Quarta-feira, 30 de Dezembro de 2009

(Des)concerto de Ano Novo

 

 

Copyright © Isabel A. Ferreira 2009

 

 

 
Um novo ano abre caminho para um lugar velho.
Nestas ocasiões costumo reflectir acerca do que se passa no mundo e ao meu redor: se os homens cresceram ou continuam crianças, eternamente teimosas, brincando aos chefes e aos bandidos, enfim, se renitentes em deixar crescer a mente para se tornarem homens responsáveis e poderem governar os destinos dos outros homens, com a lucidez necessária.
Reflicto igualmente no que eu própria fiz ou fui, e como tudo poderia ter sido diferente SE...
Entretanto, e porque foi época de troca de prendas, chegou-me do Brasil a obra «Amor – Um Livro Maravilhoso Sobre a Maior Experiência da Vida», da autoria de Leo Buscaglia, escritor de origem italiana, que me ensinou muitas coisas e fez-me reflectir sobre outras, nomeadamente a Criança – essa eterna esquecida.
Eu tinha imaginado para este início de ano uma crónica algo idêntica a um belo prelúdio, executado num bosque, com chilreio de pássaros à mistura. Contudo, uma qualquer força misteriosa (sempre presente em mim) conduz os meus pensamentos para a Criança – espécimen em extinção.
Alarmei-me, e desconfio que o meu pretendido prelúdio se transforme num desconcertado concerto de Ano Novo.
No seu livro, Leo Buscaglia fala de uma professora de arte que, um dia, desenhou no quadro negro, uma árvore que parecia um pirolito (era a árvore dela), e pediu aos alunos que também desenhassem uma, nos seus cadernos.
Um garoto (que conhecia bem as árvores, pois já «subira numa árvore, abraçara-a, caíra de lá, ouvira uma brisa através dos seus galhos...» desenhou uma «linda monstruosidade com os seus lápis roxo, amarelo, laranja e verde». Mostrou-a à professora, e esta comentou: «Que loucura!» Porque o que na realidade pretendia era que o menino desenhasse uma árvore igual ao “pirolito” que ela desenhara no quadro negro.
Esta passagem, fez-me recordar uma outra história, esta verídica, passada numa escola da cidade onde resido, com uma menina, minha amiga, tímida, por natureza (não serão as flores tímidas também, no seu desabrochar?) mas muito perspicaz e observadora.
A professora mandara a turma desenhar e pintar uma árvore. A menina desenhou então a “sua” árvore, semelhante às das outras crianças, com excepção da cor: a sua era avermelhada.
 
 
A professora ao ver tal cor na árvore, disse-lhe: «A tua árvore está errada», porque as árvores são verdes e não vermelhas. A menina, como era tímida, calou-se. Nada explicou à professora. Se esta não tinha entendido a “sua” árvore, de nada valeria explicar-lhe o que quer que fosse.
Nesse dia, a menina chegou triste a casa, e contou à mãe o sucedido: ela havia desenhado uma árvore e pintara-a de uma cor avermelhada, igual à que tinha visto no Jardim Botânico de Coimbra, numa manhã de Outono. Era tão bonita! A professora dissera-lhe que a “sua” árvore estava errada, pois as árvores são verdes. Porém, a menina já tinha visto árvores com folhas amarelas, castanhas, vermelhas, e, além disso, aquela era a “sua” árvore de Outono.
A mãe tranquilizou-a dizendo: «Deixa lá! Talvez a professora nunca tivesse olhado para as árvores, no Outono. Talvez tu pudesses ter-lhe sugerido que observasse melhor as árvores no Outono...»
Mas a menina entendeu que não valia a pena. Se a professora cresceu sem nunca ter observado as árvores no Outono, agora já não fazia diferença nenhuma...
O certo é que essa menina começou, desde então, a rejeitar a escola e a desmotivar-se pelo estudo. Na verdade, o que poderia aprender com alguém que nem sequer uma árvore de Outono conhecia?...
Se, ao contrário daquela frase seca «A tua árvore está errada», a professora tivesse perguntado: «Por que pintaste a árvore de vermelho?», a menina teria tido oportunidade de explicar-se, e que bela aula sobre o Outono e as transformações da Natureza poderia ter acontecido!
Daí para diante, a escola para esta menina foi um lugar de desencanto. E para quantas mais, por idênticos motivos, a escola não passa de um lugar de tédio?
Embora na prática, e quase inconscientemente, sempre tivesse lutado pela preservação da minha própria individualidade (cada ser humano tem a sua, e existe algo dentro de cada um que o diferencia de todos os outros), o que determinou o modo como estou no mundo, enfrentando os preconceitos dos outros, para poder ser livre (só criamos sendo livres), teoricamente, foi o que aprendi fora da escola, o que significa que o Ensino em Portugal, apesar de todas as reformas e contra-reformas, sempre dificultou o processo de ajudar o aluno a descobrir e a entender a sua própria individualidade, não lhe apontando os caminhos que poderão desenvolver essa particularidade, nem lhe mostrando como a partilhar com os outros. O que temos é um Ensino que tenta fazer com que todas as crianças sejam iguais. E é isso que me assusta.
A propósito, recordo-me que quando frequentava a Faculdade, tive uma discussão académica com o meu professor de Pré-História, na aula em que ele tentava “impingir-nos” a teoria de Darwin, sobre a Origem do Homem. Como eu já havia lido algumas outras opiniões (não entra aqui a de Adão e Eva) sobre a matéria, formulei a minha própria teoria, não menos lógica do que a de Darwin. Mas quem era eu para me atrever a desenvolver teorias que se opusessem ao que estava estabelecido como certo? Uma simples aluna que devia papaguear o que o professor dizia, sem poder emitir opiniões.
Recordo-me igualmente do meu primeiro e único “chumbo” na minha vida de estudante, quando me atrevi, num exame final, a tecer considerações sobre o «comportamento libertino do clero na Idade Média». Pedi revisão de prova, e verifiquei que em todas as minhas respostas haviam sido retirados alguns pontos (mais nessa do clero) por “irreverências” (ou seja, opinião pessoal) num tempo em que tínhamos de calar o pensamento, o que transformava os alunos em autênticos “papagaios”, o que eu, naturalmente, me recusava a ser (daí a minha nota de curso ter-se ficado por um simples 13,5).
Hoje, no pós-25 de Abril, tudo continua quase na mesma ou pior ainda. Os alunos são tratados como atrasados mentais, não lhes deixando muito campo para a criatividade (serão os professores criativos?). Nem os deficientes mentais devem ser tratados como tais. A normalidade gera a normalidade. E a criatividade gera a criatividade.
O professor deve limitar-se a mostrar as “ferramentas” do saber aos alunos, e deixar que estes criem, soltem o pensamento, sonhem, descubram algo de novo no mundo que têm ao seu alcance.
No tempo em que dei aulas (era ainda bacharel), tentei “fugir” ao programa oficial, dando liberdade às crianças (ensinava História e Língua Portuguesa) de voarem com as suas próprias asas. Cheguei mesmo a recusar-me a dar a matéria tal qual vinha no Compêndio, nomeadamente sobre as Colónias Portuguesas de África, a Guerra no Ultramar e a Acção de Oliveira Salazar, por considerar que estaria a mentir às crianças. Não tive tempo de deixar os alunos comporem o seu próprio juízo, pois nesse ano, aconteceu o 25 de Abril e o ensino da História levou outro rumo.
Porém, se eu não podia, por força das circunstâncias, conduzir os meus alunos à descoberta da sua própria individualidade, deixá-los criar o seu próprio universo (nem todos vemos as árvores do mesmo modo) então melhor foi abandonar o ensino, e, liberta de todas as amarras, dedicar-me ao jornalismo e essencialmente à criação literária, lugar onde podemos voar até ilimitadas imaginações, com as asas do pensamento.
O que fundamentalmente pretendo dizer com tudo isto é alertar os agentes da educação e do ensino (um dos grandes podres da nossa sociedade) que eventualmente possam vir a ler estas palavras, para o facto de que há um tempo para a infância, outro tempo para a adolescência, outro para a juventude, outro para o estado adulto, e outro ainda para envelhecer.
Se o ser humano não passar por estes estágios adequadamente, virá a ser um autêntico fracasso enquanto indivíduo.
A tendência, hoje, é para “fabricar” adultos precoces, autênticos “robotzinhos” informatizados e estandardizados. Se uma criança cresce pensando e agindo como um adulto, aos vinte anos sentir-se-á velha e desencantada.
Quando entre esses “robotzinhos” aparece uma verdadeira criança, dizem que «é muito infantil para a idade», embora a idade seja para ser infantil. Que é feito de valores como a inocência, a ingenuidade, a candura, tão características das crianças?
Estão a desaparecer. Vão sendo raras aquelas que pintam árvores vermelhas de Outono, uma vez que é proibido ser criativo, ser infantil, ser menino; é proibido sonhar com bolas de sabão, porque os computadores e as consolas é que são o futuro.
Avançamos no século XXI. Encontramo-nos já no ano 2010. Receio que no final deste século já não hajam crianças, por muitos, muitos motivos. Apenas uma humanidade velha e esfarrapada, aquela que sobrará de uma sociedade em decadência, num planeta igualmente a caminho da extinção.
O facto é que não sei se o tempo, se os homens e as mulheres do nosso tempo pretendem exterminar aquele encanto, aquela fantasia e até os sonhos cor-de-rosa que constituem uma parte muito essencial de toda a infância.
Hoje pretende-se que as crianças cresçam depressa, para não ter de se perder tempo com elas. Conheço mães que, para as substituir, oferecem cães aos filhos. E à noite, os filhos ficam sozinhos em casa, aos cuidados do amigo não humano, e eles (os pais e as mães) vão à discoteca, e nem sonham com o que, entretanto, se passa em casa com o seu filho.
Vem depois a droga, como alternativa, e a sociedade revolta-se contra os drogados, porque são uns marginais, uns delinquentes, uns irresponsáveis, mas ninguém procura saber o que, na realidade, está por detrás dessas fugas para o mundo da total alienação. São poucos aqueles que se drogam por caírem em armadilhas ou por simples curiosidade. A grande maioria tem uma história triste para contar. Uma história que tentam esquecer, entrando num mundo que julgam ser eternamente tranquilo e colorido...
O que pretendem os adultos fazer com a infância?
É esta reflexão que proponho para este início de ano, uma vez que não existirá futuro se as crianças de hoje não puderem sorrir e sonhar... Se não puderem ser crianças...
Isabel A. Ferreira
 
publicado por Isabel A. Ferreira às 20:00

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Quarta-feira, 23 de Dezembro de 2009

SE TE ENCONTRAS PERDIDO...

 

 

 
 
Se por acaso
 
Te encontras perdido entre os escombros
 
Em que se transformou o nosso mundo,
 
Aguarda que a noite venha...
 
Olha depois para o firmamento
 
E escolhe uma estrela, a mais brilhante
 
Dentre todas as estrelas...
 
Acolhe-a no teu coração.
 
Ela indicar-te-á o caminho
 
Que te conduzirá ao lugar onde
 
Acontecerá o milagre do Natal.
 
Esse lugar é
Dentro de ti mesmo...
    
 
Desejo a todos os leitores deste blog
um pacífico e bem-aventurado ano de 2010
publicado por Isabel A. Ferreira às 15:03

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Sexta-feira, 18 de Dezembro de 2009

O NATAL DE CAMILO

 

 

«O Natal à Espreita» – pintado à boca por Maria Apostolou
Sociedade dos Artistas Deficientes Manuais (SADM)

 

 

 
Copyright © Isabel A. Ferreira 2009
 
 
Àquela hora da noite, a cidade encontrava-se deserta. As ruas iluminadas e enfeitadas e coloridas diziam que era Natal. Nas janelas de todos os prédios, brilhavam luzes de muitas cores, vermelhas, amarelas, verdes, azuis, denunciando a existência de árvores de Natal. Como eram lindas!
 
A noite estava fria. A agitação da vida diurna da cidade dera lugar a um silêncio mágico, apenas cortado de quando em quando, por vozes e risos de crianças que, alegremente, em suas casas, celebravam a festa do Menino Jesus. Como devia ser bom ter uma família com quem partilhar a alegria de uma noite de Natal!
 
Camilo caminhava com as mãos enfiadas nos bolsos de um casaco demasiado grande para o seu corpo franzino. De olhar distante, assobiava baixinho Noite Feliz, a famosa canção de Natal. Os seus passos eram arrastados como se carregasse o peso de muita idade. Mas Camilo tinha apenas dez anos.
 
Vivia numa daquelas barracas do bairro de lata que ficava junto ao rio poluído que atravessava a cidade. Para ele, aquele fora um dia igual aos outros. Saíra cedo para a rua, na esperança de encontrar alguém que lhe desse algum pedaço de pão com que entreter o estômago. E, talvez por ser dia de Natal, tivera sorte. Uma bondosa senhora dera-lhe um grande pedaço de bolo-rei, que comera avidamente. Outra ainda oferecera-lhe um pão, duas maçãs e um pedacinho de torta de fruta, que meteu num saco de plástico e lhe entregou sorrindo.
 
Para quem é pobre, isto é um manjar caído do céu, disse-lhe a senhora, com o mesmo sorriso. E foi tudo o que Camilo conseguiu comer naquele dia.
 
A meio da tarde, voltou à barraca. Lá se encontravam os seus três irmãos mais novos, a brincar com embalagens vazias de iogurte, que haviam encontrado numa lixeira, ali perto. Sentados no chão húmido, de terra batida, com as caritas muito sujas, as três crianças sorriram ao ver Camilo entrar, na esperança que ele lhes trouxesse algo para comer.
 
– A mãe? – perguntou Camilo.
– Saiu de manhã, e ainda não voltou – respondeu o mais velho dos três, que não devia ter mais do que seis anos. Quando a mãe saía, era ele quem tomava conta dos dois irmãos, de dois e quatro anos.
 
Então, com certeza, não deviam ter comido nada, pensou Camilo. Se soubesse tinha-lhes trazido um pedaço do bolo-rei. Como estava arrependido de o ter comido todo! Enquanto pensava, Camilo olhou, com tristeza, os irmãos mais novos, que continuavam a brincar com as embalagens vazias de iogurte, sentados no chão húmido, daquela barraca suja, a que chamavam “casa”.
 
Não tardou que a mãe chegasse. Trazia na mão um saco velho de supermercado. Dentro dele havia apenas um quilo de broa, tremoços, azeitonas e uma garrafa de vinho, tudo comprado numa lojinha da baixa. O dinheiro que ganhara, naquele dia, a limpar o chão do restaurante Bom Apetite, não dera para mais nada.
 
– O pai? – perguntou Camilo, sem olhar para a mãe.
– Não me faças essa pergunta! – respondeu ela, como se tivesse acabado de ouvir um palavrão.
 
Camilo nada mais disse. Era inútil fazer perguntas. Nunca ninguém sabia por onde andava o pai. Este fazia biscates para uns e outros, e o pouco que ganhava gastava-o na taberna.
 
Havia escurecido depressa. Camilo continuava a olhar para a família, calado e triste. A mãe repartia pelos filhos esfomeados, a ceia de Natal, que trouxera dentro daquela saco de plástico. Comeram gulosamente, como se fosse o melhor dos manjares.
 
Camilo foi encostar-se à porta e olhou para a cidade iluminada, com os seus prédios altos, onde cintilavam luzes coloridas, denunciando a existência de árvores de Natal, espreitando atrás de janelas. Como eram lindas!
 
– Não comes, Camilo? – perguntou a mãe.
– Não! Já comi hoje – respondeu sem olhar para ela.
 
Naquele mesmo instante chegara o pai, cambaleando como sempre. Empurrou o filho bruscamente e entrou na barraca com um brilho feroz nos olhos, cheios de álcool. A cena a que Camilo não gostava de assistir ia repetir-se, pela enésima vez, por isso, fugiu para a cidade deserta e silenciosa, embrenhando-se na noite. Pelo menos, lá, poderia sonhar que era Natal: havia gente feliz em casas confortáveis, comendo guloseimas, rindo, brincando e recebendo presentes. Como devia ser bom ter uma família com quem partilhar a alegria de uma noite de Natal!
 
Camilo continuava a assobiar baixinho. Foi então que se lembrou da sua gaita-de-beiços, uma velha gaita que lhe dera um homem a quem havia prestado um serviço. Aprendeu a tocá-la sozinho. E como a tocava bem! Tirou-a do bolso, levou-a à boca e começou a tocar a canção de Natal, que vinha assobiando baixinho: Noite Feliz...
 
Só poderá cartar-se noite feliz, noite de paz, o Senhor Deus do amor…quando todos os dias, todas as crianças puderem viver felizes noites de Natal, pensou Camilo, enquanto continuava a percorrer as ruas, agora mais solitárias, enchendo a noite com a sua melodia…
 
Camilo caminhava lentamente, como se arrastasse o peso de uma idade que não tinha. Os sons melodiosos que tirava da sua gaita-de-beiços ecoavam pelas ruas, e Camilo tinha a esperança de que esses sons chegassem ao coração dos homens e os despertassem para uma realidade, que ele tão bem conhecia, e com isso pudesse realizar o milagre de um Natal para todos...
 
Contudo, aqueles sons não chegaram ao coração dos homens. Apenas as pedras da calçada ouviam aquela melodia, e a solidão daquela noite fria foi entrando devagar no sonho de Camilo...
publicado por Isabel A. Ferreira às 15:17

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Sábado, 12 de Dezembro de 2009

«Os Mal-Amados», livro de Fernando Dacosta

 

Copyright © Isabel A. Ferreira 2009
 
No dia do seu aniversário, a minha modesta homenagem, Fernado Dacosta.
 
 
Parabéns Fernando Dacosta!
Em 12 de Dezembro de 1945, nasce em Caxito, Angola, completando precisamente hoje, 64 anos.
Não conheço pessoalmente Fernando Dacosta. Só de nome. E que nome! Só da obra. E que obra! Um dia, talvez, me depare com ele, algures, num lugar de livros, e então, se ele não for vedeta (como penso que não será, porque quem é grande não precisa dessas coisas menores, como muitos que eu já tive o desprazer de conhecer), aproximar-me-ei dele e agradecer-lhe-ei a estética das palavras que deixou escritas nos seus livros, para meu deleite.
Sou uma leitora compulsiva. Tenho sempre uma montanha de livros à espera de serem lidos, mas nem sempre as coisas correm conforme o meu desejo. Gostaria de ter mais disponibilidade para a leitura. Mas em mim, existe também o apelo da escrita, e todas as coisas menores de um quotidiano de mulher, em idade activa, confinada à casa, porque o mercado de trabalho para alguém que escreve é absolutamente nulo. Sim, pode escrever, mas de borla (dizem-me). De borla, como se alguém pudesse alimentar-se de “borla”! O que me vale são algumas traduções e revisões tipográficas que dão para o vício: a compra de livros.
Se temos um livro para publicar, há que pagar a edição, com dinheiro que ainda não ganhámos. Talvez sejamos os únicos “obreiros” em Portugal (nos países com gente inteligente dentro, não é assim) que têm de pagar o que produzem, a “patrões”, que só mais tarde, (e é preciso andar a mendigar dois, três anos) nos dão uma migalhinha do produto desse trabalho, que, por vezes, demora anos a executar. E a sensação com que ficamos é a de que pegue lá uma esmolinha, e que seja pelas alminhas do purgatório! Quando for para o Céu, Deus Nosso Senhor a recompensará! O trabalho de criação é nosso, mas temos de pagá-lo, ao contrário das coisas normais. Isto é imoral, mas é a realidade portuguesa dos desapadrinhados da Literatura. No entanto, na primeira, quem quer cai, na segunda cai quem quer. Continuo a aguardar tempos mais inteligentes.
Daí sentir-me também mal-amada!
Mas quem sou eu, comparada com os mal-amados sobre os quais Fernando Dacosta fala no seu belíssimo livro? Não sou ninguém! E isso que importa? Nada, também!
No entanto, não é de mim, nem da minha marginalidade, como autora, que venho aqui tratar. Quero falar de Fernando Dacosta. Deste seu livro, em particular, que me deu um especial prazer a ler, e da sua escrita límpida, irrepreensível, fora da norma actual, que é a má escrita que por aí prolifera. Mas é essa má escrita que vende, e são os próprios agentes da cultura (os editores) que investem e promovem essa mediocridade. Logo ninguém se admire do estado da Nação.
 
 
Só agora tive oportunidade de ler «Os Mal-Amados» (que ficou em espera desde 2008), versão recriada do «Nascido no Estado Novo» (2001). Gosto de livros que falem de homens e de mulheres que deixam um rasto luminoso, por onde passam, e são esses, quase sempre os mal-amados.
Fernando Dacosta, jornalista e escritor de grande mérito, também ele um ser luminoso, tem uma escrita escorreita, cristalina, sem falhas, sem erros, sem obscenidades (agora tão na moda). Palavras correctamente dispostas, com grande sensibilidade, para dizer de existências, de pensamentos, de histórias, de sentimentos, de saberes.
Em «Os Mal-Amados», Fernando Dacosta fala-nos de factos da nossa História, de personalidades que a marcaram, e com quem privou e bebeu-lhes a essência da sobrevivência, neste nosso país, que parece ter nascido malfadado, mas riquíssimo em existências, gestas e gestos valorosos, que poderiam colocar-nos nos píncaros, se o povo que aqui nasceu não se tivesse em tão má auto-estima, e deixasse de venerar a inferioridade que vem de além-fronteiras.
No livro de Fernando Dacosta, além de me deleitar com a leitura da Língua Portuguesa utilizada de um modo magnífico, fascinaram-me as confidências de personalidades que, cada uma ao seu jeito peculiar, contribuíram para acrescentar ao nosso já tão rico espólio (não importa qual) algo de muito invulgar, ou não fossem essas personalidades pessoas invulgares.
Algumas delas tive também o prazer de conhecer pessoalmente, como Agostinho da Silva e Mário Viegas, entre outros, e com os quais partilhei pequenos episódios pitorescos, que talvez um dia, me dê para divulgar. Mas antes tenho muito caminho pela frente, para poder chegar aonde chegam os grandes (se é que algum dia chegarei!); ou então como chegam os que têm vidinhas pequeninas e redondinhas para contar.
Dizia então que «Os Mal-Amados» é um livro que os amantes da leitura devem ler, por todos os motivos e mais um. E esse mais “um”, é o que diz Baptista-Bastos (também este um Grande Homem Português, do Jornalismo e das Letras), na badana do livro: «Grande jornalista (o Fernando), porventura o maior repórter da sua geração; trouxe a sensibilidade, o colorido, o lado humano, secreto, porventura quase insondável dos factos quotidianos».
Abriu-nos uma janela para uma paisagem grande do nosso País e de alguns dos protagonistas da nossa história comum.
Obrigada, Fernando Dacosta.
Parabéns pelo livro, e pelo aniversário.
 
Isabel A. Ferreira
 
 
publicado por Isabel A. Ferreira às 16:41

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Sexta-feira, 11 de Dezembro de 2009

AUTO-RETRATO

 

Copyright © Isabel A. Ferreira 2009
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Sou rosa bravia
Nascida em Janeiro.
 
Sou folha caída
Em tarde invernosa.
 
Sou vento forte
Que sopra do Norte.
 
Sou tarde chuvosa,
Sou triste,
Sou só.
 
Sou vida
De Outono
Que vem e que vai.
 
Sou Sol que
Não nasce,
Sou nuvem escura,
Sou chuva que cai.
 
Sou lágrima,
Sou dor,
Sou noite sem lua,
Sou charco da rua,
Sou luz que apagou.
 
Sou rosa bravia,
Sou flor espinhosa,
Que entre a penedia
O tempo esmagou...
 
publicado por Isabel A. Ferreira às 10:48

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Terça-feira, 8 de Dezembro de 2009

AO REDOR DA GUERRA E DA PAZ

 

 

 

 

Foz do Rio Minho (Caminha - Portugal)

 

«(...) quero fazer a paz para poder banhar-me nas águas límpidas e tranquilas dos lagos, na companhia dos meus irmãos brancos, vermelhos, pretos e amarelos, simplesmente porque sim»...

 

 

 
Copyright © Isabel A. Ferreira 2009
 
Homem contra Homem simplesmente porque sim?!!!...
 
Morte, doença, fome, miséria, dor, horror, enredos, medos, dramas, ruínas, destruição, escombros, tragédias, desesperos, farrapos, gritos, escuridão, mutilações, desolação, sofrimento, loucura...
 
Isto é a guerra: simplesmente o avesso da vida.
É o que queres para ti?
 
Se é, dirás: «(...) quero fazer a guerra para poder tingir-me do sangue das pessoas que hei-de matar simplesmente porque sim».
 
Porém, se tingir-te do sangue dos teus irmãos inocentes não é o teu objectivo de vida, dirás: «(...) quero fazer a paz para poder banhar-me nas águas límpidas e tranquilas dos lagos, na companhia dos meus irmãos brancos, vermelhos, pretos e amarelos, simplesmente porque sim»...
 
O respeito é a medida de todas as nossas atitudes. A ignorância é a maior inimiga do homem. A violência vem das trevas. É chegado o momento de dizer-te o que penso sobre a guerra. Para mim é a manifestação maior da inferioridade mental dos “omens” que a querem, a promovem ou a mantém simplesmente porque sim.
 
Nenhum ser civilizado vive do lado do avesso.
 
O leão não vive do lado do avesso. Apenas mata outro animal, que não o da sua raça, para saciar a fome. O plátano e a rosa não vivem do lado do avesso. Coexistem pacificamente, unidos à terra que os alimenta, espalham sombras, aromas e libertam o oxigénio que dá vida à vida, para nosso deleite. Até o verme não vive do lado do avesso, porque esse rasteja como é da sua condição, e não mata, porque só se alimenta dos restos da morte.
 
De entre todos os seres vivos apenas o “omem” matapor matar e inventa coisas para destruir as coisas de que precisa. Irracionalmente.
 
Dizem que o lobo não pensa. Se não pensa, não sei. Sei que não fala e que só ataca se for atacado, ou se estiver esfomeado. Uma legitimidade sua. Do lobo sei também que respeita as regras da sua própria natureza.
 
E o “omem” pensa? Se pensa, duvido. Sei que fala, e ataca sem ser atacado, simplesmente porque sim. Uma brutalidade sua. Do “omen” sei também que não respeita as regras da natureza do Homem.
 
E tu, o que preferes? A paz ou a guerra? O que és? Um ser humano ou simplesmente um “omem”? Como vives? Do avesso, entre as trevas, rodeado de morte, ou respeitas a lei natural da vida, e saúdas o Sol, todas as manhãs?...
 
in Manual de Civilidade, de Isabel A. Ferreira
publicado por Isabel A. Ferreira às 12:21

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