Terça-feira, 26 de Maio de 2009
Copyright © Isabel A. Ferreira 2009
Foi com o máximo interesse que tudo o que respeita à História de Portugal e nomeadamente a Biografias me desperta, que li o livro de Luísa Viana de Paiva Boléo – «D. Maria I – A Rainha Louca», editado pel’A Esfera dos Livros (edição de Fevereiro de 2009), um livro interessante, repleto de pormenores, bem contextualizado, que nos dá um conhecimento alargado de um período da nossa História, marcado por quatro monarcas portugueses (D. João V, avô de Dona Maria I; D. José, seu pai, a própria D. Maria e D. João VI, seu filho) que, exceptuando o despotismo mais acentuado de D. José (talvez por influência do prepotente Marquês de Pombal, seu ministro) deixaram uma obra considerável, colocando Portugal ao nível dos demais reinos europeus, em quase tudo.
Penso que livros como este são extremamente importantes para que os Portugueses comecem a conhecer melhor a nossa História e as nossas figuras históricas, mesmo sendo à margem da escola, uma vez que na escola, quem manda nestas coisas, teve a infeliz ideia de retirar dos programas o estudo de tudo o que é importante saber sobre Portugal e os Portugueses de outros tempos, que ajudaram a edificar um país, que só não é grande, hoje, porque os que vieram depois dos antigos não souberam interpretar a modernidade, destruindo o que entenderam ser “valores reaccionários” para introduzir na sociedade portuguesa valores importados, ainda mais reaccionários e que não servem os verdadeiros interesses do povo português.
Por esse motivo, Portugal, hoje, não tem a importância que já teve no mundo, porque os seus governantes, a partir da implantação da República, pouco ou nada fizeram de relevante, para que o nome de Portugal fosse reconhecido desde o Cabo da Roca ao extremo mais oriental do planeta, e o pouco que realizaram ficou para a História envolto numa auréola negativa.
Afinal derrubara-se a monarquia com a finalidade de mudar as “políticas despóticas dos reis”, e o que aconteceu foi uma I República muito atribulada, onde as classes mais desfavorecidas continuaram a ser desfavorecidas; seguindo-se uma ditadura e um “Estado Novo” com ideias velhas; depois uma vergonhosa Guerra do Ultramar; e mais adiante uma Revolução dos Cravos, na qual se colocou todas as esperanças de uma democracia democrática, e o que temos hoje? Um regime autoritário pouco esclarecido, que arrasta Portugal para o caos, por falta de lucidez política.
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Retomando o livro de Luísa Boléo, a sua leitura impôs-me várias perplexidades, e uma delas, a que mais me marcou, foi a do cognome Rainha Louca, que a autora utilizou por diversas vezes, do início ao final do livro.
Rainha Louca porquê?
O povo cognominou-a de Piedosa. Era também Majestade Fidelíssima, título que herdou do seu avô D. João V, atribuído, pelo Papa Bento XIV, àquele monarca e aos seus descendentes.
Dona Maria Francisca, Princesa da Beira, nasceu a 17 de Dezembro de 1734; começou a reinar em 1777; em 1792, manifestou-se pela primeira vez a sua instabilidade mental; em 1799, devido ao agravamento da sua doença mental, seu filho D. João (que veio a ser o VI) tornou-se Regente do Reino; Dona Maria morre em 1816.
Reinou durante 15 anos, e a obra que deixou não foi a de uma rainha louca. Pelo contrário, reinou com muita lucidez, e quando essa lucidez se esvaeceu, foi sabiamente afastada da governação.
Dito assim, Rainha Louca, dá-me a sensação de que fomos governados por alguém que não estava na posse das suas faculdades mentais. O que não é verdade. Por esse motivo, não considero apropriado esse cognome. É manchar a memória de uma Rainha, que foi piedosa, e nem mais nem menos devota do que todas as outras rainhas europeias, ou damas da corte ou senhoras fidalgas, ou da burguesia ou até do povo, porque, na verdade, a instituição Igreja, com sede em Roma, estava de tal modo enraizada na vida e na política dos reinos, que praticamente era ela que “reinava”, espalhando entre as almas, o medo dos infernos tenebrosos, e apresentando um Deus mais para ser temido do que amado.
Daí pensar que determinadas “loucuras” daquela época não tinham o sentido que hoje lhe damos, à luz da psiquiatria. Dona Maria I era uma mulher extremamente sensível, delicada, dada às artes, de gostos refinados, e influenciável pelas manigâncias do clero que rodeava a corte, não só a corte portuguesa e a nossa Rainha, mas todas as cortes, todas as rainhas e reis de reinos onde a Religião Católica estava implantada. É provável que a “loucura” da rainha hoje tivesse outra leitura. O medo, por exemplo, pode levar a estados delirantes, que facilmente podem confundir-se com “loucura”. E Dona Maria I era uma mulher de medos, infligidos, nomeadamente pelo seu confessor, o bispo do Algarve, D. José Maria de Melo.
Naquele tempo, além dos reis e rainhas, reinava também o medo. Por isso, não considero apropriado ligar ao nome de Dona Maria I, o epíteto Rainha Louca. Aliás, no livro de Luísa Boléo, quando esta cita determinadas fontes da época, achei curioso o facto de nenhuma dessas fontes se referir a Dona Maria como a Rainha Louca. Essa será uma denominação posterior, atribuída, talvez, pelos seus “inimigos”.
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Uma outra pequena reflexão que me ocorreu ao fazer a leitura deste livro, foi sobre o que os anti-monárquicos criticam, por exemplo, no que respeita à faustosa corte de D. João V (conhecido como o Rei Sol português), semelhante em tudo às outras faustosas cortes europeias, esquecendo-se aqueles de que os governantes portugueses actuais usufruem dos ainda faustosos Palácios desses tempos, tais como o das Necessidades (mandado construir por aquele monarca, e que após a proclamação da República, tornou-se a sede do Ministério dos Negócios Estrangeiros, função que continua a desempenhar até aos dias de hoje); o da Ajuda, o de Queluz, o de Belém, enfim, poderiam abdicar dessas reminiscências monárquicas e irem instalar-se em edifícios mais ao jeito republicano ou democrático. Mas o que é bom é bom. E o que é belo é belo. Como podemos abdicar disso?
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E a leitura prossegue agradável, com muita informação acerca das realizações dos nossos monarcas, e de entre elas, uma iniciativa que foi abandonada, o que só demonstrou da parte dos governantes posteriores à monarquia, uma má medida e falta de visão, porque um país sem Cultura é um país à deriva. Refiro-me à questão do Mecenato, da protecção às Artes e às Letras, às Ciências, e a paixão pela música. Os nossos reis tinham esse requinte: o gosto pelas coisas belas.
Luísa Boléo refere na sua obra que «a Rainha Dona Maria I deu particular impulso à publicação de obras de autores portugueses…na linha editorial de seu avô Magnânimo (D. João V).
Enfim, a protecção às Artes e às Letras e Ciências ficou patente nos inúmeros apoios que os escritores, poetas, artistas plásticos, cientistas e músicos da época usufruíam, por parte dos monarcas.
Comparado com os tempos actuais, não haverá um só escritor, poeta, pintor, cientista ou músico português desapadrinhado (isto é que não tenha “padrinhos” bem posicionados) hoje, que gozem do apoio do Governo para poder sobreviver. Nem sequer existem leis que protejam os seus direitos, quando os editores decidem não cumprir os contratos que com eles assinam, chegando-se ao descalabro total.
E os nossos grandes das Artes e das Letras e das Ciências, só são grandes e reconhecidos no estrangeiro. E a lista é bem grande.
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Antes de terminar, preciso de fazer um reparo à Luísa Boléo. Na página 288, refere a certa altura: «… não permitiam que o anafado D. João (o VI) se aventurasse em significativas histórias de “saias”».
Nesta frase o que me interessa fundamentalmente é o termo “anafado”. Tal como contestei na minha Contestação ao livro «1808», os epítetos descorteses com que o jornalista brasileiro Laurentino Gomes brindou o nosso D. João VI, aqui também contesto o facto de Luísa Boléo se referir a D. João como o “anafado”. As características físicas dos governantes, sejam elas boas ou más, ou sejam eles bons ou maus governantes, não devem servir para os designar.
Não importa se são gordos, feios, coxos, magros, belos, loiros, de olhos azuis. O que interessa é o que fazem pelo país que governam. E D. João VI, depois de tão amesquinhado por historiadores provavelmente anti-monárquicos ou preconceituosos, está agora a ser reabilitado, e muito bem, pois na sua governação D. João saiu-se muito melhor do que esses que o criticaram, e dos muitos que já nos governaram depois dele.
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Finalmente uma crítica à editora: é completamente inadequado colocarem as notas de rodapé, no final do livro. A leitura de um livro deve ser prazeirosa, e ter de andar “lá e cá” a ler as notas de rodapé, num lugar que não é o rodapé, é uma prática impraticável, e que eu me recuso a praticar. Por isso, não sei do que falam essas Notas.
Mas deu-me muito prazer ler o livro.
Isabel A. Ferreira
Segunda-feira, 18 de Maio de 2009
Copyright © Isabel A. Ferreira 2009
Portugal tem tudo, e é sobretudo belo…
(Vista do alto do Castelo de Belver)
Depois de um texto reflexivo sobre a espiritualidade, tão arredada dos tempos que correm, em que para as pessoas é mais importante o ter e o parecer do que o ser, hoje proponho uma reflexão sobre o poder que o dinheiro exerce sobre determinadas pessoas que, para a ele chegar, perdem o respeito por si próprias, o mais pernicioso dos desrespeitos – pois quem não se respeita a si próprio, como poderá respeitar os outros?
Hoje, os escândalos económicos são o prato do dia, dos noticiários. E não estou a falar dos ladrõezinhos que assaltam lojas, bancos, ourivesarias, supermercados, bombas de gasolina para, por vezes, roubarem, umas ninharias, acabando por destruir vidas, em nome de uma sobrevivência desprezada pelas sociedades consumistas e pelos próprios governantes, que por aí exibem os seus excessos, provocando um ódio latente naqueles que vivem no charco – e todos querem ter, merecem ter, precisam de ter o direito a, pelo menos, comer, beber água potável, vestir, calçar, viver debaixo de um tecto, ter acesso à saúde, ao ensino, a um emprego…
Mas sempre foi assim, dizem alguns. Até a Jesus Cristo é atribuída a expressão: Pobres sempre os tereis entre vós. Sim, porém, esta é uma outra questão, e ter-se-ia de percorrer caminhos místicos para explicar o sentido destas palavras.
Não é isso que pretendo.
As notícias de crimes económicos e ladroagem a alto nível caem entre nós como bombas, e como qualquer bombardeio, este também provoca, nas sociedades, grandes danos, essencialmente morais, de descrédito total naqueles que tinham o dever de manter o equilíbrio económico no mundo, para que todos os povos pudessem comer, beber água potável, vestir, calçar, viver debaixo de um tecto, ter acesso à saúde, ao ensino, a um emprego…
Toda esta ebulição criminosa acontece porque a tentação de enriquecer (seja de que maneira for) torna-se irresistível a determinado tipo de mentalidades. O poder que o dinheiro exerce sobre essas pessoas é indescritível. Para elas o chamamento do vil metal significa uma autêntica vocação, e vivem em função disso, como se o dinheiro fosse o seu deus e tudo comprasse.
É bem verdade que se eu quisesse aprofundar a teoria de que o “dinheiro compra tudo”, tinha muito que contar, pois são conhecidos inúmeros casos (alguns deles de extrema gravidade) onde o dinheiro permite calar ou falar demais; possibilita apressar ou retardar determinados processos (conforme as conveniências); faculta prestar falsos testemunhos para livrar uns e prejudicar outros; facilita a ocultação de crimes graves; faz destruir bens e pessoas; permite “esquecer” papeladas no fundo das gavetas ou colocá-las em cima das mesas para “despacho” imediato; ajuda a ficar-se cego, surdo e mudo diante de situações de extrema gravidade, enfim, o dinheiro pode, na verdade, comprar muita gente e muita coisa, porque é vã a ilusão de que uns tostões ou uns milhares a mais fazem a felicidade do homem.
Esquecem-se, porém, esses que assim pensam, que o dinheiro não compra bens da natureza de uma consciência tranquila (se bem que é provável que, esses, não tenham consciência).
Além disso, há outra situação a considerar: mais dia, menos dia, a verdade vem ao de cima e o “belo palácio de cristal” construído com dinheiro sujo, vem abaixo, e depois, não é a vergonha que conta (pois geralmente as pessoas que se dão a certos negócios escusos, para obterem dinheiro, não sabem o que é vergonha), mas a pobreza moral a que ficam reduzidos (o que também pouco lhes importará, certamente!)
Eu, pessoalmente, por motivos óbvios e até por experiência própria, não acredito na justiça dos homens, pois estes também têm as suas fraquezas e os seus julgamentos podem ser falíveis por falta de competência. Contudo, há uma justiça que não falha nunca: a da vida, da providência, e nessa, acredito cegamente, porque já vi muitos barões do crime elegante, caídos no chão, como tordos abatidos.
É tudo uma questão de tempo.
Como diz Miguel de Cervantes: «Deus suporta os maus, mas não eternamente». Mais tarde ou mais cedo os que transgridem as regras de uma sã vivência em comunidade, serão punidos pela própria vida, e essa será, então, a maior e mais justa das punições.
Sempre foi assim, desde os princípios dos tempos (e disso temos inúmeros exemplos na História da Humanidade – já me dei ao trabalho de o confirmar) e assim continuará a ser, a não ser que os homens tivessem a capacidade de aprender com os erros do passado, ou com os erros dos outros. Mas falta-lhes essa capacidade. Por isso, perdem-se na noite tenebrosa dos crimes, com a convicção de que ficarão impunes.
Sem pretensão alguma de ser moralista, devo dizer que apesar de a justiça portuguesa ser benevolente para com os criminosos (entenda-se aqueles que cometem crimes contra o povo, porque os que cometem crimes contra os poderosos ou contra o Estado são punidos severamente), o crime nunca compensa.
Querer ter dinheiro não constitui propriamente um crime. Afinal precisamos dele para obtermos o que consideramos ser essencial para a nossa sobrevivência.
Crime é querermos enriquecer à custa dos outros, violando as mais elementares regras dos Direitos Humanos. E por aí, existem casos verdadeiramente escandalosos, mas há quem tape os olhos para não os ver, tape os ouvidos para não os ouvir, e tape a boca para não falar deles.
A nossa esperança está em que, numa qualquer manhã, de um qualquer dia, alguém possa estalar um dedinho, e nas manchetes dos noticiários possamos deparar com novos escandalozinhos, e ver denunciados os “barões” que ainda faltam denunciar, neste nosso País, que não tem culpa nenhuma, de ter governantes que não sabem conduzir o seu destino e colocá-lo entre os pequenos grandes países do mundo.
Afinal, Portugal tem terras aráveis de boa qualidade, tem mar, tem rios, tem florestas, tem sobreiros, oliveiras, vinhas, tem tudo, e é sobretudo belo… Só não tem governantes à altura desse tudo e dessa beleza e com visão de futuro. Os que temos, olham para o seu umbiguinho (que é o longe deles) e dizem: «Que lindo é o meu umbiguinho!»
Deste modo, não vamos a lugar algum!
Isabel A. Ferreira
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Quinta-feira, 7 de Maio de 2009
Copyright © Isabel A. Ferreira 2009
Lá... entre o Bosque e o Riacho, onde Deus vive...
Imagem do Monsterio de Santa María de Oseira (Oseira- Ourense)
Tudo começou com um convite de Manuel Ferreira Lopes*:
«Não gostaria de visitar o Mosteiro Cisterciense de Oseira, em Ourense, entre a montanha dourada dos carvalhais galegos, onde se respira a espiritualidade dos monges brancos que o habitam?»
Não hesitei. Como poderia eu recusar a oportunidade de fugir da selva de cimento e da incivilização que a caracteriza, e embrenhar-me num bosque, algures entre as montanhas, onde os riachos cantam como as aves; onde a vida se renova, em cada madrugada; onde as velhas pedras conservam o segredo dos tempos e a memória dos homens?...
A principal razão desta minha primeira visita a Oseira foi a de contactar a comunidade dos monges brancos e dela dar conhecimento, podendo com isso, despertar, porventura, novas vocações entre os jovens portugueses, para que seja possível activar um mosteiro cisterciense, no nosso país, onde existem tantos mosteiros em ruínas, ao contrário (para não ir mais longe) do nosso país irmão: a Espanha.
Estávamos em 1992.
Gostaria hoje de reviver o Encontro e a Descoberta, que fiz então, pois em tudo (como sempre) pensou Manuel Lopes, ao dar-me a conhecer a existência do Mosteiro de Oseira, cravado nos montes da Galiza.
Falar de Deus ou das coisas de Deus é concebível apenas quando nos abstraímos do mundo materialista tal como ele se nos apresenta hoje: vazio do tão necessário espiritualismo que nos conduz ao Supremo Ser, ao Criador de todas as coisas – visíveis e invisíveis.
Quem ainda não se deu conta de que Darwin começou o estudo da sua teoria da evolução, a partir precisamente do ponto em que Deus deu por terminada a Sua intervenção na criação do Universo?
Esse espiritualismo não o encontro eu nos templos que por aí abundam, onde o mundanismo, o materialismo e um exacerbado consumismo imperam, esvaziando toda a essência divina do sentimento religioso.
Deus, encontrei-O eu em Oseira, no sorriso dos seus monges; na sua simplicidade; na sua bondade; no seu labor de cada dia; nas suas orações; nos seus cânticos gregorianos; nos seus rituais litúrgicos; no seu absoluto despojamento das coisas supérfluas; na vida contemplativa que escolheram viver.
Deus, encontrei-O eu entre as velhas pedras do Mosteiro, resgatado das cinzas pelos próprios monges; nas águas cantantes do riacho que o contorna; no bosque dourado que lhe dá a sombra; nos prados verdes, onde tranquilamente o gado pasta; nas montanhas que o protegem dos ventos agrestes; e do silêncio que nos abraça com ternura.
Na verdade, estes monges cistercienses, afectos a São Bernardo, um dos reformadores da Ordem de Cister, representam os mais preciosos valores de que este nosso mundo conturbado necessita para sobreviver, segundo as regras humanas.
Com eles os crentes fortalecem a sua fé, e os não crentes são seduzidos por uma luz tentadora; pela profunda espiritualidade que deles emana, e por um silêncio que, inevitavelmente, nos catapulta para um mundo que não o terreno.
E foi lá, no seio daqueles monges brancos, entre o bosque e o riacho que, naquele tempo, encontrei Deus, há muito perdido de mim.
♥
Depois de ter assistido ao Ofício de Completas, à hora em que os monges celebram o cair da noite e o fim de um dia de labor, e, solenemente, entoam a Salvé Cisterciense, numa cerimónia que remonta ao Século XIII, colocando nas mãos da Santíssima Virgem o mérito de uma vida de total consagração a Deus; e antes de me recolher, Manuel Lopes, discretamente, levou-me para um canto do claustro e ofereceu-me um pequeno livro, para ler antes de adormecer, com a seguinte dedicatória: «À Isabel Ferreira, esta leitura elegíaca da tranquilidade espiritual que buscamos neste lugar de criativo e dulcificante silêncio…»
Foi então que descobri o poeta Alain Bosquet, no Mosteiro de Oseira, entre o conforto simples, despojado de luxo, da cela n.º 17, envolvida pelo místico silêncio, que aquelas velhas pedras tornam ainda mais misterioso.
«O Tormento de Deus» – assim se chamava o livro de poemas, que tinha entre as mãos, numa edição precisamente daquele ano, 1992, da Quetzal Editores.
Hoje, posso afirmar com grande lucidez, que nenhuma outra leitura poderia ter sido mais oportuna do que esta, àquela hora e naquele lugar. Tão bem o sabia Manuel Lopes!
Deus disse: Se tal vos repugna,
não acrediteis em mim,
mas ficaria feliz
se encontrásseis algum encanto
num ou noutro ser da minha lavra:
o búzio, onde dorme a música,
o plátano, que cresce para lá das estrelas,
o mar, que diz cem vezes: «Eu sou o mar».
Sinto-me muito humilde:
O meu universo não é mais belo
do que um poema perdido.
Eu acabara de descobrir um Poeta.
Um poeta que me falava do tormento de Deus – o ser mais solitário entre todos os seres que Ele próprio criou:
«Estou triste», disse Deus,
«por ter nascido adulto.
Jamais tive uma infância
nem alguma vez me permitiram
a descoberta de um mundo
já formado.
Não encontrei ninguém
a quem dizer: “Bom dia, meu pai!”
Nem “Minha mãe, como é que tem passado?”
Não me sinto sem culpa.
Todos eles – o sílex, a lava, a peónia,
o mosquito, o homem, o zéfiro,
exigiam que eu fosse activo e responsável.
Estou triste:
Falta-me um passado.»
Descobri um Poeta que me falava de um Deus inseguro:
Deus disse: «Entre mim mesmo e eu,
sinto que falta
uma espécie de doçura;
eis porque improviso um colibri,
algum orvalho,
uma ligeiríssima ilha,
um cântico de amor e um sonho intermitente
onde se passeia um outro deus.»
Descobri um Poeta, que ao falar do tormento de Deus, me falava do seu próprio tormento:
O homem queixa-se:
«Tu deste-me um corpo
mais pequeno que o corpo da montanha.
Deste-me um cérebro
com que não posso compreender-me.
Deste-me um coração
que não serve para me aceitar.
Deste-me palavras,
que são um luxo na minha desordem.
Deste-me um deus
o qual não sei quem é, se eu, se tu.»
E foi assim que, num mesmo dia, conheci os monges brancos de Oseira, que me devolveram a crença numa espiritualidade que eu julgava perdida; tive um encontro com Deus, entre aquelas velhas pedras do Mosteiro, rodeadas pelo riacho, o bosque, os prados e a montanha; e descobri um Poeta, no silêncio da cela onde pernoitei.
E o mundo pareceu-me então feito à medida da minha compreensão.
…
Hoje, «O Tormento de Deus» acompanha-me, para onde quer que eu vá.
É um livro de uma erudição belíssima, independentemente de se crer ou não em Deus. A sua leitura serena as nossas inquietações.
O seu tradutor (um excelente tradutor), Jorge Guimarães, diz de Alain Bosquet, na introdução: «A ideia de Deus habita esse espírito tanto no temor, como no ódio, como na indiferença». Bosquet «improvisa, discorre, ironiza, perdoa, comove-se e exalta-se, e tudo na mesma palavra, e tudo no mesmo olhar».
As palavras de Bosquet deslizam serenamente pela nossa alma e diz-nos da dimensão do imensurável… E Deus disse ao seu poeta:
«Eu escolhi-te para que me informes
sobre a minha identidade».
O poeta é travesso: escreve uma palavra,
depois uma segunda, depois risca-as.
Deus mostra-se apressado:
«Diz aos homens como hão-de venerar-me:
criei-te para isso.»
O poeta sorri, escrevendo rosa,
e azul, e tucano,
e silêncio, e deus.
E diz:
«Todas as palavras são intermutáveis.»
Alain Bosquet nasceu na Rússia, antes da Revolução, oriundo de uma família judaica da alta burguesia, imigrado depois em França…
* Manuel Ferreira Lopes, nascido na Póvoa de Varzim, foi Director da Biblioteca Rocha Peixoto, naquela cidade. Um grande homem do Saber e da Cultura, o qual lá… entre o Bosque e o Riacho, onde Deus vive, tal como eu, encontrou o caminho da espiritualidade cisterciense.
E entre o Poeta Alain Bosquet e o Homem de Cultura Manuel Lopes sinto-me aquela que crê e nada sabe, e ama as palavras e com elas traça um trilho em areias movediças, ainda desconhecido…
Isabel A. Ferreira
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