Certo dia insurgi-me contra a prática do Tiro ao Voo, num Campo existente na cidade onde vivo, e sobre a qual prática, houve um dirigente desportivo que sentenciou: «São hipócritas aqueles que, face aos males da Sociedade, condenam o Tiro ao Voo. Toda a gente pensa que o tiro é o mal do Mundo. Quem não gosta, fica em casa».
Isto aconteceu há algum tempo. Nesse dia, cobri-me de penas e saí à rua em defesa dos pombos, gritando bem alto a minha indignação, para que o tal dirigente desportivo pudesse ouvir-me:
«Atrevo-me a dirigir-lhe estas palavras, uma vez que não consegue dizer claramente, com todas as letras, que o tiro ao voo, a que se refere, não é, certamente, o tiro ao voo de aviões, ou de helicópteros, ou de ovnis, ou de hélices, ou de pratos, ou de qualquer outra coisa que possa mover-se no espaço e ser abatida a tiro, por motivos de terrorismo, de guerra, de ódio, de insanidade mental, ou até de simples diversão.
Não! O tiro ao voo, a que se refere, é o tiro a inocentes pombos, meus irmãos, que, depois de se verem encerrados numa gaiola, são “libertados”, e quando intuem que estão novamente livres e dão às asas, num gesto de plena liberdade e, sem terem feito mal algum a ninguém, são covardemente atingidos com um tiro, nem sempre certeiro e mortal, para que não haja agonia. São mortos apenas para divertimento de uns tantos indivíduos que, à semelhança dos muito, mas muito primitivos povos, gostam de ver carnes dilaceradas e sangue vivo a jorrar, a borbulhar, a manchar o chão.
E quem não gosta fica em casa, diz você. Não! Isto nada tem a ver com “gostos” e muito menos com tradição, mas sim com evolução. Poderia referir um sem-número de tradições que, em nome de uma civilização culta e da evolução de mentalidades e da harmonia, foram abandonadas, e hoje apenas fazem parte da triste história de uma humanidade primitiva e inculta. Por isso, quem não gosta, como eu não gosto, deve sair de casa e vir para a rua expressar publicamente o seu repúdio perante uma tal demonstração de falta de respeito pelos outros seres e pela essência da própria vida, da falta de civilidade, e da falta de sensibilidade.
Quanto ao toda a gente pensar que o tiro é o mal do mundo, tenho a dizer o seguinte: quem, na verdade, pensa, não pensa que o tiro é o mal do mundo, uma vez que o mal do Mundo não é o tiro, mas o cérebro que comanda a mão que dá o tiro. Ou seja, o mal do mundo são aqueles indivíduos que ainda vivem nas trevas. Nada evoluíram, nem em mentalidade, nem em comportamento social. Até porque, quem consegue olhar para um pombo e nele ver uma criatura de Deus – aliás, bela e mansa, símbolo do Espírito Santo, para quem é Católico, e símbolo da Paz, para quem é Pacifista – e não um simples alvo para um tiro que lhe tira a vida, em nome da vã destreza de um atirador, jamais será capaz de matar um semelhante em nome de nada ou de uma guerra insana; vender droga a um jovem; violar uma criança; poluir um rio; cortar belas árvores, para dar vez a cimento e a latas; ou cometer qualquer outro crime contra a Humanidade ou contra o meio ambiente.
Ou seja, quem é capaz de amar um pombo, ama a Humanidade e a criação no seu todo. Ama a vida. Não aplaude a morte. Por outro lado, hipócrita é aquele que pretende viver no seio de uma sociedade humana, defendendo valores de morte. Ou será que ao dar-se um tiro num pombo que voa em plena liberdade, feliz por ser uma criatura alada, está a falar-se de defesa da vida?
Diz-se, por aí, que é fundamental manter as tradições, para não perder a identidade. Vamos a isso! E se retomássemos a tradição de enforcar os bandidos em praça pública? As nossas cadeias estão muito cheias. Ou queimar na fogueira as bruxas e as mulheres visionárias que por aí circulam? Ou recuar ao tempo dos duelos para lavar a honra deslavada dos homens? E se voltássemos a consagrar o coração de uma virgem-menina aos deuses para os apaziguar? Não andam as forças da Natureza em fúria, um pouco por todo o Planeta? E se furássemos o crânio de um homem carismático para lhe beber o sangue e tornarmo-nos invencíveis, e podermos vencer até os ventos?
O que me diz, senhor dirigente desportivo? Vamos a isto? É preciso manter as tradições dos nossos antepassados! São covardes, todos aqueles que torturam seres vivos, humanos ou não humanos, que não podem defender-se; que não têm como lutar pelos seus direitos, ou porque não têm voz, ou porque estão em desvantagem. Quais os países onde ainda é tradição o tiro aos pombos, o Massacre de Touros (com touros de morte ou sem touros de morte), a luta de galos, a luta de cães, a luta de ursos com cães, a luta de lagartos…
O homem devia envergonhar-se de ter inventado o tiro. Muito mais deve envergonhar-se de o utilizar contra um ser vivo, seja ele quem for, e por que motivo for, ainda menos se os motivos forem tão fúteis. Trata-se de vida. Da vida daqueles que não têm como gritar: não nos matem, nós não gostamos disso. Os que usam os animais para diversão (com morte ou mesmo sem morte) pararam no tempo. Querem a tradição das arenas? Deixem que homens lutem contra homens, voluntariamente. E deleitem-se a ver o sangue borbulhar e coalhar no chão da luta.
Mas poupem os pombos. Poupem os touros. Poupem os cães. Poupem os lagartos, ou ursos, os galos. Poupem os que não podem gritar o desespero deles».
© Isabel A. Ferreira
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