realizada em doentes normalmente inconscientes ou, quando muito, semi-conscientes. (Uso termos não inteiramente científicos para mais fácil entendimento.) Esta forma de eutanásia parece-me totalmente aceitável. Diria que me parece humana e natural. E não vejo necessidade de se legislar sobre o assunto.
Ora o que está em cima da mesa na proposta de lei da eutanásia é outra coisa diversa: trata-se de satisfazer o pedido expresso e consciente de um doente não-terminal, embora portador de uma doença “incurável”. E é esta forma de eutanásia que me parece desumana e anti-natural, pelos motivos que apresento em seguida.
Desde logo, “incurável” é uma probabilidade diagnóstica, uma probabilidade com uma certa margem de falibilidade. Não estou à vontade para lidar com essa margem de erro. Diz-se que a esperança é a última coisa a morrer. Não sei. Na minha vida profissional não lido muito com a morte (aliás, não lido, de todo!). A minha experiência é sobretudo pessoal. Tenho visto muita gente sem esperança clínica nenhuma que mantém a vontade de viver, e gente com muitos motivos para ter esperanças de melhoras mas sem nenhuma vontade de viver. Não há regras. Esta é uma das minhas principais dúvidas: a incrível diversidade de formas de se viver a morte (tal como as de viver a vida) devia impedir-nos de enveredar por legislações formatadas.
Segundo aspecto: o decisor desta eutanásia não é o profissional de saúde, é o doente; o profissional de saúde, mais concretamente o médico, torna-se no agente que cumpre ordens de um doente, ou eventualmente ordens de uma estrutura legal. É, nesse sentido, o tal “abafador” da vida, o administrador da injecção letal. (Nota: a “receita” da injecção letal está na Internet; qualquer técnico pode ser o agente desse acto não-médico.) Não contem comigo para isso. Se algum dos meus amigos tiver uma doença incurável, ainda longe do desfecho, e estiver suficientemente desesperançado para desejar a morte imediata, espero que me dê a honra de lhe fazer alguma companhia, humana, sem fármacos. Não prometo curas nem ofereço morte, apenas solidariedade. E tempo. Quem não perceber do que estou a falar, não pode ser um profissional de saúde. Porque tu, meu amigo (meu doente, meu estranho), podes ter perdido a esperança, mas eu mantenho por ti a esperança de que talvez seja possível salvar-te. É (também) isso que me faz viver.
Terceiro aspecto: os abusos. Cito o filme “Relatório minoritário”: a falha do sistema é humana, é sempre humana. Qualquer sistema se presta a abusos. Eu conheço vários abusos, na Holanda, na Bélgica, na Suíça. Conheço casos de gente obviamente deprimida que conseguiu permissão para ser eutanasiada, em nome da sua “liberdade individual”. (A depressão não é um estado que permita tomar decisões, digo isto só por dizer...) Conheço gente que ganha dinheiro à custa da falta de esperança dos outros, à custa da ignorância dos outros, à custa de tudo nos outros – na doença deles. Sim, falo de profissionais de saúde, que são pessoas como as outras, tão grandiosas e tão miseráveis, tão honestas e tão corruptíveis como todas as outras. E essa gente, agora, a poder dar também a morte?!… Conheço o suficiente dos meus colegas para nem querer pensar nisso, porque não quero ter pesadelos à noite. Aliás, regra geral na minha vida: tenho como missão proteger-me, e à minha família/amigos, dos abusos da gente que sei ser má profissional; mas não tenho como missão convencer o resto do mundo acerca dessa gente. Vivo e deixo viver. Deixarei, portanto, também morrer.
Pequena conclusão (mas este assunto seria inesgotável…): preferia que não se legislasse, não no sentido de uma “liberalização”. A extraordinária incultura e a ignorância atrevida que o Facebook nos permite observar no nosso povo, o inqualificável baixo nível que podemos observar, devia fazer-nos optar decididamente pela Educação como um desígnio nacional. Mas não; são desígnios nacionais: o turismo, o “crescimento económico”, a diminuição do défice, o equilíbrio da banca, etc., etc., e também agora a eutanásia. Sublinho: a Saúde está cada vez pior. Não para mim, que sou médico, mas para o povo. Mas quem se importa com o povo? (Palavra que passou de moda após o 25 de Abril…) Quem quer saber que o acesso à Saúde e à Justiça seja cada vez mais desigual? Alguém? Ninguém. Agora, causas fracturantes? Isso é que interessa.
Este é um tema de uma enorme complexidade. Mais do que regras ou leis, cada caso é um caso, um caso humano. A suficiência de muita gente pretensamente inteligente leva-as a crer que sabem tudo e que podem impor tudo a toda a gente, barreiras e limites, regras e leis, para o bem e para o mal. É um erro. O maior erro que vejo na Esquerda moderna (com a qual me identifico naturalmente) é a falta de humildade. É desenvolverem uma ideia de civilização e de progresso – e quererem impô-la a toda a gente, presumindo que quem pensa de forma diferente é incivilizado e retrógrado. Estou contra, portanto. Estou contra o totalitarismo a que querem chamar liberdade. Estou contra a plutocracia a que querem chamar democracia. Estou contra a morte a que querem chamar vida.»
Fonte:
https://www.facebook.com/pedro.girao.96/posts/10222728063129183