Copyright © Isabel A. Ferreira 2009
JOSÉ SARAMAGO
Porque gosto de uma boa polémica, de provocadores, de ser provocada, e também de provocar, atrevo-me a deixar aqui a minha opinião sobre a controvérsia que se gerou ao redor do «Caim» de josé saramago *.
Deixada a questão política do lado de fora deste blog, uma vez que não comungo da ideologia comunista conotada com o autor, devo confessar que, apesar disso, aprecio alguns livros de josé saramago. Não todos. Li sofregamente o «Ensaio Sobre a Cegueira» (magnífico) e «O Evangelho Segundo Jesus Cristo» (interessantíssimo). Os outros, confesso, não os li com tanta “sede”. Fui lendo... Outros, ainda não os li. Estão no “monte”, à espera de vaga.
Contudo, considero saramago um dos nossos grandes autores.
Quando surgiu o seu «Caim» fiquei interessadíssima, porque foi um tema sobre o qual também já havia escrito, em 1998, e que cheguei a publicar, em vários jornais e revistas, inserido num texto intitulado «O Sexo das Palavras». Então pensei: o impacto que a leitura da história de Caim e Abel provocou em mim seria igual ao de saramago?... Fiquei curiosa.
A BÍBLIA
(Página da Bíblia dos Capuchinhos)
Naquela altura escrevi: «Isto do mundo dividido entre o masculino e o feminino não dá com nada. (...) O homem sem a mulher não existiria e o vice-versa também não. Embora, segundo a história bíblica, que foi inventada por homens, a primeira e única mulher da época – Eva – foi criada a partir de uma costela de Adão – o único homem de então. Deste casal, nasceram dois filhos – Caim e Abel. Caim matou Abel. E assim aconteceu o primeiro homicídio da humanidade (quando havia apenas quatro seres no mundo) com a cumplicidade do próprio Deus, pois foi Deus que disse ao assassino, quando este, diante Dele se mostrou com medo que o matassem também: «Quem matar Caim terá um castigo sete vezes maior», e Deus marcou-o então com um sinal para que em toda a parte se soubesse que nenhum mal poderia atingi-lo.
E foi deste modo ilibado pelo próprio Deus em pessoa que Caim partiu para o país de Nod, sem que justiça fosse feita, como convinha a quem inventou a história. Talvez esta passagem bíblica explique porque os nossos bandidos sempre foram tão protegidos pelas leis que temos (também todas feitas por homens).
Depois deste primeiro homicídio, nunca mais houve parança, e as matanças sucederam-se e continuaram a suceder-se em massa, até aos nossos dias, sob o olhar impávido e indiferente dos homens, enquanto as mulheres, que são um pouco mais poupadas a essas matanças, choram os filhos mortos.
De quatro seres (Adão, Eva, Caim e Abel) ficaram apenas três, a vagar pela Terra imensa. O que se passou depois é um verdadeiro enigma. Diz a Bíblia que o assassino foi para o país de Nod. Caim nunca mais falou com o Senhor, mas não foi por Ele abandonado, apesar de ter assassinado o irmão. Deus premiou-o com o poder de fundar uma cidade e até lhe concedeu uma mulher. O que não nos foi explicado é de onde saiu esta mulher.
E assim, deste modo enigmático, os homens foram-se multiplicando à face da Terra, até dar no que deu: um superpovoamento, onde milhões morrem à fome, e outros milhões vomitam a fartura».
Como não sou saramago, esta minha intromissão no Velho Testamento, não teve qualquer repercussão, em nenhum aspecto. Ninguém me disse que não deveria ter lido a Bíblia de um modo literalista. Também, até hoje, não ouvi nenhum padre da Igreja Católica explicar o sentido simbólico desta história, ou das outras histórias bíblicas em que Deus aparece como um justiceiro irado.
Quando era menina, como todas as meninas, andei na Catequese. Tinha nove anos. E esse foi o pior tempo da minha vida. A catequista, uma senhora já de certa idade, incutiu-me (a mim e às outras crianças, mas falo por mim) um tal temor a Deus, que à noite tinha pesadelos, dos mais terríveis. Tudo era pecado. Tudo Deus castigava com grande violência, acenando-nos com o fogo do Inferno, para toda a eternidade, e Satanás a picar-nos com a sua forquilha, rindo dos nossos gritos aflitivos, mostrando os dentes ameaçadores.
O medo de Deus era imenso. Ensinaram-me, não a amá-lo, mas a temê-lo mais do que ao Diabo. Literalmente. Contudo, esse era um segredo só meu. Nunca o partilhei com os meus Pais, como devia.
Essa respeitável senhora ensinou-nos igualmente, que no dia da nossa Primeira Comunhão, tinha eu oito anos, ao recebermos o Senhor, não podíamos encostar a hóstia aos dentes, ou “trincá-la”, uma vez que poderíamos ferir a carne de Nosso Senhor, e os nossos vestidos, imaculadamente brancos, ensanguentar-se-iam. Morder a carne de Nosso Senhor (que, na altura, para mim, era uma pessoa), soou-me a canibalismo, desde então).
Ora eu, que era um pouco atabalhoada, vi-me muito aflita para não encostar a hóstia aos dentes, e na aflição de não o fazer, trinquei-a, e foi então que começou o meu martírio. Passei o resto da cerimónia a ver se o meu vestidinho branco estava manchado com o sangue de Cristo. Não dei conta disso, mas estragou-me aquele dia, e todos os dias que vieram a seguir, durante alguns anos. Escusado será dizer que dali em diante, comungar, foi para mim uma tortura.
Como gostava de ler, tive curiosidade de ler a Bíblia. E ao ler a Bíblia, evidentemente, comecei pelo Velho Testamento, e lá encontrei o Deus cruel e vingativo, do qual a minha catequista nos falava, e do qual também nos fala saramago. E nunca ninguém nos disse que o que estava escrito na Bíblia, na verdade, não era o que estava escrito. Era outra coisa. Ora para uma adolescente, o que é, é, o que não é, não é. E penso que sempre assim foi, em todos os tempos. E a Bíblia era (é) para ser lida por gente comum, que nada sabe sobre Exegese (o que é isso?)...
Talvez, por este motivo, josé saramago, que é inteligente e tem sentido crítico, disse o que disse sobre a Bíblia, que obviamente conhece bem: «A Bíblia é um manual de maus costumes, um catálogo de crueldade – A Bíblia passou mil anos, dezenas de gerações, a ser escrita, mas sempre sob a dominante de um Deus cruel, invejoso e insuportável. É uma loucura! (…) Deus só existe na nossa cabeça, é o único lugar em que nós podemos confrontar-nos com a ideia de Deus. É isso que tenho feito, na parte que me toca». E no início do seu «Caim» faz uma citação, do que chama «Livro dos Disparates», ou seja, a Bíblia.
Pois na parte que me toca a mim, o meu martírio durou até aos meus quinze anos, altura em que o meu sentido crítico começou a despertar, e cheguei à conclusão de que nada daquilo que me ensinaram sobre as coisas de Deus podia ser verdade. A missa não me dizia nada; comungar ainda me dizia menos; confessar-me, nem pensar, e decidi então acabar com todo o mal-estar que as coisas da Igreja me provocavam.
Procurei um padre franciscano, e com ele desabafei durante umas duas horas, sentados ambos numa pedra, nos claustros exteriores do Convento de Santo António, no alto do Morro com o nome do Santo, no Rio de Janeiro. Contei-lhe as minhas mágoas, os meus temores, as minhas aflições, e principalmente a minha ideia de Deus, que não coincidia com nada do que me haviam dito Dele, até àquele momento. Ele ouviu-me, em silêncio. No final, aconselhou-me a seguir sempre o meu coração e o meu instinto, libertando-me, desse modo, de conceitos religiosos totalmente castradores.
A partir de então, comecei a minha busca de Deus (que durou vários anos) de um modo racional. A Bíblia, tornei a lê-la com outros olhos, muitos anos mais tarde, já adulta, e ao contrário de josé saramago, desta vez, não encontrei, no Velho Testamento, o Deus cruel que me atormentou na adolescência. Mas sim um deus inventado pelos homens que escreveram todas aquelas histórias à medida da conveniência política, moral e social, da época, e de acordo igualmente com a incultura e a mentalidade pouco evoluída de então.
A Bíblia, para mim, deixou de ter o sentido “sagrado” que lhe era (é) atribuído. E já me apeteceu reescrevê-la à luz do meu conceito de Humanidade e de Deus. Por vezes, escrevo textos onde pode ler-se «o que Deus nunca diria».
Hoje, a Bíblia, nomeadamente o Velho Testamento, para mim, e até que algum padre da Igreja Católica consiga explicar, com lógica, o simbolismo de algumas histórias, como a de Caim, não passa de um conjunto de livros, uns mais interessantes do que outros, sem o Deus, no qual eu acredito, dentro. O Deus em que eu acredito não está lá. O Deus do Novo Testamento aproxima-se do Ser Cósmico, da Luz, da Energia, do que se lhe queira chamar, que rege o Universo, e no qual até Einstein acreditava. O que a Ciência não consegue explicar, aí está Deus.
Não considero a Bíblia, como saramago, o «Livro dos Disparates». Ela é, tal como outros livros ditos “sagrados”, um livro escrito, há milhares de anos, por homens com mentalidade pouco evoluída, e deve ler-se como se lêem as tragédias dos grandes autores clássicos gregos. Nem mais, nem menos. Literatura, da qual se gosta ou não se gosta.
Durante a polémica gerada pelas declarações de saramago, vi padres católicos criticarem o autor, na televisão, mas não ouvi nenhum contar a história de Caim como dizem que deve ser interpretada. Que simbolismo terá este primeiro assassinato da Humanidade, com o aval de Deus?
Ocorre-me então uma pergunta: quando se traduziram e juntaram os livros da Bíblia, pensar-se-ia que ela iria ser lida apenas por exegetas? Se não, ou se traduziam os livros de modo a que pudéssemos ler as duas versões (a literal e a simbólica) ou então não se admirem de haver homens com sentido crítico, a denominarem-na «Livro dos Disparates».
«CAIM» – O LIVRO
Ao ler os dois primeiros capítulos de «Caim», confesso que fiquei decepcionada. Ocorreu-me comentar com alguém que saramago havia envelhecido, e com a velhice perdera a criatividade literária que o conduziu ao Prémio Nobel. Entrara em decadência.
Porém, desta vez (ao contrário, por exemplo, do que aconteceu com «Todos os Nomes»), decidi avançar na leitura, até porque ainda não tinha chegado propriamente à história de Caim. E continuava curiosa. Foi então que me surpreendi. Apesar de não ter os atributos criativos d’ «O Evangelho Segundo Jesus Cristo», a narrativa começava a interessar-me.
Dir-se-ia que josé saramago teve a ideia de escrever sobre o tema, e ainda não o tinha bem elaborado, quando começou a passá-lo para o papel; só ao cabo de algumas páginas, deixando-se conduzir pelas palavras, ei-lo no caminho da verdadeira narrativa saramaguiana.
Devo dizer que achei o livro muito interessante, exceptuando os primeiros dois capítulos, como já referi (o que considerei um autêntico despropósito) e aqui e ali uma linguagem de muito mau gosto, que um laureado com o Nobel não deveria utilizar (no meu entender, claro). A Língua Portuguesa é demasiado rica em palavras e expressões que podem descrever de um modo subtil e lírico, o que nem sempre é delicado e romântico. E a arte de quem escreve também está no modo como descreve determinadas cenas, eventualmente chocantes, tornando-as aprazíveis aos sentidos. Uma poça de água choca pode tornar-se quase um lago, se lhe chamarmos um charco.
Para finalizar, tenho duas observações a fazer: a primeira é que, afinal, interpretei a história de Caim, tal como saramago – literalmente – nem as Bíblias anotadas conseguem explicar o sentido daquela história, de modo a que satisfaça as mentes pensadoras e com sentido crítico; a segunda, é que ao ler o «Caim» de saramago, cheguei à conclusão de que não fora as declarações que o autor fez publicamente sobre a Bíblia, o livro passaria quase despercebido. É interessante, mas não josé saramago no seu melhor.
* Uma vez que no livro «Caim», o autor utilizou letras minúsculas para escrever os nomes das personagens, deduzi que talvez não goste que se utilize letras maiúsculas para escrever o seu próprio nome, daí ter optado por escrevê-lo também em minúsculas.