Texto e foto Copyright © Isabel A. Ferreira 2008
Encontro-me só, na minha sala-de-estar, junto à janela, a saborear uma chávena de café quente, enquanto ouço o silêncio, perturbado apenas pelo monótono tic-tac do relógio, que me dá a percepção do passar do tempo… Lá fora, a chuva molha a estrada.
Nunca me senti tão lúcida, tão consciente da minha própria existência, tão profundamente empenhada em aproveitar todos os momentos que a vida terá, com certeza, reservado para mim. Nunca estive tão decidida a vencer (não sei o quê ainda)…
Não! Não é manhã para prantos ou tristezas. Não seria justo. É dia sim, de acolher com um sorriso o amanhecer deste Novo Ano.
O silêncio e a paz deste momento fazem-me recordar um outro alvorecer nostálgico e cinzento, naquele primeiro dia do ano de 1970, quando me encontrava não numa sala-de-estar, mas percorrendo as ruas estreitas e ainda desertas de Coimbra, saboreando, não uma chávena de café quente, mas o harmonioso silêncio que saudava aquela manhã…
Subi então o Quebra-Costas, sem rumo definido. Fui caminhando apenas, e eis-me, de súbito, diante da Sé Nova. Decidi entrar. Fazia-o sempre que me encontrava sem rumo. Procurava a solidão e o silêncio do templo para me reencontrar.
Naquela manhã cinzenta do primeiro dia do ano de 1970, porém, nem tudo era silêncio na Sé. Ouvia-se o som melódico do órgão que um jovem músico dedilhava com suavidade. Sentei-me para ouvi-lo tocar e deu-se o inevitável encontro: eu e a Música. E sempre que isso acontece, algo de estranho se passa em mim. Foi então que, envolvida pelos acordes mágicos de um cântico litúrgico, fiz uma reflexão que representou uma nova maneira de estar no mundo.
Por circunstâncias várias, encontrava-me só e triste, naquela manhã. Mas que direito teria eu à minha tristeza se havia tanta miséria espalhada à minha volta? Que motivos seriam os meus? Ter amanhecido com o Novo Ano sem qualquer esperança no futuro? Só isso?... E a fome? A doença? As tragédias? A guerra, que atingia directamente tantos seres humanos, mas não a mim?
Todos os dias, encontrava nas ruas, nos cafés, nos eléctricos, em toda a parte, gente que precisava de um sorriso, de uma palavra, de um gesto de amizade e de compreensão. E se eu sorrisse, falasse ou compreendesse essas pessoas não estaria a contribuir, de algum modo, para amenizar essas carências? Talvez! Mas não seria tudo. A natureza humana é muito, muito estranha e, ainda que entre sorrisos e palavras de conforto somos capazes de nos sentirmos abandonados.
Que direito teria eu então à minha tristeza? Eu, que podia ver o Sol; que partilhava a mesma Natureza do Universo; que tinha Pais; que não sentia fome, nem sede, nem frio; que era física e mentalmente sã, porque não estava doente, tinha consciência do que fazia, possuía o dom do discernimento!
Que teria eu a menos do que aquela pobre mulher esfarrapada que, segurando um filho nos braços, todos os dias, à mesma hora e na mesma esquina, pedia esmola para poder alimentá-lo? Não seria eu mais privilegiada? Claro que era! E uma lágrima caída dos meus olhos seria um verdadeiro sacrilégio, porque a lágrima é o refúgio dos que sentem na carne a dureza da vida. Eu não tinha o direito de chorar com pena de mim, porque outros chorariam por mim. Tinha sim, o dever de sorrir, de transmitir coragem, de espalhar alegria entre aqueles que não a tinham…
Esta foi a minha reflexão naquela manhã monótona e cinzenta do 1º dia do ano de 1970, quando, sentada num dos bancos no interior da Sé, ouvia os acordes de um cântico litúrgico, executado ao órgão por um jovem músico.
Quando abandonei o templo, espalhei sorrisos pela baixa coimbrã. Foi a maneira que encontrei para desejar um feliz Ano Novo às pessoas que por mim passavam na rua. Talvez me tivessem tomado por “louca”. Se sorrimos quando tudo à nossa volta é tumulto, é revolta, é vazio, é ódio, é violência, é tragédia, chamam-nos “loucos”, porque não compreendem que um sorriso é a arma dos inocentes, faz parte do lado bom da vida e é o íman que poderá atrair os menos felizes para fora do fosso profundo onde se encontram. Mas talvez, por ser apenas um sorriso, não tenha a força necessária para magnetizar os seres humanos…
…
Acabo de saborear a minha chávena de café quente. Continuo a ouvir o silêncio, perturbado apenas pelo monótono tic-tac do relógio.
Esta manhã recuei no tempo e recordei uma outra manhã…
Diz-se que “recordar é viver”, sim, porém, sobretudo, é saber vencer as dificuldades e sorrir. Sorrir constantemente… ainda que um tímido sorriso.
E é exactamente com um tímido sorriso que me entrego ao amanhecer deste Novo Ano, deixando para trás os dias trágicos que o ano de 2008 proporcionou ao mundo…