Breve reflexão sobre a tauromaquia, da autoria de Paulo Borges
O texto publicado na revista CAIS, nº 178 (Novembro de 2012), foi-me enviado via e-mail.
Passados séculos, os taurófilos continuam sem evoluir, divertindo-se com o sofrimento de um ser vivo…
«A tauromaquia, o combate do homem com o touro, tem a sua origem na ritualização de mitos dualistas acerca do combate originário entre a luz e as trevas, o bem e o mal, para que o cosmos possa vencer o caos. Estes mitos expressam na verdade o sentimento humano de uma divisão e combate interno entre a luz da consciência e da razão ética e as trevas da irracionalidade dos instintos e das emoções destrutivas.
Neste ciclo de civilização antropocêntrica, o homem foi identificado com o positivo e o animal com o negativo, sendo convertido num bode expiatório de toda a violência, conflitos e tensões dos instintos reprimidos pela vida social. Projectar a necessidade de triunfo da luz sobre as trevas interiores, do melhor sobre o pior de nós, num combate exterior com um animal, como se humilhá-lo, torturá-lo e vencê-lo, pela morte na arena ou mais tarde no matadouro, tornasse alguém melhor, é uma manifestação grosseira de ignorância da dimensão simbólica daqueles mitos arcaicos.
Esquecida de tudo isto, a tauromaquia converteu-se num espectáculo de pura agressão gratuita contra um ser senciente e pacífico, que é forçado a sofrer terrivelmente num confronto que não deseja. Na tauromaquia há uma dissimulação do mal da violência e do sofrimento, ficando anestesiada a tendência humana para a empatia e para se colocar no lugar do outro: em primeiro lugar pela convicção, entranhada desde há milénios no subconsciente humano, de que o homem é o “bom” e o animal o “mau”; em segundo lugar pela estética do espectáculo, estimulante dos sentidos com as luzes, as cores, a música, as vestes e os movimentos rituais; em terceiro lugar, pelo êxtase emocional de uma multidão a vibrar em uníssono, onde se esquecem os problemas da vida e as razões da consciência em momentos fugazes de diluição numa festa social com parentes, amigos, comida e bebida.
Para além dos que estão directamente ligados aos interesses económicos da indústria tauromáquica, a maioria dos aficionados vê apenas nas corridas de touros a estética do espectáculo e o convívio social, que lhes confere um sentimento de identidade e participação comunitária numa era de globalização e fragmentação das relações humanas. É por isso que ganadeiros, cavaleiros, toureiros, forcados e aficionados não vêem nas corridas de touros senão isso e nunca o evidente sofrimento do animal, seja o cavalo ou o touro. Mas esse sofrimento dos animais, capazes como nós de sentir a dor e o prazer psicofisiológicos, é o que acima de tudo vêem os que lutam pela abolição da tauromaquia, pois esse sofrimento e a transgressão da regra de ouro de toda a ética – o não fazer ao outro o que não desejamos que nos façam a nós – surgem em toda a sua injustificada e brutal nudez quando despidos dos véus da mítica superioridade humana, da tradição cultural, da beleza estética e da festa social. A tortura, a violação e o assassínio serão sempre tortura, violação e assassínio, e inaceitáveis, por mais que nalgum lugar do mundo se convertam numa tradição cultural apreciada por alguns e numa festa social encenada com requintes estéticos de luz, cor, som e movimento.
Todavia, a abolição da tauromaquia, que lenta mas firmemente se desenha no horizonte da civilização, apenas exige o fim da presença dos animais, touros e cavalos, no espectáculo, e não o do próprio espectáculo. Tal como os montados e os touros bravos podem sobreviver ao fim da tauromaquia, convertendo-se em santuários da vida selvagem, reservas ecológicas e pólos de atracção turística, também o actual espectáculo, sem animais, se pode converter numa encenação não-violenta, mantendo a sua estética tradicional, a exemplo do que aconteceu com práticas semelhantes em todo o mundo, hoje apreciadas como artes lúdicas livres de sangue e morte, como as antigas artes marciais do sabre japonês, o kendo, e da capoeira afro-brasileira. Livre de animais, o actual espectáculo continuará a ser uma festa de convívio e coesão social, mas deixará de ser a festa da violência e da dor que actualmente indigna e envergonha a nossa consciência e fere o mais fundo da nossa sensibilidade humana à dor do outro, à aflição do próximo, humano ou não-humano.
Paulo Borges, 2012»