Mas a ignorância é a mãe da estupidez. Sempre foi, em tudo.
Quem, ontem, vandalizou a estátua do Padre António Vieira, erguida no Largo Trindade Coelho (Bairro Alto - Lisboa), além de vândalo(s) é (são) ignorante(s) ao mais alto grau.
É no que dá os governos menosprezarem o ESTUDO DA HISTÓRIA, que querem apagar, por motivos dos mais estúpidos, até porque a Humanidade tem uma História, e goste-se ou não das barbaridades que se cometeram, em nome dos homens ou em nome dos deuses, elas existiram, e têm de ser recordadas para que as gerações futuras não as repitam, se bem que haja quem não consiga aprender o mínimo dos mínimos.
E uma coisa é erguer-se estátuas a indivíduos que na sua época foram “heróis”, outra coisa é perpetuar a memória dos actos que esses "heróis" cometeram contra a Humanidade, e isso faz-se através do estudo da História, sem a apagar e não a lendo à luz dos valores do século XXI d. C. Num futuro muito longínquo, isto é, se houver futuro, talvez os "heróis" do nosso tempo também sejam desconsiderados e anulados pelos crimes cometidos contra os seres humanos, contra os seres não-humanos e contra o Planeta.
Não foi o caso do Padre António Vieira, que ergueu a sua voz contra os colonos europeus, e dedicou a sua vida aos escravos, aos negros e aos indígenas brasileiros.
E a National Geographic, num texto escrito em Bom Português, dá-nos uma pequena lição de História, acerca do padre António Vieira, que qualquer um, que esteja interessado, pode aprofundar com a ajuda de uma Enciclopédia.
Espero que os nossos governantes tenham aprendido alguma coisa, com este triste episódio, e tratem de incluir, no currículo escolar, o estudo da História, e não apenas pedaços da História, que mais convêm a quem não tem uma visão global da Humanidade e do seu percurso, para que possamos ter um futuro livre de um vírus chamado estupidez, que anda a atacar países como os EUA e o Reino Unido e, ao que parece, Portugal também.
«Padre António Vieira, defensor dos Índios»
A descoberta do Brasil provocou o choque entre duas culturas em diferentes estados de evolução. Entre conquistadores e conquistados, a voz do padre António Vieira ergueu-se contra os abusos dos colonos europeus.
Nasceu em Lisboa em 1608 e viajou muito novo com a família para São Salvador da Bahia.
Com 15 anos, iniciou o noviciado na Companhia de Jesus e, aos 26, foi ordenado sacerdote. Na hora de fazer os votos, Vieira terá acrescentado um quarto voto especial: o de dedicar a sua vida aos escravos, negros e índios do Brasil.
Com a Restauração, viajou para Lisboa e permaneceu na Europa durante os 11 anos seguintes. Tornou-se Pregador de Sua Majestade, confidente e amigo pessoal de Dom João IV, e os seus sermões cedo causaram sensação na capital. Em Novembro de 1652, o padre António Vieira trocou a vida cortesã da Europa pelas paragens remotas da selva amazónica, onde viu a oportunidade de realizar a sua verdadeira vocação num território que via os escravos, os índios e os negros como a sua principal riqueza.
Nove anos depois, o conflito com os colonos atingiu um ponto insustentável. Vieira foi expulso com os jesuítas do Maranhão e embarcado à força para Lisboa. Os índios perdiam um dos seus mais fervorosos defensores.»
Fonte:
***
«Repondo alguns factos históricos:
Sinceramente, até desconfio que quem vandalizou a estátua do Padre António Vieira, em Lisboa, foram os neonazis do "Bosta!" para incendiar os ânimos (uma técnica típica neonazi...); mas, seja como for, é importante repor aqui os factos históricos.
António Vieira foi um pensador muito avançado para o seu tempo. Não era um colonialista, até foi expulso do Brasil por se opor aos colonos, ao modo como escravizavam e oprimiam os ameríndios e os africanos, e pregou e escreveu copiosamente contra a escravatura. Foi também perseguido pela Inquisição por ter uma visão de síntese espiritual inclusiva e multicultural que se opunha ao anti-semitismo e anti-islamismo do 'santo ofício' português.
Em suma, se há uma figura histórica portuguesa que em absoluto não merece o rótulo de colonialista e esclavagista é precisamente o Padre Vieira.
É preciso afirmar aqui que, se fosse vivo, António Vieira, homem vertical e corajoso, estaria pregando e escrevendo contra o fascismo, o nacionalismo, o racismo e o monoculturalismo do extremismo ideológico.
Portanto, os neofascistas nacionalistas que tenham o pudor de não instrumentalizar essa figura que se situa nos antípodas da sua miserável visão fanática monocultura racista.
E os activistas anti-racistas que aprendam História, e canalizem a sua energia para o futuro, apreendendo as lições da História que nos diz que quem gosta de apagar, decapitar e vandalizar vestígios do passado são precisamente os fascistas... Não é através do niilismo destruidor que algo de evoluído e benéfico poderá ser construído. Os fins não justificam os meios; os meios devem já em si prefigurar os fins que desejam.
Ainda umas palavras sobre o derrube e decapitação de estátuas em vários países na esteira de 'protestos' ‘anti-racistas’.
O passado não pode, ou deve, ser apagado, seus aspectos negativos devem ser ultrapassados aqui e agora dentro do Espírito humano, criativamente e construtivamente sublimados e transmutados, apreendendo as suas lições, e evoluindo através delas.
A História é o longo percurso de aprendizagem da espécie humana, percurso feito de muitos erros e horrores, mas um caminho que também possibilitou que paulatinamente ideias luminosas como os direitos humanos, a democracia, o multiculturalismo, o universalismo, o anti-racismo, a inclusão, pudessem expandir-se e enraizar-se. Não deitemos fora o bebé com a água suja do banho!
Viva o exemplo espiritualista luminoso do Padre António Vieira! Abaixo todos os extremismos! Todos os fascismos (que existem em ambos os extremos ideológicos)!
Paz e Unidade!
Miguel Santos»
Fonte:
Este é o Mário Soares que recordo, o que me surpreendeu, e está representado nesta imagem (ao lado de Cunhal, que também me surpreendeu) e no que ela significou e significa (a imagem) na revolução de Abril.
Desde a sua morte, no passado dia 7 de Janeiro, já tudo se falou de Mário Soares: do nascimento à vida, da vida à morte, tudo já foi esmiuçado. Todos já deram o seu testemunho. Por isso nada tenho a acrescentar a esse tudo que já foi dito, a não ser que ninguém é perfeito. Mário Soares deixou-nos um legado de coisas muito boas, outras menos boas, e outras que poderiam ter sido boas se as tivesse feito (aliás, ainda ninguém foi capaz de as fazer) como, por exemplo, destruir os lobbies que mandam na Assembleia da República.
Porém, gostaria de deixar aqui um testemunho, que sendo o meu, vale o que vale, mas não pretendo repetir o que todos já disseram.
De todos os políticos que passaram pela minha vida, enquanto jornalista ao serviço de vários jornais diários nortenhos, durante vinte anos, tenho uma pequena história para contar.
De Mário Soares tenho a história do jesuíta.
Enquanto presidente da República, um dia, Mário Soares fez um périplo por algumas cidades do norte de Portugal, entre elas Santo Tirso e Vila do Conde. Em Santo Tirso ofereceram-lhe uma caixinha com jesuítas, o ex-libris da doçaria daquela cidade.
Naturalmente a caixinha viajou de Santo Tirso para Vila do Conde, nas mãos de algum segurança ou secretário.
Em Vila do Conde, depois de ter sido recebido no salão nobre da Câmara Municipal, seguiu-se um almoço, bastante informal (porque Mário Soares era pouco dado a protocolos, ou seja, não era um presidente-vedeta inacessível ao povo. Não, não era).
Os jornalistas foram convidados para esse almoço, e quem teve assento comeu, quem não teve não comeria (eu não comi). A mesa era rectangular e Mário Soares estava sentado à cabeceira, sozinho. Os restantes convidados, uns tiveram assento, outros não, porque, na verdade, a sala era demasiado pequena para a muita gente que Mário Soares sempre reunia à sua volta, por onde quer que passasse.
Os jornalistas rodeavam-no para não perder “pitada” do que dissesse.
Eu estava bem posicionada. Bem ao seu lado. Em pé. Comeu-se (quem pôde comer, obviamente) e chegado o momento da sobremesa, Mário Soares lembrou-se dos jesuítas. Onde estão os meus jesuítas? Logo um dos da sua comitiva passou-lhe para as mãos a caixinha dos jesuítas, que Mário Soares desembrulhou gulosamente (pareceu-me).
E lá estavam eles. Lourinhos. Apetitosos. Eu também era (sou) muito gulosa, e adoro jesuítas. Mas Mário Soares não sabia deste detalhe, obviamente.
O Presidente já tinha dado conta da minha presença, ao seu lado, pois de vez em quando dizia para não escrever tudo o que ele dizia, o que, pela minha parte, foi escrupulosamente cumprido (pois nunca fui de trair a Ética Profissional).
Diante dos jesuítas, Mário Soares arregalou os olhos e disse que não podia oferecer a todos, porque evidentemente não chegavam para todos.
Mas para não ser indelicado, quis oferecer, pelo menos um a alguém, para não ficar a comer sozinho aquela guloseima.
Foi então que olhou para mim e perguntou como me chamava. Isabel. Respondi. O nome da minha filha. Disse ele. E muito gentilmente pediu-me para que aceitasse um jesuíta e o acompanhasse nessa sobremesa, uma vez que não poderia partilhar esse gesto com todos.
Aceitei com muito gosto e senti-me uma privilegiada, por vários motivos: primeiro, porque ainda não tinha comido nada; segundo, porque adorava jesuítas; e terceiro, porque o Mário Soares que me tinha surpreendido ao lado de Álvaro Cunhal (que também me surpreendeu) naquela histórica manifestação de rua, tinha-me concedido a honra de comer um jesuíta com ele.
Esta é uma história banal? Pode ser.
Mas é uma história que fica na minha história, e onde eu sou uma simples figurante numa cena onde o protagonista foi obviamente Mário Soares.
Isabel A. Ferreira