A Musa Calíope – inspiradora da poesia épica (Escultura do Museu do Vaticano)
Para quebrar a monotonia, hoje decidi abordar um tema universal – a mulher – espécimen ao qual nem sempre me orgulho de pertencer.
Embora a mulher tivesse representado um papel específico em cada época histórica, aumentando ou diminuindo a sua importância de acordo com os valores culturais, sociais, morais e até religiosos de cada povo, existem apenas dois tipos de mulher: a que explora e se deixa explorar, e a que bate o pé no chão, sejam quais forem as circunstâncias, comandando, deste modo, a sua própria vida.
Evidentemente que em cada uma destas tipologias se enquadra uma infinidade de géneros, cada qual com um estigma totalmente diverso do outro. Contudo, o que interessa fundamentalmente destacar são os dois grandes e universais tipos de mulher, que existem desde o aparecimento dos hominídeos na Terra, embora pouco ou nada se saiba da mulher pré-histórica, e sobre esta, os estudiosos gostam muito de fantasiar…
Apesar de a mulher ainda ser considerada (pela maioria dos homens) o sexo frágil, um apêndice do próprio homem, mulheres existem que são autênticos baluartes das sociedades, e sem elas, essas sociedades seriam extremamente estéreis. Elas são em grande número, mas não aparecem, não se mostram. Para quê?
O ouro, o mais precioso dos metais, não existe à superfície. Não está ao alcance de todas as mãos. Talvez por isso, seja tão valioso. Por que é que as pedras comuns, os seixos, não têm qualquer valor? Porque se encontram a esmo. Todos podem ter acesso aos calhaus rolados. Mas não ao ouro.
Aos olhos do homem, a mulher, na sua generalidade, ainda é um ser fútil, que tem a cabeça apenas para usar penteados; é um ser que se molda tão facilmente como um pedaço de plasticina; é um “bibelot”, que o homem exibe, tal como uma cabeça de búfalo embalsamada, produto de uma caça gloriosa; é uma jóia que mostra com ostentação, como mostra o alfinete de gravata incrustado de diamantes; é um objecto que ele usa a seu bel-prazer, tal como usa uma camisa nova.
Contudo, quando a camisa fica velha ou surrada, o homem coloca-a no fundo de uma prateleira, como recordação de tempos idos, ou então atira-a ao lixo, e ela anda em bolandas até se transformar em farrapos, ou se melhor sorte tiver, alguém, menos exigente, aproveitá-la-á, até ela ficar completamente desfeita.
Infelizmente, esta não é uma imagem do passado. Ela existe desde sempre. E embora seja verdade que a mulher dos finais do século XX e inícios do século XXI alcançou um status na sociedade, como em nenhuma outra época, o certo é que nunca a mulher, particularmente a mulher jovem, foi tão frívola como o é hoje, salvaguardando, evidentemente as inúmeras excepções. Nunca, como hoje, se deixou explorar e ridicularizar. E a falta de respeito que o homem sempre demonstrou ter pela mulher fútil, pela mulher objecto ou pela mulher “bibelot”, está a generalizar-se, pois há a tendência para pensar que todas as mulheres são iguais.
Mas há aquelas que batem o pé, sejam quais forem as circunstâncias. Mesmo no tempo da escravatura, sabe-se que haviam escravas que preferiram a morte a submeter-se aos caprichos dos seus depravados senhores.
No mundo do trabalho, existiram operárias que morreram a lutar pelos seus direitos. Mulheres revolucionárias que se bateram pelos seus ideais. Mulheres que tombaram pela pátria que gostariam que os seus filhos tivessem.
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Exemplificando: temos os concursos de misses, onde a mulher é ridicularizada, e o que é pior de tudo: ela nem sequer se dá conta disso.
Claro, há quem goste. Mas há também quem compare esses eventos com os concursos de gado – esta comparação, por incrível que pareça, ouvi eu da boca de um homem culto, relativamente novo, na flor da idade dos entusiasmos. Mas há situações verdadeiramente aberrantes e que nem a todos os homens agradam.
Disse-me o referido senhor: «Assim como o gado (cujos donos se esmeram a escovar-lhes o pêlo e mantê-lo com um aspecto extraordinário) se passeia pela feira sob os olhares dos entendidos, que o perscrutam, membro a membro, não vá ter uma perna coxa ou um olho vazado, assim a mulher, ao pavonear-se numa passerelle, com indumentária reduzida, e previamente polida, vira-daqui-vira-dali, expõe ao ridículo, o que ela tem de mais belo e precioso: a intimidade do seu corpo».
A este propósito passa-se um fenómeno curiosíssimo. Ao fazermos uma reportagem, se perguntarmos aos organizadores destes certames o que sentiriam se vissem as suas filhas, mãe, irmãs ou mulher a pavonearem-se numa passerelle, respondem imediatamente: «Não misture as coisas. Isso é diferente!»
Claro! Outra resposta não poderia eu esperar. Ridicularizar as mulheres dos outros é muito fácil e não tem a mínima importância. Mas quando se trata das suas… Alto lá! A conversa é outra.
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Esta reacção, que é autêntica, faz-me lembrar dois episódios passados comigo, em que coloquei em causa, propositadamente, a mentalidade do homem corriqueiro (porque os há invulgares e correctos).
O primeiro caso deu-se com um desses jornalistas de meia-tigela, que há falta de matéria-prima para me derrubar do pedestal de mulher, senhora-do-meu-nariz, várias vezes recorreu à calúnia, à mentira, à provocação – o argumento de quem não tem argumentos. Normalmente dou ao desprezo tais baixezas de atitude, mas daquela vez o indivíduo havia ultrapassado todos os limites. Eu não podia deixar passar a oportunidade de o por no seu lugar. Telefonei-lhe, e depois de me identificar, disse-lhe apenas isto: «Ouça, aconselho-o a que, quando tiver ganas de difamar alguém, comece pela sua mãe, pelas suas filhas (ele tinha duas) e pela sua mulher». Escusado será dizer que o sujeito desligou imediatamente o telefone e nunca mais se atreveu a escrever o meu nome no jornal que dirigia.
O outro episódio passou-se com alguém do sexo masculino (que não cheguei a conhecer) e que diariamente tocava a campainha da minha casa, tarde da noite, para perguntar se ali vivia a Carlinha, a Mariazinha, a Antoninha, enfim… Isto aconteceu uma, duas, três vezes, apanhando-me sempre desprevenida. À quarta vez, já farta destes desmandos, decidi utilizar aquela arma secreta que desarma os falsos heróis. À pergunta se ali vivia… reconhecendo a voz, respondi-lhe (e desculpem-me a liberdade da linguagem): «E se fosses chatear a tua mãe?» O resultado não se fez esperar. Ouvi um berro: «A minha mãe não é para aqui chamada». E ainda mais outro: «A minha mãe não é para aqui chamada, ouviste?»
Sim, eu tinha ouvido, muito bem. Claro, a mãe do indivíduo não era para ali chamada, mas a mãe dos meus filhos podia ser incomodada, às horas do seu descanso, por um qualquer fulaninho. Nunca mais o atrevido se atreveu a importunar-me.
Uma vez mais, pude comprovar que a mãe, as filhas, as irmãs e a mulher dos outros, podem ser ridicularizadas, desrespeitadas, difamadas ou incomodadas, que não tem qualquer importância, porém, quando viramos o bico ao prego, cai o Carmo e a Trindade!
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A mulher nem é superior nem inferior ao homem. Socialmente, moralmente, intelectualmente. Apenas diferem fisicamente. Então, por que faltará coragem à mulher para agir de forma a não se deixar inferiorizar pelo homem?
Outro dia, em conversa com certo cavalheiro já de avançada idade, que me mostrava fotografias de umas “beldades” da sua época, comentou com um ar deleitado: «Isto é que são mulheres!» E eu respondi: «Sim, isto é que são mulheres, mas vocês não as escolhem para casar!»
«Claro que não! Os “bibelots”, os objectos de adorno, as jóias servem apenas para enfeitar a nossa vida. Nada mais!» Resposta pronta do cavalheiro.
Que conceito fazem os homens da mulher?
Diz-me: «A culpa é dela. Ela é que gosta de se mostrar, de ser fútil, de ser objecto, “bibelot”!...»
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Já é tempo de a mulher se libertar verdadeiramente, não se deixando ridicularizar, como se deixa, quando se pavoneia diante do homem, que apenas a vê como um alfinete de gravata, incrustado de diamantes.
Usar e abusar da mulher é coisa fora de moda.
A mulher deve apresentar-se tal como uma musa que inspira o poeta: sensata, sensível, feminina, misteriosa, bela no seu recato… mas a bater o pé quando é preciso!