Copyright © Isabel A. Ferreira 2009
Corre uma brisa ligeira junto a este riacho de águas mansas… (Gerês)
Corre uma brisa ligeira junto a este riacho de águas mansas, em cujas margens me encontro recolhida na companhia do ser exótico, meu companheiro das horas que passo fazendo o tempo passar.
Ali, mais adiante, naqueles rochedos, por entre os quais a hábil Mãe Natureza teceu as mais belas e pequeninas folhagens, dormem ao sol, descontraídos, alguns lagartos verdes e ratos da beira-rio.
À nossa volta respira-se harmonia, e a vivência entre os seres que nestas paragens coabitam: pássaros, formigas, borboletas, peixes, árvores, águas, flores silvestres, arbustos, dá-nos uma noção do equilíbrio que não encontramos entre o racional homo sapiens, aquele que descobriu que os rios correm para o mar, no dia em que um deles caiu à água e uns quilómetros mais adiante se viu nos braços de uma sereia, a qual lhe comeu o cérebro, transformando-se ela num imortal ser alado que abandonou as profundezas do oceano e ascendeu às alturas eternas, e ele num poderoso e arbitrário governante de povos.
E esta, supõe-se, foi a origem da primeira de todas as tradições que desde o início dos tempos se enraizaram nos usos e costumes das gentes do nosso planeta. Quando um homo sapiens pretendia governar, atirava-se ao rio e deixava-se deslizar pelas suas águas até ao grande oceano, onde sabia haver uma sereia sempre ávida de lhe comer o cérebro, para o tornar todo-poderoso e, desse modo, poder manter os povos sob o seu domínio.
Esta incrível história foi-me contada pelo ser exótico que sabe tudo sobre tradições. Claro que, com o passar dos tempos, as técnicas foram se requintando, e hoje, quem quer governar já não se atira ao rio, para que mais adiante, em pleno oceano, uma sereia possa comer-lhe o cérebro, até porque esta começou a ser considerada uma prática demasiado primitiva e consequentemente, dispensável, tendo-se abandonado por completo. Hoje, aplicam-se métodos menos líricos, quiçá mais sofisticados, mas que têm o mesmo efeito e conduzem ao mesmo fim: o poder pelo poder.
— Quer ouvir a história da mais curiosa de todas as tradições conhecidas? – pergunta-me o ser exótico, enquanto se acomoda entre a folhagem de um abeto.
Respondi-lhe que sim.
— Ouça-a então:
No início dos tempos, quando as sociedades existentes eram dominadas por animais falantes e inteligentes, e o homo era apenas um homo entre espécies muito mais evoluídas, uma das tradições dessas comunidades, que de primitivas nada tinham, comparadas com as sociedades exterministas dos nossos dias, consistia em, por ocasião da Lua Nova, três valentes touros mostrarem a sua arte acrobática, usando três dos mais corpulentos homos da vizinhança, numa arena própria para este género de espectáculo, muito apreciado pelos animais daquela época.
O recinto enchia-se. Um vozeio estranho ouvia-se a léguas de distância, porque a excitação era muita. À hora marcada, ou seja, no pino do sol, o galo mais distinto de entre todos os galos, democraticamente eleito para o efeito, soltava um cocorocó de um só fôlego, e este era o sinal para se abrirem as portas do recinto onde religiosamente se mantinham, com todo o respeito que mereciam, os homos que seriam lidados naquele dia.
Da entrada principal da arena, saíam então os três touros. Magníficos. Lindos. Com olhos cor-de-mel. Garbosos. Bem alimentados. Pelo negro, lustroso. E as ovações às suas figuras imponentes constituíam um verdadeiro delírio!
O espectáculo começava. Depois de saudarem com uma respeitosa vénia (delicadeza própria dos grandes seres) os homos escolhidos para aquela tarde, os touros tentavam equilibrá-los ora sobre os membros dianteiros, ora sobre os de trás, ora sobre o nariz, ora sobre o dorso, num espectáculo com paralelismo nos actuais números circenses de equilibrismo e malabarismo. Por fim, ganhava o touro que mais tempo sustentasse um homo e mais destreza e habilidade mostrasse nessa lide. Por outro lado, era desclassificado aquele que, inadvertidamente, de algum modo, ferisse o homo. O prémio consistia unicamente na atribuição do título Notável, que manteria até perdê-lo para outro Notável.
A plateia vibrava com tal demonstração de perícia e mansidão perante o homo, agreste, que normalmente tudo fazia para resistir com valentia. Era, de facto, um espectáculo emocionante e único. Um mero e inofensivo entretenimento, para saudar a ascensão da Lua Nova.
Com o passar dos tempos, contudo, virou-se o feitiço contra o feiticeiro. Os homo, minados pelo ódio que dedicavam secretamente aos outros seres, foram desenvolvendo sociedades paralelas mais sofisticadas do que a dos outros animais, introduzindo-lhes um instrumento fundamental que lhes assegurou definitivamente a supremacia sobre todas as outras espécies, incluindo o próprio homo: armas de todo o género e calibre. Aliás, diga-se, que a sua “valentia” assenta até hoje, inteiramente nas armas. Sem elas o homo é a mais cobarde de todas as criaturas, sendo incapaz de se impor unicamente pela inteligência superior que diz possuir.
E um dia houve em que decidiram inverter o jogo: na mesma arena começaram os homo, agora chamados homens, a fazer acrobacias sobre valentes touros. E assim da original homocatapsia, passou-se à primitiva taurocatapsia, que, como sabe, era uma espécie de tourada que se realizava em Creta e que consistia em fazer acrobacias sobre os touros.
Contudo, ao contrário dos touros, que sempre respeitaram a inferioridade do homo, este, ávido do sangue vivo daqueles magníficos seres (e quanto mais magníficos, mais catártico seria o espectáculo) começou a utilizar farpas que rasgavam as carnes, fazendo jorrar o sangue dos animais, pela arena. Os touros, cujas entranhas são em tudo semelhantes às dos homens, tentavam defender-se como podiam, e mediam forças num plano absolutamente díspar. Covardemente, numa luta desigual, os homens utilizavam as tais armas, que foram evoluindo de farpas a espadas bem afiadas. E contra armas tão mortais o que poderiam fazer os bravos touros desarmados? Morrer em lenta agonia, com o corpo dilacerado, rasgado, trespassado, e quase sem sangue que os mantivesse de pé. De facto, assistia-se a um espectáculo absolutamente caótico, deplorável, primitivo, sanguinário, deprimente, lamentável, onde a cobardia, a pequenez e a mesquinhez dos homens eram mostradas em toda a sua plenitude, para gáudio dos espectadores, ávidos de sangue, quais vampiros insaciáveis.
— Sei do que fala, meu amigo. De facto, trata-se de uma prática que, em nome da civilização, da humanização, da cultura culta e da evolução da mentalidade e do comportamento humanos, já deveria ter sido banida há muito. Mas pelo que sabemos, ainda a temos enraizada entre nós, em pleno início do terceiro milénio de uma era dita cristã! – respondi-lhe com amargura.
Quanta barbárie a juntar a tantas outras ainda em vigor!...
E burburinhando, para não ferir o silêncio, na margem deste riacho de águas mansas, a nossa tarde amena à beira-rio foi manchada pela imagem de sangue jorrando das carnes rasgadas dos magníficos touros, nossos companheiros de percurso, na aventura da vida, neste planeta que a uns pertence tanto quanto aos outros!