Um texto de Artur Soares, para reflectir a existência humana, o que fomos, para onde nos levam, o que dizer diante do inevitável fim do nosso percurso terreno. Valeu a pena?... (Isabel A. Ferreira)
***
Escrevi um dia que “os sonhos nocturnos, são como o vento: mal se sabe donde vêm nem porque surgem. Mas todos os sonhos são lícitos, se for para progredir, crescer e tornar os outros felizes. Não o sendo, os sonhos são fantasia, vazio ou frustração”.
E um dia destes, tive um sonho fora do vulgar!
Alguém me chamou e convidou para um passeio.
Sem poder oferecer resistência, fui.
Então, respondendo várias vezes “já vou, já vou”, senti-me a levitar. Subindo, subindo sempre, pude apreciar as torres das cidades, igrejas monumentais, o verde e o loiro de certas zonas e verifiquei que a paisagem, vista do alto, é um espectáculo sem igual!
Continuando a subir, vi o mar, esse “chão azul” sem igual, bem como os golfinhos que picavam o plano das águas marinhas, a respirar. De seguida, entrei por sobre as nuvens e concluí, que me dirigia para oriente, revendo a África, essa estouvada e sedutora terra que parece hipnotizar até, os que nunca tiveram alma cigana.
Por fim, já bem longe e bem alto, levitando pelos céus sem fim, alguém, de tapete branco nas mãos, obrigou-me a parar e, segurando-me, disse:
–Vais na direcção do Reino dos Céus. Como te justificas para transpor a Divina Porta?
– Bom, Anjo meu. Não estava nos meus planos encontrar-me contigo tão cedo. Uma vez que o percurso está feito e para trás não se pode voltar, muito posso contar e pouco me posso justificar.
– Devo dizer-te Anjo meu, que a minha infância foi desprovida de suficientes agasalhos no frio e a qualidade era precária. De alimentos, saboreei alguma mercearia, hortaliça e, as quantidades ainda hoje, penso que eram insuficientes. Daí, ter tido várias vezes o desejo de roubar algo mais para comer. E devo confessar-te também, que muitas vezes senti desejos de uma banana ou de um pouco de carne e, possível, só uma vez de vez em quando.
– Cresci na confusão e no labirinto de homens velhacos e loucos: meninos, batiam-me porque eram ricos, mais velhos ou mais atléticos que eu. Os adultos reprimiam-me, porque tudo era mal feito, queixavam-se; como adolescente, fui traquina, teimoso e, sempre em desfavor dos companheiros, perspicaz.
– Como jovem e a caminho de adulto, namorei imenso, amei pouco e menti muito mais; fui calculista, estoira-vergas, malicioso, e pratiquei a maledicência, principalmente contra os “escolhidos” pelo meu Senhor. –
Também Anjo meu participei numa guerra, não como mercenário - que são a diarreia dos prepotentes - mas obrigado. Embora não visse sentido nessa guerra, tão distante do meu país, como autoridade no terreno, nem sempre fui justo e nem sempre obedeci.
–Esbanjei sem tréguas e sem necessidade forças físicas e, fui por vezes, prepotente e desinteressado dos problemas, das lágrimas e da fome dos outros. Nessa guerra, talvez tenha matado, uma vez que os homens que me estavam confiados apareciam mortos também.
– A seguir, Anjo meu duvidei dos meus familiares, dos meus amigos, de quase todos os homens e tornei-me jactante, individualista e, até perdi a Fé!
– Nestes últimos anos, paciente Anjo, andava a sentir-me confuso, sem fé alguma nos homens, com medo de todos: uns, porque não cumpriam (nem cumprem ainda hoje) os direitos dos homens; não sentiam (nem sentem ainda) respeito e amor pela humanidade; outros roubavam (e roubam), eram (e são) mentirosos, egoístas, vaidosos, vingativos, falhados que sugavam (e ainda sugam), traidores, invejosos.
– E ainda conheci e conheço os avarentos, os burocratas, os imbecis, os madraços, os cobardes, os homens de alma desabitada, os loucos, os perversos e tantos outros que brincam com a saúde e os direitos daqueles que estão permanentemente sob a alça do seu (deles) ponto-de-mira. –
Assim, Anjo meu – paciente Anjo – também fui vítima de muitos: roubado no “Ter” e no “Ser”. Fui excluído da cultura, da educação e, de certo modo, das profissões que sonhei ter, entre outras coisas.
– Desta forma me moldaram e me trataram os homens que vivem lá em baixo! Finalmente, Anjo do meu Senhor, queria afirmar-te que, na vida, sempre caminhei devagar, é certo, mas nunca parei. Andei sempre atento, rindo e chorando, mas sem nunca negar ou trair o meu país como alguns fizeram e disso hoje se ufanam.
– Ultimamente procurei conhecer melhor o meu Deus e, fruto desses conhecimentos, dei-me aos outros sem olhar a classes ou raças: dos que tive conhecimento e soube estarem moribundos, a quase todos visitei; sempre que vi necessário, dei algum do meu pouco pão; quando se juntaram dois fatos no armário e um ficou disponível, eu próprio o coloquei aos ombros do nu.
– Portanto, Anjo que me segues e interrogas, assim me apresento ao meu Senhor, que nestes últimos anos segui, servi e amei com todas as forças dos meus membros, com todo o sangue das minhas veias e com toda a força da minha capacidade intelectual.
– Que o Imperador do Céu e da Terra – continuei – me não veja como totalmente imperfeito, mas sofredor também e que Sua Mãe interfira, de forma que premeie este débil, humilde, mas convicto seguidor.
Ecce homo, Anjo meu!
Continuando a subir, vi o mar, esse “chão azul” sem igual, bem como os golfinhos que picavam o plano das águas marinhas, a respirar. De seguida, entrei por sobre as nuvens e concluí, que me dirigia para oriente, revendo a África, essa estouvada e sedutora terra que parece hipnotizar até, os que nunca tiveram alma cigana.
Por fim, já bem longe e bem alto, levitando pelos céus sem fim, alguém, de tapete branco nas mãos, obrigou-me a parar e, segurando-me, disse:
-Vais na direcção do Reino dos Céus. Como te justificas para transpor a Divina Porta?
– Bom, Anjo meu. Não estava nos meus planos encontrar-me contigo tão cedo. Uma vez que o percurso está feito e para trás não se pode voltar, muito posso contar e pouco me posso justificar.
– Devo dizer-te Anjo meu, que a minha infância foi desprovida de suficientes agasalhos no frio e a qualidade era precária. De alimentos, saboreei alguma mercearia, hortaliça e, as quantidades ainda hoje, penso que eram insuficientes. Daí, ter tido várias vezes o desejo de roubar algo mais para comer. E devo confessar-te também, que muitas vezes senti desejos de uma banana ou de um pouco de carne e, possível, só uma vez de vez em quando.
– Cresci na confusão e no labirinto de homens velhacos e loucos: meninos, batiam-me porque eram ricos, mais velhos ou mais atléticos que eu. Os adultos reprimiam-me, porque tudo era mal feito, queixavam-se; como adolescente, fui traquina, teimoso e, sempre em desfavor dos companheiros, perspicaz.
– Como jovem e a caminho de adulto, namorei imenso, amei pouco e menti muito mais; fui calculista, estoira-vergas, malicioso, e pratiquei a maledicência, principalmente contra os “escolhidos” pelo meu Senhor. –
Também Anjo meu participei numa guerra, não como mercenário - que são a diarreia dos prepotentes - mas obrigado. Embora não visse sentido nessa guerra, tão distante do meu país, como autoridade no terreno, nem sempre fui justo e nem sempre obedeci.
– Esbanjei sem tréguas e sem necessidade forças físicas e, fui por vezes, prepotente e desinteressado dos problemas, das lágrimas e da fome dos outros. Nessa guerra, talvez tenha matado, uma vez que os homens que me estavam confiados apareciam mortos também.
– A seguir, Anjo meu duvidei dos meus familiares, dos meus amigos, de quase todos os homens e tornei-me jactante, individualista e, até perdi a Fé!
– Nestes últimos anos, paciente Anjo, andava a sentir-me confuso, sem fé alguma nos homens, com medo de todos: uns, porque não cumpriam (nem cumprem ainda hoje) os direitos dos homens; não sentiam (nem sentem ainda) respeito e amor pela humanidade; outros roubavam (e roubam), eram (e são) mentirosos, egoístas, vaidosos, vingativos, falhados que sugavam (e ainda sugam), traidores, invejosos.
– E ainda conheci e conheço os avarentos, os burocratas, os imbecis, os madraços, os cobardes, os homens de alma desabitada, os loucos, os perversos e tantos outros que brincam com a saúde e os direitos daqueles que estão permanentemente sob a alça do seu (deles) ponto-de-mira. –
Assim, Anjo meu – paciente Anjo – também fui vítima de muitos: roubado no “Ter” e no “Ser”. Fui excluído da cultura, da educação e, de certo modo, das profissões que sonhei ter, entre outras coisas.
– Desta forma me moldaram e me trataram os homens que vivem lá em baixo! Finalmente, Anjo do meu Senhor, queria afirmar-te que, na vida, sempre caminhei devagar, é certo, mas nunca parei. Andei sempre atento, rindo e chorando, mas sem nunca negar ou trair o meu país como alguns fizeram e disso hoje se ufanam.
– Ultimamente procurei conhecer melhor o meu Deus e, fruto desses conhecimentos, dei-me aos outros sem olhar a classes ou raças: dos que tive conhecimento e soube estarem moribundos, a quase todos visitei; sempre que vi necessário, dei algum do meu pouco pão; quando se juntaram dois fatos no armário e um ficou disponível, eu próprio o coloquei aos ombros do nu.
– Portanto, Anjo que me segues e interrogas, assim me apresento ao meu Senhor, que nestes últimos anos segui, servi e amei com todas as forças dos meus membros, com todo o sangue das minhas veias e com toda a força da minha capacidade intelectual.
– Que o Imperador do Céu e da Terra – continuei – me não veja como totalmente imperfeito, mas sofredor também e que Sua Mãe interfira, de forma que premeie este débil, humilde, mas convicto seguidor.
Ecce homo, Anjo meu!
– Bom, caro peregrino dos mares e dos céus – interrompeu o Alguém do Tapete branco. Por mim, julgo-te justificado e aproxima-te da Porta que pretendes, pois...
E com esta última palavra “pois”, do Anjo meu, acordei e foi maravilhoso ter acordado a sorrir.
(Artur Soares)
(O autor não segue o acordo ortográfico de 1990)