Copyright © Isabel A. Ferreira 2009
Quem escreve, logicamente gosta de ler, e os livros são a sua paixão.
Quanto a mim, sou daquelas que “devora livros”, desde que aprendi a ler. Quando era criança, lia tudo o que vinha ter-me às mãos. Os próprios para a primeira infância, dos quais pouco me recordo, e depois, Andersen, os irmãos Grimm, Emilio Salgari, Júlio Verne, Lewis Carrol, Hoffmann, Louise May Alcott, Alexandre Dumas, Daniel Defoe, Charles Dickens, Walter Scott, os 60 voluminhos da Colecção Formiguinha da Majora (que me faziam chorar), enfim, li tudo e todos, e li igualmente os “livros proibidos” (numa determinada idade, evidentemente) aqueles que não ficava bem a uma menina ler. Esses, claro, eram os mais cobiçados. E, ás escondidas, lia tudo o que a minha mãe (também uma leitora compulsiva, até aos dias de hoje, e já conta 85 anos) me proibia. Entre esse “tudo” estavam os livros de Eça de Queiroz, de Camilo Castelo Branco, de Stendhal, em suma, os que focavam temas “inconvenientes” para a educação de uma menina de família.
Bem, além dos proibidos, lia também o Tio Patinhas e companhia, Kit Carson, Buffalo Bill, Matt Dillon, Mandrake (tinha (e tenho) um irmão, também leitor compulsivo) e Almanaques, o Seringador (que ainda hoje me fascina), os Caprichos (fotonovelas proibidíssimas), tudo, absolutamente tudo.
A propósito do Kit Carson fui protagonista de um episódio curioso. Quando tinha uns dez anos, durante as férias, frequentava a casa de uma mestra de Bordados, onde ia aprender a bordar, e levava o meu lanche e mais alguns pertences, dentro de uma sacola a tiracolo (ainda não havia mochilas). Para não ter de dar uma volta enorme, atalhava pela berma do caminho-de-ferro, e seguia por um beco onde havia umas casinhotas abandonadas. Pelo trajecto ia lendo o Kit Carson, e precisamente quando estava a ler uma passagem em que ele ia a cavalgar por um desfiladeiro e um bando de índios lhe saltou para cima, fui atacada à pedrada por uma miúda, um pouco mais velha do que eu, que queria roubar-me o saco. Inspirada, talvez, na valentia do Kit Carson, opus resistência. Houve uma luta corpo a corpo, depois pedradas e pauladas (havia paus e pedras no chão de terra do beco) e no final consegui que a miúda fugisse. Fiquei em muito mau estado e cheguei a casa da mestra de Bordados, mais morta do que viva, mas com o meu saco intacto. E isso é que foi importante para mim. Venci quem me atacou, tal como o Kit Carson.
Nesta senda, aprendi também algumas coisas úteis de socorrismo, ao ler o Almanaque do Luizinho, do Zézinho e do Huguinho (os sobrinhos do Pato Donald) quando eram escuteiros: como sobreviver na selva; estancar o sangue de uma ferida; estabilizar uma pessoa que parte uma perna e tem de ser transportada selva fora, utilizando os materiais que a selva e as circunstâncias nos proporcionam, enfim, algumas delas, já tive até ocasião de pôr em prática.
Conclusão: não me fez mal nenhum, ler todas estas “erudições”.
Seguiu-se a era dos grandes clássicos da Literatura universal: russos, alemães, franceses, americanos, espanhóis, gregos, ingleses, brasileiros, portugueses, entre outros. Todos. Bem, quase todos, porque o todo é impossível.
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Esta experiência, riquíssima, de leituras na infância e na adolescência, deu-me uma capacidade extraordinária para conseguir discernir entre o que me convinha e o que não me convinha ler, à medida que fui avançando na idade, e evoluindo em mentalidade. Hoje sou demasiado exigente nas minhas escolhas de leitura. Já não leio tudo o que me vem parar às mãos. Já nada me é proibido, e nem tudo o que li, anos atrás, me seduz nos dias de hoje.
Hoje, selecciono, cuidadosamente, o que leio, por autores (não os leio a todos por ser completamente impossível – e o meu maior desgosto é morrer sem poder ler todos os livros que tenho nas minhas estantes, e que vou adquirindo, sempre na esperança de um dia poder lê-los).
Dou claramente preferência aos mestres da Língua Portuguesa, e esta minha preferência nem sempre coincide com a complacência dos nossos críticos literários, cuja apreciação é quase sempre subjectiva. Além disso, gosto de ler nas línguas originais. As traduções, ou são excelentes e colam-nos aos autores como uma pele, ou são péssimas e desvirtuam os originais, perdendo-se, por completo, a essência da obra. Reconheço, contudo, que é muito difícil traduzir as subtilezas específicas de um idioma, nomeadamente quando se trata de traduzir Poesia.
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Entre 2000 e 2005 trabalhei para a Byblos, uma livraria on-line, com um banco de dados que continha 70 mil títulos, e cuja livraria física estava sedeada em Aveiro. O seu proprietário era igualmente um grande e dedicado amante de livros. O meu trabalho era recolher as críticas dos “especialistas”, biografias e entrevistas dos escritores, que iam sendo publicadas na comunicação social, e inseri-las nas respectivas páginas on-line. Um comprador virtual que estivesse interessado em determinado livro, tinha à sua disposição um ficheiro completo sobre a obra, o autor, a crítica e a entrevista.
Esta livraria teve um sucesso estrondoso. Continha uma ideia nova, numa época em que, para aqueles que gostam do impalpável, o livro tinha os dias contados. A Byblos era conhecida em todo o mundo. Os negócios corriam às mil maravilhas, até ao dia em que alguém muito, muito invejoso entendeu boicotar o projecto, e o que era útil, agradável e um extraordinário veículo de uma Cultura culta, afundou-se no mar turbulento do malquerer, para meu desencanto e profunda mágoa do seu proprietário.
Essa foi a época em que adquiri mais livros. Aliciada pela crítica, ia comprando obras, que fui lendo, e li-as todas, mas não até ao fim, algumas. Muitas delas, que a crítica considerava “obras-primas”, foram, para mim, um espantoso logro. Deixei-as a meio, por motivos vários (más traduções, más revisões, temas corriqueiros…). Poucas corresponderam às críticas, demasiado apologéticas, que se faziam delas. Gostaria de saber os critérios que levam alguns críticos a “dizer bem” de uma coisa má, ou a “dizer mal” de uma coisa boa. Se bem que os gostos não se discutem, e tudo nesta área é demasiadamente subjectivo.
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Para mim, uma “obra-prima” tem de estar bem escrita, bem traduzida, num Português escorreito e sem palavrões (a não ser que estes se integrem no modo de falar da personagem, se esta pertencer ao rol dos que “falam mal” pela sua condição social e cultural, e apenas nessa circunstância e sem exageros; deve contar uma boa história, e ter uns acessórios mais, como uma apetecível apresentação de leitura, isto é num tipo de letra que se leia sem dificuldade, daquela que não seja preciso usar uma lupa; ser dotada de margens suficientemente largas, para não parecer que as palavras estão a fugir da página; e se existem notas, estas devem constar no rodapé da respectiva página, e não no final do livro, pois tal opção torna a leitura desagradabilíssima.
Selecciono igualmente as minhas leituras por temas. Há temas que não me interessam, como, por exemplo, os temas politizados (não os políticos) fora de um contexto histórico independente, e que contém “recados”, que favorecem os regimes vigentes, com o intuito de os seus autores tirarem proveito para si próprios. Uma questão de sobrevivência, dizem-me. Porém, há outras maneiras de sobreviver, sem se ser subserviente, submisso. Outros temas, como romances “açucarados”, vidinhas e “enchidos” à moda da moda, enfim, vulgaridades, não me seduzem.
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Faço depois selecção por editoras. Existem editoras que sacrificam a qualidade em prol do lucro. Publicam autênticas aberrações no que diz respeito ao desrespeito pela Língua, más traduções, revisões catastróficas, obras vendáveis, mas intragáveis que, apesar disso, têm as suas parangonas garantidas, nos órgãos de informação. Inacreditavelmente.
Por outro lado, há editoras com muito bom gosto, na opção das capas, no design gráfico, na escolha das obras, no cuidado extremoso da Língua, das traduções e da revisão dos textos. São essas que salvam a Literatura. Infelizmente, raras, no imenso universo editorial português.
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Li, há dias, no n.º 73, da Revista Os Meus Livros, na rubrica quem diria – citações, precisamente a seguinte citação de Manuel Alberto Valente (que já foi editor da ASA e agora está na Porto Editora) in Jornal de Notícias, 1/2/2009, que diz o seguinte: «A relação entre autores e editores é agora uma relação comercial como em qualquer outra área do negócio. A edição romântica do passado deu lugar a uma indústria».
Estas palavras atingiram-me como uma pedrada, talvez porque a minha circunstância de nefelibata me afaste um pouco das coisas demasiado mundanas (embora não tanto, pois tenho de sobreviver) e ainda viva na ilusão da edição romântica e de uma relação afectiva entre editor e autor, necessária ao “fazer” de um livro. Mas já tive motivos suficientes para me desiludir.
A ser verdade, esta relação comercial, de que fala José Alberto Valente, acabará por matar a Literatura. A verdadeira. A que é feita de palavras com honra. Daquelas de que nos fala Baptista-Bastos, no mesmo número, da mesma revista, na mesma rubrica, atrás referida. Disse este escritor ao Diário de Notícias, em 5/2/2009: «Há muito se perdeu a noção de que as palavras têm honra. Políticos servem-se delas para mentir, ocultar, dissimular a verdade dos factos e as evidências da realidade». Eu acrescento que não são só os políticos que se servem das palavras para dizerem ou escreverem coisas inadequadas. Hoje é muito comum lermos e ouvirmos, por todo o lado, palavras andrajosas, de tão gastas que estão, umas, e mal ditas que são, outras. E as novas palavras que são inventadas, parecem não ter qualquer utilidade.
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Durante o Correntes d’Escritas, realizado há pouco tempo, na Póvoa de Varzim, ouvi um dos nossos intelectuais desdenhar de livros como O Código Da Vinci, de Dan Brown, e a Sombra do Vento (Prémio Correntes d’Escritas/Casino da Póvoa 2006), de Carlos Ruiz Zafón, numa mesa onde se falava precisamente da universalidade da Literatura. Tanto azar teve o nosso escritor, que escolheu precisamente dois exemplos dos mais universais.
Devo dizer que li sofregamente um e outro livro. Primeiro, porque os temas eram aliciantes; segundo porque que se quero ter uma opinião sobre o que se desdenha, tenho, pelo menos, de tentar lê-los. Se o tema me agrada leio-o até ao fim. Se não me agrada, deixo-o pela metade, mas leio o suficiente para poder ter opinião. Não posso avaliar sobre algo que desconheço, como alguns intelectuais portugueses avaliaram o Código, dizendo que o livro não prestava para nada, mas não o leram, nem o leriam nunca.
Pois, O Código Da Vinci é um livro sedutor, não só pelo modo como está escrito, como pelo tema que aborda, independentemente de se concordar ou acreditar nele. Isso é outra história. Não li mais nada do Dan Brown. O mesmo se passou com a Sombra do Vento, um enredo bem urdido, cativante do princípio ao fim, numa escrita escorreita. Tenho agora ali para ler, o outro livro de Zafón, O Jogo do Anjo, que ao que já vi, me parece interessante. Porque gosto de uma boa intriga. De um bom romance. De uma boa tragédia, tudo isto, bem escrito.
Li também o Harry Potter, como não podia deixar de ler. Uma leitura frenética, alucinante, electrizante, bem ao jeito dos miúdos. Não foi por acaso que teve o sucesso que teve junto dos leitores mais jovens. A J. K. Rowling soube captar, como ninguém, a fórmula mágica de como cativar o interesse dos mais novos, para que estes lessem aqueles calhamaços avidamente até ao fim.
O problema, no nosso país, é que alguns dos “intelectuais” (escritores, pensadores, ensaístas) portugueses têm ideias pré-concebidas e não conhecem, porque não querem conhecer, e não sabem quase nada ou mesmo nada sobre os outros, os que também são intelectuais, escritores, pensadores, ensaístas. Os nossos fecham-se nas alturas da sua intelectualidade e não evoluem. Os outros abrem-se ao mundo e às suas novidades. Por isso esses outros são mais universais do que os nossos.
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