Segunda-feira, 28 de Setembro de 2009

O Lírio, a Gota de Orvalho e a Sarça Ardente...

 

Copyright © Isabel A. Ferreira 2009
 
 
 (Fonte da imagem: Internet)
 
 
O LÍRIO
 
 
«Na verde margem do rio Ticino, cresceu um belo lírio. Alta e erecta na sua haste, a flor reflectia as suas brancas pétalas nas águas; e estas quiseram apoderar-se delas. Cada onda que passava levava consigo a imagem daquela branca corola e transmitia esse desejo às ondas que viriam a seguir. Assim, todo o rio começou a fremir, as ondas tornaram-se inquietas e velozes; e não podendo colher o lírio, bem agarrado ao solo e lá no cimo da sua robusta haste, atiraram-se, furiosas, contra a margem, arrastando consigo tudo o que havia, incluindo o lírio puro e solitário».
 
Foi através deste texto que descobri, há uns anos, o íntimo de Leonardo da Vinci. O meu primeiro encontro com o mundo exterior do grande sábio italiano aconteceu, porém, quando eu tinha apenas 15 anos e frequentava uma Escola Inglesa.
 
Por aquela época, já eu adquirira o hábito da leitura e era frequentadora assídua da vastíssima biblioteca da escola. Foi lá que conheci uma lady inglesa, muito culta e já de certa idade, que ali trabalhava como bibliotecária. Ainda me recordo da primeira vez que entrei naquela biblioteca. Dirigi-me à venerável senhora, num Inglês ainda mal pronunciado, para que me orientasse na procura de um determinado livro. A lady, olhando-me com uns olhos exageradamente abertos, disse-me na sua pausada pronúncia londrina: «Incrível! Como a sua expressão me faz lembrar Mona Lisa!»
 
Mona Lisa! A Gioconda. O nome não me era estranho. Sim, o célebre quadro de Leonardo da Vinci. Já o conhecia, mas... o que é que uma jovem de 15 anos teria em comum com uma madona italiana do século XV? Tal possibilidade entristeceu-me. Porém, a senhora bibliotecária lá teria as suas razões para fazer tal afirmação. Talvez o sorriso que sempre mantenho nos lábios! Talvez!
 
Apesar de nunca ter percebido esta estranha apreciação, o certo é que, a partir desse dia, tornámo-nos grandes amigas, e é a essa lady que devo todo o meu conhecimento não só sobre o velho sábio italiano, como sobre outros grandes nomes da História da Humanidade.
 
Depois deste episódio, comecei a dedicar algum do meu tempo a olhar o sorriso enigmático de Mona Lisa, na esperança de nele descobrir algo de comum à minha própria expressão. Mas, se por um lado nunca encontrei nada que justificasse a asserção daquela senhora inglesa, por outro, aprendi a compreender e a ter por Leonardo da Vinci, um dos génios mais versáteis de toda a Humanidade, uma admiração tal que, não fosse a minha aversão pela idolatria, teria feito dele o meu herói.
 
Entretanto, há alguns anos, ao entrar numa livraria, deparei com um título que me chamou a atenção: «Fábulas e Lendas de Leonardo da Vinci». Ao manusear o livro, abri-o, por acaso, onde estava escrita a fábula «O Lírio». Eu sabia que Da Vinci tivera uma incansável e insaciável curiosidade e nutria um sentimento muito profundo por todos os seres vivos. Era um observador apaixonado dos fenómenos da Natureza. Sabia também que a sua torturada imaginação o levou a penetrantes observações em quase todos os ramos do Saber. Chegou até a ser um exímio músico. O que eu desconhecia é que Leonardo era um admirável contador de fábulas e lendas e, ao ler «O Lírio» mergulhei repentinamente no íntimo do sábio e descobri a subtileza, a sensibilidade e a magia do seu mundo.
 
 
 (Fonte da imagem: Internet)
 
 
A GOTA DE ORVALHO
 
Porquê este encómio a Leonardo? Perguntarão, talvez, os leitores. Pois ele vem a propósito de um belíssimo filme que vi sobre a genialidade da figura e da obra de Da Vinci. Neste filme, impressionaram-me três aspectos, de tal forma que não consegui calá-los, nem resisti à tentação de partilhar o sentimento que em mim despertaram. O primeiro, foi reconhecer a grandeza do cérebro humano que, se tiver a sorte de animar um espírito sensível, quanta maravilha pode trazer à vida do Homem!
 
O segundo, foi descobrir, através da imaginação de Leonardo, a versatilidade de um dos elementos da Natureza que mais temo e, ao mesmo tempo, mais admiro – a Água: a violência das águas revoltas do mar e a suave tranquilidade das águas de um rio; a força destruidora de uma cachoeira e a brandura de uma gota de orvalho. Só um homem sábio, sensível e mágico poderia descobrir tal subtileza no Universo.
 
 
(Fonte da imagem: Internet)
 
 
 
A SARÇA-ARDENTE
 
O terceiro aspecto foi o facto de o realizador do filme não ter “matado” Leonardo da Vinci. Deixou-nos com a bela figura de um velho génio no final da vida.
 
Entre as pedras solitárias, de um solitário jardim, ficou-nos a imagem de uma sarça-ardente que, assim como a que sempre ardeu no íntimo do sábio, não mais se apagará na memória dos Homens.
 
 
 
publicado por Isabel A. Ferreira às 11:42

link do post | Comentar | Adicionar aos favoritos
Segunda-feira, 21 de Setembro de 2009

O CISNE

 

 

(Fonte: Wikipédia)

 

 

 

 

 

O cisne dobrou o flexível pescoço para a água e viu-se reflectido.

 

Então, de repente, compreendeu a razão da sua fraqueza e daquele frio que lhe atenazava o corpo fazendo-o tremer como de Inverno: e sem qualquer dúvida soube que a sua hora havia soado e que precisava de se preparar para a morte.

 

As suas penas eram ainda brancas como no seu primeiro dia de vida. As estações e os anos tinham-se passado sobre ele sem lhe manchar as vestes imaculadas; podia pois desaparecer, concluir em beleza a sua existência.

Erguendo o belo colo, dirigiu-se lenta e solenemente para debaixo de um salgueiro, onde costumava repousar durante o calor. Era quase noite. O ocaso estava agora tingido de púrpura e a água do lago tinha um tom violeta.

 

E no silêncio que havia em tudo, o cisne começou a cantar.

Até aí, nunca encontrara acentos tão plenos de amor pela natureza, pela beleza do céu, da água e da terra. O seu canto dulcíssimo espalhava-se no ar, velado de nostalgia, até que, pouco a pouco, se foi extinguindo conjuntamente com a derradeira luz do horizonte.

 

– É o cisne – disseram comovidos os peixes, os pássaros, todos os animais do prado e do bosque – é o cisne que morre.

 

in Fábulas e Lendas – Leonardo da Vinci  

 

publicado por Isabel A. Ferreira às 16:00

link do post | Comentar | Adicionar aos favoritos
Terça-feira, 15 de Setembro de 2009

EVOCANDO O TROVADOR JACK DESKA, UM SAUDOSO AMIGO...

 

 

Copyright © Isabel A. Ferreira 2009

 

 

 

 

Era um melancólico fim de tarde, já no longínquo mês de Setembro de 1991. Havia chovido e a rua encontrava-se cheia de poças de água, onde se reflectiam as nuvens.
Eu descia a rua em direcção a casa, tentando não molhar os pés, pois calçava sapatilhas. Seguia distraída com o leve burburinho que me rodeava.
De súbito, fui despertada por um assobio harmonioso, cristalino, fascinante, e depois uma voz doce e ao mesmo tempo vigorosa: «Ne me quitte pas, ne me quitte pas, ne me quitte pas...».
Segui aqueles sons, já completamente rendida à perfeição daquela interpretação, que não sendo do inigualável Jacques Brel, deveria ser de alguém com um espírito semelhante, ou sofredor de um mal de amor.
Uns passos mais adiante, deparei-me, então, com o dono daquela voz, que me fascinou, rodeado de uma pequena multidão. O som que me entrava na alma pregou-me ao chão, e ali fiquei, com os pés enfiados numa poça de água, escutando o Trovador, a interpretar Brel, magnificamente.
Que importava a rua, cheia de poças de água! Que importava o chão, o cimento, os ladrilhos feios, se estava diante de um Trovador, dos autênticos, daqueles que cultivam a música e a poesia com amor!
Que importava a fealdade que me rodeava se eu tinha diante de mim a arte personificada?
Esqueci-me de tudo. E ali fiquei cativa da voz daquele menestrel do século XX, até que um aguaceiro me despertou para a realidade.
Havia descoberto um artista? Não resisti e aproximei-me do jovem, que entretanto se abrigara debaixo do toldo de uma ourivesaria. Precisávamos conversar, disse-lhe.
Soube então, logo ali, que outros antes de mim o haviam descoberto: já fora duas vezes à televisão (aos programas «Às Dez» e «Bom Dia»); já saíra nas páginas d’ O Primeiro de Janeiro, do Diário de Coimbra e do Miroir de Paris.
Sim, era possível, porém, os “outros” haviam descoberto o cantor de rua, o goliardo leigo (que ele dizia não ser).
A mim coube-me descobrir, para além daquele olhar azul, límpido e pleno de nostalgia, o verdadeiro, o autêntico Trovador. O mensageiro da liberdade, da fraternidade, da igualdade. O arauto da paz, do amor, da paixão, mas também da raiva e da revolta contra as injustiças de uma sociedade imensamente desequilibrada e desarmoniosa.
Entrámos numa pastelaria, enquanto chovia, e foi aí que, subtilmente, fui entrando no mundo de Jack Deska, o Trovador.
Jack Deska nascera em Villepinte, uma pequena aldeia perto de Paris, em 1 de Maio de 1963. Depois de uma infância um tanto atribulada, decidiu correr mundo, levando consigo a sua viola (violão ou guitarra clássica), um amplificador e a sua arte de rua.
Um dia descobrira que a música era a chave para a felicidade e para a comunicação. Tímido, por natureza, sem a sua viola não conseguia comunicar.
Depois de ter vivido em grandes cidades como Amesterdão e Berlim, Jack passou por Ibiza, onde um agente da lei lhe sugeriu que “desandasse” dali e fosse para o «lixo da Europa», isto é, Portugal.
O Trovador pôs-se então a caminho. Quis conhecer o “lixo” de que lhe falara o agente. E foi nesse “lixo” (que Jack considerou o paraíso) que se fixou, durante cinco anos. Tinha vindo para ficar. Viveu durante algum tempo na “Pensão do Norte”, no Porto. Gostava do nosso país, porém, sentia que os jovens portugueses eram psicologicamente velhos.
Para muitos deles, a liberdade tinha o significado de “libertinagem”, o que para Jack era extremamente lamentável.
O Trovador cultivava a liberdade, tal como os pássaros. Não com asas físicas, mas com as asas do pensamento. Ele não era um marginal, só porque cantava na rua. Nem sequer um mendigo, pois nada pedia, quem quisesse atirava-lhe uma moeda para a caixa da viola.
Jack Deska era, sobretudo, um sonhador. Um idealista. Temia o sucesso (se algum dia viesse a tê-lo), porque a sua privacidade ficaria comprometida. Por isso, preferia as ruas para cantar Jacques Brel, Joe Dassin, Edith Piaf Gilbert Becaud e as suas próprias composições. O sucesso talvez o privasse de ir comprar o seu queijo, todas as manhãs, um ritual que Jack não dispensava. E isso amedrontava-o.
Gostaria, sim, como qualquer cantor, de gravar um CD. E um dos seus sonhos era actuar no palco do Coliseu do Porto, onde Rui Veloso (de quem era um grande admirador) já pisara tantas vezes.
Eu, como sabia o que era sonhar e realizar sonhos, se ninguém o fizesse antes de mim, levá-lo-ia eu a actuar no Coliseu, num dos espectáculos que, anualmente, lá organizava para o público mais jovem. Era um sonho que o Trovador veria realizado. Prometi-lhe. Ele delirou.
Contudo, o seu sonho ficou por realizar. Morreu poucos meses antes de subir ao palco do Coliseu, como já estava programado.
Jack Deska tinha um companheiro: o seu inseparável ratinho branco, a quem carinhosamente chamava o Trovadorzinho, que, aninhado junto ao seu pescoço, de olhinhos fechados, ouvia, como que hipnotizado, a actuação do seu amigo, e a sua voz de menestrel e o seu fascinante assobio, semeando arte pelas ruas.
Um Trovador atravessou aquela tarde. Foram muitos aqueles que o viram e ouviram. Porém, de entre essa multidão, que lhe ia enchendo a caixa da viola com moedas, talvez ninguém tivesse se apercebido de que estava diante de uma alma poética, de um sonhador, de uma mensageiro da arte, e não de um simples “mendigo”, como o consideraram.
Um Trovador passou pela cidade, num fim de tarde, no já longínquo mês de Setembro de 1991 e, nesse dia, a arte enfeitou a rua...
 
***
Depois daquele encontro, eu e o Jack tornámo-nos grandes amigos. Vivemos impensáveis peripécias kafkianas, numa esquadra de polícia, onde estive detida por uns escassos dez minutos, por defender a Arte do Trovador.
Do Trovadorzinho, para quem o Jack arranjou uma companheira, fiquei com a recordação do meu Ratolinha, igualzinho ao pai, e também muito amoroso, que gostava de partilhar comigo a maçã do meu pequeno- almoço, e aninhar-se no meu pescoço, enquanto eu escrevia.
Um dia, Jack Deska conseguiu comprar um carro velho, para mais facilmente poder deslocar-se pelo país. Perdi-lhe o rasto, durante uns dois anos. Tinha ido para a Alemanha, de onde me enviou um postal, a dizer de si e das suas mágoas.
 
 
 
Passou-se  algum tempo mais, já não me lembro quanto, descia eu a mesma rua, também num fim de tarde, talvez no ano de 1997, e tornei a ouvir um assobio, que me era familiar. Segui-o, como outrora. E lá estava o Jack, numa esquina, a cantar Et si tu n'existais pas, de Joe Dassin. Estava mais magro, mais velho, mais esfarrapado, mais amargurado.
Quando me viu, parou de cantar Dassin e passou imediatamente para Brel, com Ne me quitte pas... A minha canção preferida. E ali fiquei novamente pregada ao chão, rendida à voz e às palavras do Trovador.
Fomos depois lanchar à “nossa” pastelaria, onde me contou as suas desventuras por terras alemãs. Andava perdido. Fora para esquecer o seu amor impossível. Um músico de rua não convinha à “professorinha” que ele amava. A família dela era absolutamente contra aquele romance, e estávamos numa época em que o peso de uma sociedade conservadora impedia um amor assim, tal como no tempo de Romeu e Julieta.
Porém, a saudade da sua amada trouxera-o de volta a Portugal. Tinha esperança, agora que os tempos eram outros. Mas não resultou, uma vez mais. E uma vez mais ia partir. Desta vez para sempre. Confidenciou-me. E aquela foi a última conversa que tivemos, e a última vez que o vi.
Partiu para Villepinte, sua terra natal, na sua carripana.
Mais um tempo se passou, sem notícias. No dia 10 de Outubro de 1998, já ao fim da tarde, recebi um telefonema da sua “professorinha” (como ele amorosamente tratava a sua amada) a contar-me da sua morte, dias antes, a 7 daquele mês.
Desta vez, vinha de vez, para ficar com ela. Iam viver juntos em Coimbra. Ao atravessar Espanha, porém, numa auto-estrada, Jack sentir-se-ia mal e encostou o carro na berma, não muito distante de um Posto de Gasolina. Alguém reparou que aquele carro, já estava ali parado à demasiado tempo, e foram averiguar.
Jack Deska estava morto, debruçado sobre o volante.
A rua fora o seu lugar de vida. A estrada o seu lugar de morte. Talvez a emoção de vir, finalmente, ao encontro do seu grande amor, lhe provocasse o enfarte de miocárdio que o vitimou.
Devido à burocracia e à recusa da sua família em que fosse enterrado em Coimbra (como ele um dia preconizara, para ficar mais perto da sua amada) o seu enterro realizou-se quase um mês depois.
O féretro foi acompanhado ao som das canções que Jack celebrizara em vida e que o grupo de amigos, que o velou, cantou em sua homenagem, a caminho de uma campa, onde ficou sepultado, no Cemitério da Conchada, em Coimbra.
 
***
Por que evoquei, Jack Deska?
Porque foi num dia assim, como o de hoje, que o conheci. E hoje, ao descer aquela rua, não ouvi o seu assobio, nem aquele Ne me quittes pas,cantado com o coração em chamas, tal como Jacques Brel o cantava, por sofrerem ambos do mal de amor.
Além disso, este é um modo de manter vivo um Trovador excepcional, condenado ao esquecimento, por temer o sucesso, que o impediria de ir comprar o queijo, que partilhava com o seu Trovadorzinho, todas as manhãs...
publicado por Isabel A. Ferreira às 18:42

link do post | Comentar | Ver comentários (3) | Adicionar aos favoritos
Sexta-feira, 4 de Setembro de 2009

CONVERSAS PRA BOI DORMIR...

 

Copyright © Isabel A. Ferreira 2009
 
 
 
Hoje despertei com saudades dos lugares da minha infância, passada lá no outro lado do Atlântico, num país de enormes contrastes, onde uma vegetação tropical exuberante e uma fauna variadíssima coexistem lado a lado, com regiões extremamente desérticas, dominadas por terras secas, onde nem as salamandras se atrevem a explorar.
Viver num país como o Brasil, enriquece a existência de qualquer mortal, mormente quando nos propomos ser protagonistas de tudo o que nos rodeia, como se a vida fosse um enorme palco, onde todos pudéssemos fazer de actores.
Foi no Brasil que aprendi as primeiras letras, ouvi as primeiras histórias, vivi as minhas primeiras aventuras, e os sonhos, muitas vezes, transformaram-se em realidade, tanto que hoje, é-me difícil separar com nitidez, as experiências sonhadas, das experiências vividas. Porém, a riqueza do conteúdo da vida é muito mais importante do que qualquer conceito do real ou do imaginário.
A minha existência foi, desse modo, povoada de uma infinidade de pequenos episódios, os quais, cada um por si só, daria grandes temas para longas conversas, como aquele do meu encontro com uma enorme aranha negra, que se passeava tranquilamente pelo chão de terra batida, de um barraco de favela, deixando-me totalmente paralisada, tal o medo, o respeito e o fascínio que aquele belíssimo ser exerceu sobre mim.
As pessoas que me rodeavam, uma preta velha, uma criança e a mãe desta, reagiram como se estivessem diante do próprio demónio, embora (só mais tarde o soube) aquela não fosse a primeira vez que se viam em tal situação.
Para mim, porém, a visão de uma aranha negra com a dimensão de um ovo estrelado, no chão de um mísero barraco, constituiu o meu primeiro despertar para os medos, as dificuldades, os tormentos dos que vivem em favelas.
E a presença de enormes aranhas não era tudo. Pouco a pouco, fui descobrindo o mundo de privações que é o de uma favela, apenas compensadas pela glória suprema de se ser rei ou rainha de uma Escola de Samba, e desfilar no asfalto escaldante das grandes avenidas engalanadas, rodeadas de multidões.
Um pouco mais abaixo, vivia eu, numa casa visitada apenas pelos carapanãs (mosquitos sugadores de sangue), nos dias mais quentes. Ao fundo do meu quintal, costumava brincar “aos tarzans” com o meu irmão, em cima de uma goiabeira, que dava goiabas quase tão grandes como laranjas. Ali, eu era livre e estava resguardada dos perigos. Sabia que não seria surpreendida por nenhuma enorme aranha negra intrometida.
Contudo, a minha existência, naquele fim de mundo, foi povoada por outros animais bem menos terríveis. Num terreno atrás da casa onde eu vivia, um Português, que tinha negócio de leitaria, dava guarida a uma porca que se encontrava prenhe. Quando nasceram os leitõezinhos, o leiteiro ofereceu-me uma leitoa, logo que foi desmamada.
Criei-a como se fosse uma gatinha. E a leitoa foi crescendo, comendo, crescendo, até ficar enorme, e era tão limpa como o seria uma gata. Havia, porém, um particular: a leitoa gosta de dormir a sesta em cima do tapete do meu quarto, onde o Sol fazia pouso.
Criei igualmente uma cabrinha branca, como se fosse uma cachorrinha – a Ximbica – e ela era também da casa. Cirandava de cá para lá, no quintal, e, por vezes, atrevia-se a entrar, timidamente na cozinha ou nos quartos, sempre com muito respeito pelo espaço que ela sabia não lhe pertencer.
Levava-a, então, a pastar nos prados que existiam atrás do meu quintal, e, enquanto a cabra pastava, sentava-me à sombra de uma enorme mangueira, a ouvir as “conversas pra boi dormir” (conforme ele próprio dizia) que um preto velho me contava enquanto guardava o seu rebanho, que assim como o meu, era constituído por uma só cabra.
E como aquelas conversas me encantavam e faziam pensar! Conduziam-me até à África onde viviam intrépidos guerreiros e feiticeiros mascarados. Transportavam-me ao tempo da escravatura, e eu “vivia” o cativeiro dos antepassados daquele preto velho, quase com tanto realismo como ele próprio vivia. E também chorava com ele.
Enquanto a conversa rolava, monotonamente, entre terras africanas e grandes engenhos de açúcar, as duas cabrinhas pastavam tranquilamente, alheias aos grandes dramas que fizeram a história de um povo.
Um dia, a porca morreu. E a cabra foi atropelada quando atravessava a estrada que dividia o prado e as traseiras do meu quintal.
Lembro-me que chorei. A experiência tinha sido fantástica. Afinal, o homem consegue conviver com qualquer animal, humanamente, desde que o trate como tal.
Apesar de já não ter cabra para levar a pastar, continuei a ir ouvir as conversas pra boi dormir que me contava o preto velho, à sombra daquela enorme mangueira, e o mundo, já então, me parecia tão cruel para aqueles que nascem de costas voltadas para o Sol.
 
 
Hoje deixei que recordações invadissem o meu espírito e me transportassem ao tempo em que, entre coqueiros, palmeiras, mangueiras, goiabeiras e as águas límpidas e tranquilas das praias que frequentava, sonhava que o mundo seria um paraíso igual ao que eu havia sonhado para mim.
Afinal, como estava enganada!...
publicado por Isabel A. Ferreira às 14:15

link do post | Comentar | Adicionar aos favoritos

Mais sobre mim

Pesquisar neste blog

 

Março 2024

Dom
Seg
Ter
Qua
Qui
Sex
Sab
1
2
3
4
5
6
7
8
9
10
11
12
14
15
16
17
19
20
21
22
23
24
25
26
27
28
29
30
31

Posts recentes

«Não há a mínima TOLERÂNC...

São José festejado em San...

Brasileira diz que são os...

Legislativas 2024: nenhum...

Parabéns, Colômbia sem to...

Os milhares de pessoas pr...

Dois anos de guerra na Uc...

«Bicadas do Meu Aparo: “P...

Na passagem do 97º aniver...

Aleixei Navalny, um símb...

Arquivos

Março 2024

Fevereiro 2024

Janeiro 2024

Dezembro 2023

Novembro 2023

Outubro 2023

Setembro 2023

Agosto 2023

Julho 2023

Junho 2023

Maio 2023

Abril 2023

Março 2023

Fevereiro 2023

Janeiro 2023

Dezembro 2022

Novembro 2022

Outubro 2022

Setembro 2022

Agosto 2022

Junho 2022

Maio 2022

Abril 2022

Março 2022

Fevereiro 2022

Janeiro 2022

Dezembro 2021

Novembro 2021

Outubro 2021

Setembro 2021

Agosto 2021

Julho 2021

Junho 2021

Maio 2021

Abril 2021

Março 2021

Fevereiro 2021

Janeiro 2021

Dezembro 2020

Novembro 2020

Outubro 2020

Setembro 2020

Agosto 2020

Julho 2020

Junho 2020

Maio 2020

Abril 2020

Março 2020

Fevereiro 2020

Janeiro 2020

Dezembro 2019

Novembro 2019

Outubro 2019

Setembro 2019

Agosto 2019

Julho 2019

Junho 2019

Maio 2019

Abril 2019

Março 2019

Fevereiro 2019

Janeiro 2019

Dezembro 2018

Novembro 2018

Outubro 2018

Setembro 2018

Agosto 2018

Julho 2018

Junho 2018

Maio 2018

Abril 2018

Março 2018

Fevereiro 2018

Janeiro 2018

Dezembro 2017

Novembro 2017

Outubro 2017

Setembro 2017

Agosto 2017

Julho 2017

Junho 2017

Maio 2017

Abril 2017

Março 2017

Fevereiro 2017

Janeiro 2017

Dezembro 2016

Novembro 2016

Outubro 2016

Setembro 2016

Agosto 2016

Julho 2016

Junho 2016

Maio 2016

Abril 2016

Março 2016

Fevereiro 2016

Janeiro 2016

Dezembro 2015

Novembro 2015

Outubro 2015

Setembro 2015

Agosto 2015

Julho 2015

Junho 2015

Maio 2015

Abril 2015

Março 2015

Fevereiro 2015

Janeiro 2015

Dezembro 2014

Novembro 2014

Outubro 2014

Setembro 2014

Agosto 2014

Julho 2014

Junho 2014

Maio 2014

Abril 2014

Março 2014

Fevereiro 2014

Janeiro 2014

Dezembro 2013

Novembro 2013

Outubro 2013

Setembro 2013

Agosto 2013

Julho 2013

Junho 2013

Maio 2013

Abril 2013

Março 2013

Fevereiro 2013

Janeiro 2013

Dezembro 2012

Novembro 2012

Outubro 2012

Setembro 2012

Agosto 2012

Julho 2012

Junho 2012

Maio 2012

Abril 2012

Março 2012

Fevereiro 2012

Janeiro 2012

Dezembro 2011

Novembro 2011

Outubro 2011

Setembro 2011

Agosto 2011

Julho 2011

Junho 2011

Maio 2011

Abril 2011

Março 2011

Fevereiro 2011

Janeiro 2011

Dezembro 2010

Novembro 2010

Outubro 2010

Setembro 2010

Agosto 2010

Julho 2010

Junho 2010

Maio 2010

Abril 2010

Março 2010

Fevereiro 2010

Janeiro 2010

Dezembro 2009

Novembro 2009

Outubro 2009

Setembro 2009

Agosto 2009

Julho 2009

Junho 2009

Maio 2009

Abril 2009

Março 2009

Fevereiro 2009

Janeiro 2009

Dezembro 2008

Novembro 2008

Outubro 2008

Setembro 2008

Agosto 2008

Julho 2008

Direitos

© Todos os direitos reservados Os textos publicados neste blogue têm © A autora agradece a todos os que os divulgarem que indiquem, por favor, a fonte e os links dos mesmos. Obrigada.
RSS

AO90

Em defesa da Língua Portuguesa, a autora deste Blogue não adopta o Acordo Ortográfico de 1990, nem publica textos acordizados, devido a este ser ilegal e inconstitucional, linguisticamente inconsistente, estruturalmente incongruente, para além de, comprovadamente, ser causa de uma crescente e perniciosa iliteracia em publicações oficiais e privadas, nas escolas, nos órgãos de comunicação social, na população em geral, e por estar a criar uma geração de analfabetos escolarizados e funcionais. Caso os textos a publicar estejam escritos em Português híbrido, «O Lugar da Língua Portuguesa» acciona a correcção automática.

Comentários

Este Blogue aceita comentários de todas as pessoas, e os comentários serão publicados desde que seja claro que a pessoa que comentou interpretou correctamente o conteúdo da publicação. 1) Identifique-se com o seu verdadeiro nome. 2) Seja respeitoso e cordial, ainda que crítico. Argumente e pense com profundidade e seriedade e não como quem "manda bocas". 3) São bem-vindas objecções, correcções factuais, contra-exemplos e discordâncias. Serão eliminados os comentários que contenham linguagem ordinária e insultos, ou de conteúdo racista e xenófobo. Em resumo: comente com educação, atendendo ao conteúdo da publicação, para que o seu comentário seja mantido.

Contacto

isabelferreira@net.sapo.pt