Copyright © Isabel A. Ferreira 2008
Por Juan Luis Lorda(Professor de Antropologia na Faculdade de Teologia da Universidade de Navarra)
«Quem ama a verdade, procura formar a consciência; conhecer os princípios morais, pedir conselho a pessoas rectas e com experiência; não considerar humilhante que nos corrijam.
De facto, os outros observam-nos de fora e com mais objectividade do que nós mesmos. Também é preciso tirar experiência dos próprios actos, examinar-nos com frequência (diariamente) e corrigir os erros.
É preciso ser humildes para reconhecer os erros e rectificar, mas isso dar-nos-á uma grande sabedoria e capacidade de ajudar os outros também.
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A experiência da nossa fraqueza e o reconhecimento de que agimos mal é algo que humilha.
Quando à fraqueza se une o orgulho, o engano pode chegar a extremos patológicos: não se conforma com uma modesta justificação, mas incomoda-se com a verdade, com os que lhe dizem a verdade, ou com os que a vivem.
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Há circunstâncias na vida em que a dignidade humana pode exigir grandes sacrifícios, isto é, heroísmo.
Ninguém tem autoridade moral para exigir de outro um comportamento heróico. Cada um de nós tem essa obrigação, não porque outros lho peçam ou censurem se não o fizer, mas porque as próprias coisas lho pedem; pede-o sobretudo a dignidade humana.
A história de todas as culturas está cheia de gestos exemplares deste tipo, fora do "normal estatístico". Mas estas escolhas podem surgir na vida de todos os homens, em circunstâncias "normais".»
Copyright © Isabel A. Ferreira 2008
Aguardo com ansiedade a visita do ser exótico, o meu misterioso amigo. Prometeu-me vir hoje, logo que no antiquíssimo relógio da torre da Igreja do Senhor do Bom-Fim soe a primeira das 27 badaladas de um tempo que só nós sabemos. Contudo, inesperadamente, o relógio veio instalar-se entre a folhagem do velho embondeiro que vejo agora flutuar no meu jardim, como uma nuvem.
Não é tarde, nem será cedo, talvez! Não sei exactamente da hora. Ouço apenas os estranhos uivos das pedras, aqueles de que enigmaticamente me falara o ser exótico, da última vez que me visitou. Lá nas alturas vejo a lua rasgar os seus véus prateados e despudoradamente desnudar-se diante do mundo, enquanto as estrelas se lançam no espaço, numa atitude aparentemente suicida. Terão o propósito de assustar os anjos? As trevas afundam-se agora nas nuvens, e eu confundo-me com toda esta grotesca cena apocalíptica.
Os uivos das pedras tornam-se cada vez mais lancinantes. O Sol, que a esta hora costuma iluminar o outro lado do mundo, completamente endoidecido, acaba de despedaçar todos os seus raios e deixa-se afundar no Pacífico, queimando as águas deste oceano, que se torna da cor do sangue.
E o meu amigo que não vem...!
Mas ainda não é tarde. Nem será cedo, talvez! Continuo a não saber da hora. Ouço passos. Dlão! A primeira badalada. É ele que chega. A janela! Esqueci-me de abrir a janela.
— Que aconteceu à porta da sua casa?
— Não sei, meu amigo. Simplesmente sumiu. Enquanto eu olhava a Lua rasgando os seus véus prateados, a porta saiu numa desenfreada correria. Pareceu-me ouvi-la dizer qualquer coisa como abrirei a minha mente e não mais a encerrarei...
— O que me diz?!
— Exactamente o que acabou de ouvir, meu amigo.
Na verdade, esta era a chave que abriria a porta do caos. Disse-me o ser exótico. Estava tudo escrito naqueles farrapos que encontrara pendurados nos fios de ovos que as velhas galinhas do galinheiro de ninguém expeliram para dentro de um lindíssimo cálice de ouro.
O meu amigo não tinha qualquer dúvida.
— Um australopiteco nunca se engana – disse – Um australopiteco escreve sempre torto por linhas direitas e ziguezagueando segue o rasto dos cometas que o levam a lugar nenhum. Mas ele não se importa. Afinal, ele é um australopiteco. Nasceu das asas de uma vespa e alimenta-se de estrelas cadentes. É um governante, e os governantes governam sentados, para não se cansarem demasiado, enquanto o povo dorme tranquilamente o sono dos injustos, pois que injustiça maior senão aquela que exorta os governantes a governarem?
O ser exótico vai-me dizendo tudo isto, enquanto que, com algum esforço, entra pela janela, uma vez que a porta da minha casa decidiu simplesmente abandonar-me, para que o caos se instalasse no universo. É isto, meu amigo, é isto que devo deduzir das suas palavras?
O ser exótico não me respondeu imediatamente, porque, entretanto, o Sol que havia despedaçado todos os seus raios, parece arrependido, e, através da nesga de mar que se vislumbra da minha janela, podemos vê-lo juntando, desesperadamente, os estilhaços do seu ser, espalhados pelas águas avermelhadas.
— Observe bem, minha amiga, jamais terá outra visão igual. O Sol reconstrói-se no mar, e a Lua, repare bem, a Lua, envergonhada da sua nudez diante do mundo, pede ajuda aos bichos-da-seda para que refaçam os seus véus prateados. E as estrelas, que apenas fingiram um suicídio colectivo, voltam aos seus lugares. E mais, o relógio que se instalou entre a folhagem do velho embondeiro que, repare, já não flutua no seu jardim, voltou à antiquíssima torre da Igreja do Senhor do Bom-Fim. E a porta da sua casa, veja como tenta encaixar-se novamente nesta parede! Mas foi preciso que as galinhas expelissem aqueles fios de ovos no lindíssimo cálice de ouro, para que o caos se instalasse.
Eis a resposta que, ansiosamente, eu esperava! Afinal, não fora a minha porta a causadora de toda esta anarquia, embora ela tivesse proferido a frase-chave que daria início ao caos: «Abrirei a minha mente e não mais a encerrarei...». Agora sabia, foram os vómitos das velhas galinhas do galinheiro de ninguém, que desencadearam todo este desequilíbrio da Natureza.
— Não se esqueça, minha amiga, é preciso que os australopitecos se alimentem de estrelas cadentes para que o mundo volte ao seu normal. Por isso os luzeiros do céu apenas fingiram suicidar-se.
— Então, e o Sol e a Lua fingiram também? – Pergunto, um tanto incomodada com a minha ignorância.
— Não, esses entraram apenas em colapso. Temporariamente, como pôde observar. São eles os baluartes do tempo. A seu cargo têm os dias e as noites. Porém, mal ouviram os uivos das pedras (o sinal de Deus para que entrassem em autodestruição) nada mais fizeram do que obedecer ao Criador.
Neste momento já não ouvimos os uivos das pedras. Os sons agora são outros. É o vento que passa, sem pressa, serenamente...
— Minha amiga, aproveito esta acalmia para a deixar. Voltarei outro dia. Mas antes de partir quero que atente no que vou dizer-lhe: os australopitecos alimentam-se de estrelas cadentes e o caos humano, em linguagem eterna, escreve-se k ooooos...
Que tarde esta! Sinto que algo escapou aos meus sentidos. Fui protagonista de um estranho fenómeno, e o meu amigo partiu sem me explicar o que realmente se passou. Não endoideci, com certeza. Visionaria, na verdade, o k ooooos descrito naqueles farrapos pendurados nos fios de ovos que as velhas galinhas do galinheiro de ninguém verteram no cálice de ouro?...
Isabel A. Ferreira
Copyright © Isabel A. Ferreira 2008
Excertos do monólogo teatral dedicado a Xanana Gusmão
3.º Prémio CITAC/2000
CENÁRIO
Pano de fundo negro. Uma mesa e uma cadeira a um canto do palco. Em cima da mesa alguns papéis espalhados.
VOZ-OFF
Respeitável audiência! Iremos assistir a uma peça de teatro, em um único acto, protagonizada apenas por uma actriz em palco, a qual interpretará uma sobrevivente num mundo onde uma minoria poderosa desgoverna e desmanda, enquanto a maioria assiste.
Trata-se da encenação do conflito existencial de uma mulher inquieta e inquietante, que não se verga facilmente, e nunca diante desses poderosos. Implacável com os cobardes, abomina a injustiça, a violência, a mentira e a perversidade, como se verá. A palavra escrita é o seu mundo.
É isto e algo mais que a actriz... (refere-se aqui o nome da actriz que interpretará Jerónima) vos proporcionará, num espectáculo efémero, como efémera é a esperança dos sobreviventes.
Trajando uma saia comprida e uma túnica pretas, e nos pés umas sandálias também pretas, cabelo preso numa longa trança, que lhe cai pelas costas, a personagem entra em cena, segurando uma carta na mão, e encaminha-se, sem pressa, até à boca do palco. Lança um olhar calmo à assistência, e sorrindo subtilmente, a ela se dirige.
JERÓNIMA
(com amabilidade e determinação)
Querido público, obrigada por terem vindo.
Permitam que me apresente. Para já basta dizer que o meu nome é Jerónima. O resto virá a seu tempo.
Creio saber o que vos trouxe até aqui.
(mostrando a carta)
Foi esta carta, eu sei. Escrevi-a exclusivamente para vós. Aliás, devo dizer-vos que ultimamente escrever cartas tem sido a minha sina.
(encaminha-se até à mesa e remexe os papéis que lá se encontram)
Já escrevi para cima de uma centena delas, a várias pessoas: umas conhecidas, outras desconhecidas, umas importantes, outras desimportantes mas todas com uma curiosa particularidade em comum: nenhuma dessas pessoas jamais respondeu às minhas cartas.
Houve tempos, em que eu abominava escrever cartas. Costumava dizer: «Prefiro preencher, de alto a baixo, todas as páginas de uma centena de jornais, do que escrever uma só carta!»
Até ao dia em que me obriguei a dirigir umas tantas linhas a um ilustríssimo senhor doutor juiz (dos seus trinta anos, é importante que se diga) nas quais critiquei severamente o sistema judicial português.
(…)
E este foi o início da minha carreira de epistológrafa, como sabem, termo erudito que serve para designar quem escreve epístolas, o mesmo que cartas.
Apesar de me não ter dado nada bem com esta primeira experiência, não desisti dos meus protestos, e decidi deixar à posteridade, o testemunho de alguém que nunca foi conivente com os abusos e os excessos dos poderes: político, judicial e policial.
De então para cá, tenho escrito muitas, muitas cartas, a políticos, governantes, a gente importante, a editores, a directores de jornais, a potenciais empregadores..., porque isto de escrever cartas não dá de comer a ninguém. Mas nenhuma, nenhuma dessas ilustres personalidades me honrou jamais com umas poucas linhas que fossem!
(…)
(Visivelmente sofrida, desiludida, quase chorosa, Jerónima atira o papel para o chão, e apanha um outro de cima da mesa)
Ah! Querido público, mas o pior ainda estava por vir. De repente, sem trabalho, socorri-me dos amigos influentes, ou melhor, daqueles que se diziam meus amigos e que detinham cargos de chefia em lugares-chave, podendo (se quisessem) ajudar-me a preencher esta sufocante lacuna na vida de qualquer cidadão em idade activa – a falta de trabalho – até porque estava acostumada a ouvir dizer que a minha produção era útil e tinha qualidade, por isso, seria bem-vinda em qualquer lado.
Comecei então a escrever cartas e mais cartas, aos tais amigos, a desconhecidos também, amigos dos meus amigos, propondo-lhes os meus serviços... quase humildemente, como convém...
Mas nada. Nem uma linha. Nem uma resposta. Nem sim. Nem não. Nem uma palavra de conforto, ou de esperança, ou de amizade ou até de solidariedade, sequer. Nada! Absolutamente nada! Cheguei então a mais esta triste conclusão: Quando se está na mó de baixo não se tem amigos!
(Com raiva, Jerónima atira para o chão, o papel que tinha na mão, pega na carta que trazia quando entrou em cena, e dirige-se para a boca do palco)
Escrevi cartas a tanta gente! Poderia estar aqui largas horas a falar delas: das cartas e também das gentes. Mas não se preocupem, não vos tomarei muito mais tempo! Apenas o suficiente para vos dizer que, depois de todas estas desilusões, decidi escrever A Carta, esta, que dirijo a todos vós.
Não antes de ter pensado em escrever a certas personalidades, por ocasião da incrível, da inconcebível, da inacreditável questão de Timor, que recentemente nos arrasou os nervos e feriu a alma! Incrível, inconcebível e inacreditável questão, porque demasiado primitiva para que pudesse ter acontecido nos dias de hoje! Eu não acreditaria, se não tivesse visto, com os meus próprios olhos, as imagens na televisão!
Pensei em escrever ao senhor Clinton, para lhe dizer da sua hipocrisia; aos senhores da ONU para lhes falar da sua inutilidade; ao Ali (enado) Alatas, para lhe atirar à cara todo o desprezo que sinto por governantes cínicos como ele; ao perverso general Wiranto, para gritar-lhe a sua cobardia, e lembrar-lhe de como é fácil, muito fácil ser valente de arma na mão, diante de indefesas crianças, mulheres, velhos e homens desarmados!
Intentei escrever também ao pequeno Habibie, para lhe sugerir que deixasse urgentemente o Palácio de Merdeka, não antes de lhe mudar o nome (para não soar tão mal aos nossos ouvidos), e com a sua caterva de assassinos, de incendiários, de ladrões, de violadores e outra que tal gente, que dá pelo pomposo nome de exército, fossem tomar um grande banho de vida, de humanidade e de civilização nas águas límpidas e calmas do mar de Timor Loro-Sae, para que, no futuro (se ainda houver futuro para tais criaturas), possam governar com sabedoria.
Mas desisti de tais intentos. Por agora.
Pensei igualmente em escrever uma carta a Xanana Gusmão, para lhe dizer da minha ilimitada admiração pela sua Humanidade. Adiei, porém, esta minha intenção.
Deixarei assentar a poeira e escreverei essa carta, sim, quando Xanana puder ler as minhas palavras, tranquilamente, sentado à sombra de uma frondosa árvore, contemplando o pôr-do-sol, na terra que o viu nascer, que o viu lutar, que o viu sofrer, que o viu tornar-se o símbolo do que deve ser, do que há-de ser o Homem do século XXI (se o poder que virá a deter não banalizar a sua personalidade) – o que acredito piamente que não!
Posso até dizer-vos, em tom de profecia, que Xanana terá a delicadeza, a educação, a hombridade de responder à carta que tenciono escrever-lhe, porque Xanana é também poeta, e porque o é, tem o raro privilégio de ver o invisível, de compreender o incompreensível, e saberá, com certeza, dizer-me o indizível.
(…)
EPÍLOGO
Este monólogo teatral, dedicado a Xanana Gusmão, foi escrito para o Concurso Pequenas Estórias de Teatro, promovido pelo CITAC, em 1999. Em 17 de Janeiro do ano 2000, decidi escrever a Xanana e enviar-lhe A Carta, através de um padre timorense que, por essa ocasião, se deslocava a Timor.
Nessa data, desconhecia ainda o resultado do concurso, que só foi divulgado em Fevereiro, desse mesmo ano.
Uns meses mais tarde, recebi uma simpática carta de Xanana Gusmão, a agradecer A Carta que lhe dediquei, e augurando um bom resultado em relação ao concurso.
De facto, a boa sorte veio até mim, inesperadamente: obtive um honroso terceiro prémio, o que, para mim, equivaleu a um primeiro.
Todavia, o mais importante foi a concretização da profecia de Jerónima, quando refere: «Posso até dizer-vos, em tom de profecia, que Xanana terá a delicadeza, a educação, a hombridade de responder à carta que tenciono escrever-lhe...»
Xanana teve a delicadeza, a educação, a hombridade de responder não propriamente à carta de Jerónima, mas à minha carta, demonstrando que o axioma que, como autora, defendi na peça, tinha fundamento.
São estes pequenos gestos que fazem as grandes diferenças entre os pequenos e os grandes homens. Por isso, aqui deixo os meus agradecimentos a Xanana Gusmão, por ter tido a lisura de não defraudar a profecia de Jerónima.
Maio de 2002
in A CARTA
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