Copyright © Isabel A. Ferreira 2008
Se não reparas na flor do caminho, não mereces a sua beleza...
O vento passa ligeiro. Os rios correm tranquilos, serpenteando por entre o verde da planície. A flor desabrocha na serra. A lua enfeita de prata as águas do mar. O Sol doira o trigo das searas. A andorinha faz o seu ninho no beiral da casa, onde algumas papoilas dão colorido ao telhado.
E tu nem reparas.
Lá longe, de onde vêm estranhos ecos, os ventos em fúria arrancam as árvores. As águas jorram dos céus e inundam aldeias. Os vulcões vomitam o fogo que queima as entranhas da terra. Seres humanos morrem de fome e de sede. Doentes. E a ajuda não chega.
E tu nem reparas.
Nas noites em que os lobos se calam, ouvem-se gritos desesperados. Cabeças humanas rolam pelo chão. O sangue dos Homens mistura-se com a água dos rios e os campos enchem-se de papoilas tão vermelhas como o sangue que escorre das cabeças decapitadas.
E tu nem reparas.
Fumos negros de um progresso retrógrado escurecem os céus das cidades. Matam as aves do paraíso. Fazem murchar o arvoredo. Dizimam os bosques. E pelo buraco de ozono chegam até nós os elementos que hão-de transformar a Terra num planeta tão inóspito e deserto quanto Marte.
E tu nem reparas.
Os pássaros do jardim deixaram de cantar, porque já não há jardim. A música do vento deixou-se de ouvir, porque o grito dos loucos soou mais alto. A sombra das árvores foi substituída pelos fantasmas do betão. E as flores deram lugar às latas.
E tu nem reparas.
A guerra instalou-se. O riso da criança transformou-se em choro. A mãe desesperada lançou ao rio o filho que não podia carregar na fuga. As lágrimas secaram. Secaram os campos. Os rios e as fontes. O elefante retirou-se para morrer só, numa gruta recôndita. E o cisne cantou o seu último canto.
E tu não choraste.
Tu não reparas na beleza das coisas, nem no desfazer dos sonhos. Não rejubilas. Não gritas. Não te revoltas. Não dizes nada. Limitas-te a comer a tua maçã, à sombra do que resta da tua própria sombra. E sorris. E gritas: «Não fui eu que fiz mal ao mundo. Não sou vento, nem chuva, nem vulcão. Não sou fumo. Não sou governante, não corto cabeças...».
É apenas o que te convém dizer, para justificares a tua indiferença?
Mas se não reparas na flor do caminho, não mereces a sua beleza.
in Manual de Civilidade