Copyright © Isabel A. Ferreira 2008
(A. Monteiro dos Santos declamando um dos poemas do seu primeiro livro
«Se eu fosse dono da vida…» no Salão Nobre da antiga
Biblioteca Municipal de Vila do Conde)
Ao meu amigo António Monteiro dos Santos, Poeta vila-condense, falecido no passado dia 22 de Novembro (2008), dediquei esta crónica, publicada no Jornal «A Voz da Póvoa»:
As Laranjeiras Florescem no Inverno…
A tarde caía. A frágil luz de fim de dia dourava a paisagem, e eu ali estava, diante daquelas velhas pedras cobertas de musgo e hera, tentando buscar, num passado longínquo, episódios bucólicos, talvez nunca vividos, mas que se fixaram no meu subconsciente, como se eu tivesse, realmente, pertencido a outras épocas.
Nunca entendi este meu fascínio por muros velhos, rodeados de silvas, que o tempo guardou religiosamente como autênticas relíquias, mudos testemunhos de vidas passadas.
Foi então que, por entre o silêncio que sempre invade os lugares ermos, distingui, nitidamente, o chilreio dos pássaros, que se recolhiam algures, ali perto. Por momentos, julguei-me para além do meu mundo, distante do meu planeta, numa qualquer galáxia prodigiosa, povoada por seres silenciosos.
Continuei a olhar aquelas ruínas, junto ao rio, cujas águas entoavam um cântico, baixinho, como que embalando os arbustos que habitavam as suas margens.
Nesta busca, quase louca, de recordações-fantasmas, o meu olhar pousou sobre uma laranjeira solitária, salpicada de frutos redondos e amarelos, a qual nascera ali, naquele lugar, inacessível a mãos vorazes, por isso, se mantinha ainda virgem.
Sentei-me então num daqueles muros que outrora serviram de abrigo provavelmente a algum senhor feudal e, ao olhar aquela laranjeira, veio-me à memória recordações bem mais recentes: a minha convivência com um Poeta que não se assumia como tal, talvez por modéstia, talvez por indefinição, que me disse:
«Deus, ao fazer a Natureza, cometeu um grande erro: criou as laranjeiras para florescerem no Inverno, e não no Verão, quando o calor abrasa e sabia bem refrescar-nos com os saborosos bagos da laranja…».
Sorri.
Estas não eram palavras do passado. Ouvia-as recentemente, da boca desse Poeta, meu amigo, quando filosofávamos acerca de Deus e das coisas do mundo e da vida.
*
Assim como as velhas pedras, os muros cobertos de musgo e hera, e as ruínas rodeadas de silvas, me cativam, e nelas tento buscar um passado que sinto pertencer-me, talvez por fazerem parte das minhas raízes, das minhas origens, também os Poetas têm o dom de me conduzir em batéis dourados, fazendo-me percorrer recantos do meu subconsciente, nunca dantes percorridos, porque só os Poetas conseguem atingir o inatingível.
A tarde sumia-se. A imensa laranja solar deslizava por detrás do arvoredo, enquanto as outras laranjas, as verdadeiras laranjas, continuavam a enfeitar aquela arvorezinha solitária, coberta agora de uma luz que me fez lembrar a de um belo quadro de Monet.
Senti a aragem fresca que fazia baloiçar, de mansinho, a folhagem dos eucaliptos e pinheiros que se agigantaram ao redor das ruínas, e fazia as águas do rio cantar mais atrevidamente.
Não tive qualquer desejo de saborear aqueles frutos que Deus, tão generosamente, criara para saciar a sede dos caminheiros errantes, no Inverno.
Talvez o Poeta tivesse razão. Talvez aquelas laranjas pudessem ser mais apreciadas no Verão, quando o Sol escaldasse e o corpo queimasse por dentro.
Porém, se Deus criou as laranjeiras para florescerem no Inverno, algum motivo secreto imperou.
Naquele instante, as ruínas, junto ao rio, deixaram de ter importância. Fixei o meu olhar sobre aquela arvorezinha salpicada de amarelo, e tudo o que desejei, então, foi encontrar a razão para a existência das laranjas, no Inverno. Se eu conseguisse decifrar o mistério, talvez o Poeta, meu amigo, mudasse de ideias e se reconciliasse com Deus.
*
Começava a escurecer. Aquele recanto à beira-rio transformou-se num lugar tenebroso. Lá no alto, surgiu a primeira estrela. Mais adiante, a Lua espreitou por detrás de uma nuvem e mirou-se, vaidosa, nas águas do rio.
Era tarde. Precisava de retirar-me. Aquelas ruínas, sob a luz do luar assustavam-me. Aproximava-se a hora do passeio dos fantasmas, e eu continuava sem encontrar qualquer argumento que pudesse contentar o Poeta.
Dir-lhe-ia apenas que tentei.
Afinal, que diferença faz as laranjeiras florescerem no Inverno, desde que cumpram, honestamente, a missão que o Criador lhes confiou?... O que importa é a autenticidade dos seres, tudo o resto é mera ficção científica.
Deixei aquele lugar ermo, aquelas ruínas cobertas de musgo e hera, despedi-me do rio, da Lua e daquele forte odor a terra húmida, onde a verde erva cresce em liberdade (o que sempre me deixou a sensação de lhe pertencer – à terra).
Num outro dia, talvez, eu ali volte e recomece a busca das minhas raízes, que sei mergulhadas num passado tão antigo como aquelas pedras que deixei à beira-rio.
Antes de retirar-me, porém, murmurei baixinho, só para a noite: «Ó Poeta, meu amigo, deixa que as laranjeiras saciem a tua sede, no Inverno. No Verão tu tens a água fresca das fontes que brotam dos montes, junto aos lugares da tua infância».
O eco das minhas palavras fez chegar a minha mensagem ao meu amigo, que na outra margem do rio, fazia poemas à Lua, junto às ruínas de um outro passado.
E naquela noite, pareceu-me sentir no ar, o aroma fresco das flores de laranjeira.
*
O Poeta a que me refiro neste texto é A. Monteiro dos Santos que vai hoje a enterrar, no cemitério do Monte, em Vila do Conde. Assinava os seus livros de poemas com o nome de Dário Marujo, um nome do qual eu não gostava. E um dia ele perguntou-me porquê? E eu respondi-lhe: «Porque o seu nome cheira a docas, cheira a cais…».
E logo ali nasceu o poema com que abriu o seu primeiro livro de poesia intitulado Se eu Fosse o Dono da Vida… (de1997), e que aqui reproduzo, com saudade…
O Meu Nome
O meu nome cheira a docas,
O meu nome cheira a cais,
De partida e de chegada.
Filho de um mar de gaivotas,
Colhidas nos vendavais.
O meu nome é maresia,
O meu nome é mar salgado,
É filho da alegria,
O meu nome é sem pecado.
É filho de um mar chão,
E também de um mar bravio,
Que trago na minha mão.
O meu nome é desafio,
O meu nome cheira a docas,
O meu nome cheira a cais,
Marujos em mastros reais,
No tempo das caravelas,
Filho do Sol, da chuva, do vento,
Tenho-o escrito nas velas,
Desta nau do pensamento,
O meu nome é panamá,
Corpete, manta de seda,
Farda branca, imaculada,
É jersey e é alcaxa,
Farda de azul-escuro,
É estóico, é lutador.
Nos lábios sempre uma trova,
No coração um Amor.
Desta doçura não fujo,
Meu nome é DÁRIO MARUJO.
*
Depois de ler este belo poema, fiquei a entender e a gostar do nome Dário Marujo.
A. Monteiro dos Santos havia sido marinheiro, na sua juventude.
Até sempre, amigo Dário Marujo!
Até sempre!...
Isabel A. Ferreira