Quarta-feira, 12 de Outubro de 2016

«Ferro Alves queria que os Touros marrassem mais»

 

O relato hilariante, datado de 1935, de uma tourada à corda nos Açores

 

Assim como era naquele tempo, assim é hoje. Nada mudou. O tempo parou ali, e ainda hoje as mulheres soltam uns «ais terroríficos e parturientes» e os homens com «pronunciadas atitudes simiescas, trepam às árvores, encarrapitando-se nos últimos ramos, como se o toiro fosse um animal trepador»…

 

Divirtam-se!...

 

FERDINANDO.jpg

 Cena do filme «Ferdinado, o Touro»

(Para quem estiver interessado em ver (ou rever) esta extraordinária curta-metragem)

 

 

O jornalista e advogado Ferro Alves que esteve nos Açores como deportado, onde participou na “Revolta dos Açores e da Madeira”, em 1931, antes de aderir ao salazarismo, esteve na ilha Terceira durante quinze dias, tendo assistido a uma tourada que descreveu no seu livro “A Mornaça (***) ”, publicado em Lisboa em 1935.

 

Aqui vai um relato do que viu:

 

«Na praça da terra reúnem-se todos os habitantes no meio de uma chinfrineira aguda empunhando cacetes e com mais abundância guarda-chuvas, Esse instrumento antipático e avelhado disfruta aqui de irresistíveis simpatias. Nas janelas apinham-se cachos humanos chilreantes…

 

O cacique local com aspecto importante – as ilhas estão pejadas de odiosos caciques – dirige a função. Munido de uma corneta, ou búzio, o soba do povoado dá o sinal para começar a festa. As mulheres, que no mais recôndito das suas almas escondem a sua adoração pela tragédia, cerram os olhos, soltando uns ais terroríficos de parturientes. Os homens atacados dum pânico súbito fogem em todas as direcções. Alguns, com pronunciadas atitudes simiescas, trepam às árvores, encarrapitando-se nos últimos ramos, como se o toiro fosse um animal trepador.

 

A praça fica deserta e respira-se um ar pressago de dramatismo. Contraídos e anelantes, como nas tardes famosas de Madrid, em que Belmonte alterna com Cagancho, aguardamos a aparição do toiro, fumegando cólera e bramindo vingança. Afinal surge o cornúpeto, que não é toiro, mas simplesmente um novilho, e bastas vezes, uma raquítica vaca, muito enfastiada por ver-se metida em zaragatas. Pois, senhores, e aqui reside o ineditismo do espectáculo, o tal novilho de poucas carnes e de insubsistente acometividade, vem amarrado por uma longa corda de quinze ou vinte metros. O pobre bicho de olhos chorosos, autenticamente bovinos, acossado pelo gritério, dá uma corridita até ao meio da praça, estaca de repente assustado soltando uns mugidos lancinantes, em que bramam desejos insatisfeitos duma boa ração de favas.

 

Aproveitando a indecisão do animalzito nostálgico duma verde campina, onde possa saciar a sua fome, os populares mais atrevidos lançam-se à praça com a chaqueta*** numa mão e o obcecante guarda-chuva na outra. Com estes singulares atavios, que substituem a muleta e as bandarilhas citam o pachorrento animal, que exala uns quantos gemidos a ver se não o metem em sarilhos.

 

Animados pela mansidão do cornúpeto, los diestros, puxam-lhes o rabo, espicaçam-no com a ponta das malditas sombrinhas, provocam-no com lenços escarlates.

 

O animal resolve-se finalmente a investir depois de laboriosa deliberação. Os artistas abandonam a presa e os instrumentos de combate. Se porventura o triste novilho consegue alcançar algum dos seus algozes, rasgando-lhe com uma cornada o fundilho das calças, o gentio delira. Há palmas e vivas, desmaios e chiliques. Os marmanjões que sustentam a corda que prende o bicho puxam dela desesperadamente até que imobilizam completamente o bicharoco. Se este num movimento ocasional se volta, enfrentando-se com os moços de corda, então o pânico é indescritível.

 

Um autêntico salve-se quem puder. Os muros e as árvores são impotentes para conter a correria vertiginosa, alucinada, dos pretensos campinos. Chiam como ratazanas aprisionadas na ratoeira.

 

Felizmente a mornaça contamina não só os homens como os animais. O novilho a breve trecho se fatiga, pára tristonho e rendido entregando-se sem combate à fúria vencedora dos seus inimigos. Docilmente deixa-se conduzir ao curral, com um olhar resignado, de quem pede perdão por ter magoado o traseiro de algum diestro menos veloz. Creio que nestas touradas, apesar de frequentes, nunca houve colhidas que demandassem mais do que um pouco de álcool para friccionar as nádegas dos campónios.

 

Nestas touradas somente tomam parte como aficionados elementos populares. Os filhos dos sobas e régulos, classifico assim as personagens locais, abstêm-se de participar nestes folguedos. A sua seriedade de jarrões impede-os de se misturarem a tudo o que seja dinamismo.

 

O espectáculo termina com a lide de alguma vaca, mãe respeitada de numerosa prole. Insensível aos guarda-chuvas e às chaquetas permanece estática no meio da praça entre as chufas da multidão. Para arrancá-la à sua passividade chegam a picá-la com sovelas. Eu vi uma tão pachorrenta, que um indígena no meio do entusiasmo da assistência, puxava-lhe cinicamente as orelhas. Com a descrição das célebres touradas à corda, cremos dar uma ideia nítida da maneira como a mornaça transforma em insipidez, os mais emocionantes espectáculos.»

 

Açores, 12 de Setembro de 2016

José Ormonde

 

***

(***) Mornaça - clima quente e húmido particular dos Açores.

*** Chaqueta – o mesmo que jaqueta (casaco curto)

 

 

publicado por Isabel A. Ferreira às 19:19

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