Terça-feira, 24 de Março de 2009

O NAZARENO – REFLEXÃO EM TEMPO DE QUARESMA

 

Copyright © Isabel A. Ferreira 2009
 
 
(Mosteiro de Oseira - Ourense)
 
 
Aconteceu há mais de dois mil anos.
Um Homem foi levado ao cimo de uma colina para ser crucificado entre dois outros homens. Assim exigia a lei daquele tempo. Entre uma multidão de inimigos políticos e descrentes furiosos uns, seguidores e amigos, outros, aquele Homem seguia por ruas estreitas e tortuosas, carregando aos ombros uma pesada cruz de madeira.
 
Caminhava em silêncio. Sem um lamento. E, quando, já no alto da cruz, Longuinhos, um dos soldados romanos encarregados de o crucificar, atravessou o seu corpo com uma lança, ele ainda teve força para dizer: «Pai, perdoai-os. Eles não sabem o que fazem».
 
Quem seria aquele ser possuidor de tão grande capacidade de perdoar? Um Deus progressivamente humanizado? Ou um Homem que, pela sua inteligência e poder de sedução foi divinizado por um povo que nele viu o libertador que esperava há longo tempo?
 
Jesus Cristo é, sem dúvida, a personagem que mais controvérsia tem levantado no estudo da História da Humanidade. Arqueólogos, Orientalistas, Filósofos, Cientistas e outros estudiosos têm procurado, por todos os meios e mediante um estudo comparado, meticuloso e crítico, das fontes que dele falam, dar uma explicação lógica, racional e científica para a existência histórica de Jesus, que, segundo uns, existiu na realidade. Para outros, não passa de um mito.
 
Não está no âmbito do esboço que me propus fazer da personalidade humana de Cristo, discutir as diversas e divergentes opiniões dos estudiosos acerca da historicidade de Jesus. Deixarei aqui apenas alguns pontos para uma reflexão: o Homem que mais ou menos num período de dois anos fez e disse coisas na Palestina que alteraram profundamente o curso da história da Humanidade poderá ser somente uma personagem fruto da imaginação de um povo? Aqueles que se recusaram a aceitar a sua existência história, negam-no, talvez, porque a tendência dos cépticos é negar tudo aquilo que transcende a sua compreensão e vai além do seu raciocínio.
 
No entanto, entre os que acreditam, as interpretações acerca dos actos humanos de Jesus, variam consideravelmente.
 
Para Reimarus, distinto orientalista e professor de línguas orientais, Cristo foi um agitador político que procurou suscitar os judeus para uma revolta contra os romanos. Falhando a revolta, com a sua morte, os seus adeptos destruíram o objectivo do Mestre, apresentando-o como um renovador espiritual e religioso.
 
O filosofismo francês, mais radical, chama Cristo “vaidoso” e a São Paulo “energúmeno e insensato”.
 
Harnack (da Escola Liberal) considera Jesus um génio que soube transmitir uma mensagem à Humanidade nunca apresentada por outrem.
 
E. Renan (arqueólogo e orientalista dotado de uma grande imaginação) observou: «Toda essa história que à distância parece flutuar nas nuvens do mundo irreal, tomou um corpo e uma solidez que me espantaram. O acordo impressionante dos textos com os lugares; a maravilhosa harmonia do ideal evangélico com a paisagem que lhe serviu de quadro foram para mim uma revelação».
 
Sobre a sua interpretação pessoal de Cristo, Renan diz: «Uns, querem fazer de Jesus um sábio, outros, um filósofo, outros ainda, um patriota, outros, um Homem de bondade, outros, um naturalista, outros, um santo. Mas não foi nada disso. Foi um sedutor, não no sentido pejorativo da palavra, mas no bom sentido. Jesus impunha-se às multidões e às pessoas pela sua bondade; sabia convencer, sabia consolar; tinha uma capacidade de seduzir tal que as pessoas aderiam a ele com uma facilidade espantosa».
 
A Escola Escatológica, por sua vez, pretendeu enraizar a pessoa de Cristo no seu tempo e no seu meio. Quais seriam os ideais judaicos na sua época? No tempo de Jesus o povo estava desejoso de se libertar do jugo romano, e aguardava com ansiedade, uma pessoa extraordinária, um grande mestre, um chefe político e militar que, um dia havia de libertá-lo e trazer-lhe a paz. Os seguidores desta Escola consideram Cristo um visionário. Um fanático que tentou levar a cabo uma revolta contra os romanos.
 
 
 
 
(Igreja Matriz de Ovar)
 
 
 
 
ECCE HOMO
 
ALGUNS ASPECTOS DA PERSONALIDADE HUMANA DE CRISTO
 
 
Jesus nasceu em Belém de Judá, na Palestina. Viveu na Galileia e em Nazaré. Mas foi nas margens do Lago de Tiberíades, lago de águas doces e com pesca abundante, que Jesus passou grande parte da sua vida.
 
Seu pai adoptivo, José, era carpinteiro, e supõe-se que Cristo seguiu essa profissão como era costume da época. Mas desde muito cedo, a sua inteligência, a sua sede de saber o distinguiram de entre os outros homens. Era tratado com deferência concedida aos escribas e como tal era consultado, e tratado por rabi ou professor. Supõe-se igualmente que Jesus passou grande parte da sua vida a estudar a religião do seu povo, para melhor compreender a sua sobrevivência e os seus anseios.
 
Jesus era um Homem solitário que passava longas horas em estreito convívio com a Natureza, orando e em contemplação. Essa solidão fez dele um poeta que olhava a vida e a Natureza com profundo entendimento e doce simpatia. Era um Homem que sabia ouvir e transmitir a palavra de Deus entre o ruído e o tumulto das multidões. Aproveitava os momentos solitários para reflectir sobre os graves problemas que afligiam o seu povo.
 
O Nazareno possuía um magnetismo capaz de controlar multidões com uma só palavra. O seu poder sobre os poderosos contrastava com uma igual ternura pelos menos fortes e desamparados, pelas vítimas de desgraças ou vícios ou injustiças. E também pelas mulheres e crianças. Era um Homem profundamente entendido das fraquezas humanas. Irresistível. De uma simplicidade e incontestável integridade. Um Homem que se entregou totalmente à causa da Humanidade.
 
Era um excelente orador. Em debate, ele mostrava constantemente a sua habilidade em penetrar no âmago dos problemas, e os seus opositores, desde cedo, se aperceberam de que não tinham como argumentar com ele. O seu poder e conhecimento, no entanto, tornavam-no infinitamente paciente com os mais ignorantes. Chamavam-no o amigo dos pecadores, e ninguém melhor do que os pecadores conhecia a qualidade da sua amizade.
 
Era um meigo Nazareno, a distribuir perdões. Era doçura que afagava os pequeninos. Era bondade que perdoava a mulher adúltera. Contudo, quando confrontado com a hipocrisia, com a injustiça ou com a opressão a sua indignação era imensa.
 
Jesus é tido como a personagem mais exigente da História em matéria de adesão a princípios doutrinários. Dizia ele: «Ninguém pode servir a dois senhores. Quem crê em mim tem a vida eterna. Eu sou a Luz do mundo; quem me segue não anda nas trevas».
Cristo foi sempre totalmente ele mesmo. Sempre pronto, porque agiu sempre com toda a sua consciência luminosa e com a sua vontade enérgica e total. Tinha a extraordinária lucidez de quem sabe perfeitamente o que pretende e uma firmeza inquebrantável de vontade de quem possui tranquila mas plena consciência da sua autoridade. E estes são os dois traços mais distintos da natureza humana de Jesus.
 
O Nazareno cresceu no seio da religião judaica e experimentou as esperanças e aspirações do seu povo, partilhando com ele as suas crenças no reino de um Deus único e universal, e na vinda de um Messias. Rejeitou firmemente a política económica, a propaganda, a intriga e a violência pelos quais o poder político de Roma era exercido na Palestina.
 
Assim era Jesus de Nazaré.
Assim era o Homem que por ter pregado o ideal de uma nova vida, baseada no princípio da Igualdade, da Fraternidade e da Liberdade entre todos os homens, ideal que punha em perigo o imperialismo romano e o poder do Sinédrio, foi condenado à morte.
 
Ontem, assim como ainda hoje, o assassinato político é a forma a que os tiranos, que governam o mundo, recorrem para calar os chamados agitadores de multidões oprimidas.
 
Mas o poder do Nazareno foi maior do que o do mais poderoso dos tiranos. Ao terceiro dia ressuscitou dos mortos e provou a toda a Humanidade que ele era o filho de Deus feito Homem.
publicado por Isabel A. Ferreira às 19:30

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Segunda-feira, 16 de Março de 2009

LÊDO IVO – O POETA DAS PALAVRAS LUMINOSAS

 

Copyright © Isabel A. Ferreira 2009
 
 
 
(Lêdo Ivo, na Póvoa de Varzim - 2009)
 
 
 
Foi este ano, no Correntes d’Escritas, na Póvoa de Varzim, que tive a honra de conhecer, pessoalmente, o poeta Lêdo Ivo.
 
Já conhecia o seu nome, de ouvir falar nos seus versos, há tanto tempo! Desde o tempo em que me perdia a brincar nos campos verdes, onde cresciam as bananeiras, nas traseiras da casa onde vivia, nas cercanias de Niterói (um município do Estado do Rio de Janeiro – Brasil) na minha primeira infância.
 
Lêdo Ivo era já o Poeta.
Mais tarde li os seus versos, que ficaram em mim. Nas várias viagens que realizei, atravessando o Atlântico, entre Brasil e Portugal, perdi os seus livros (e outros também). Foram ficando pelo caminho. Não sei! O que sei é que o que li de Lêdo Ivo foi há muito tempo. No entanto, as suas palavras luminosas permaneceram no meu subconsciente, adormecidas. Mas não esquecidas.
 
O tempo passou, e outros poetas cruzaram a minha vida.
Quando vi o seu nome incluído na lista dos escritores que, este ano, participariam no Correntes d’Escritas, os seus versos regressaram à minha memória: finalmente iria conhecer Lêdo Ivo.
 
Portanto, foi com muita emoção que me vi diante do Poeta.
Procurei os seus livros na Feira do Livro que sempre acompanha o evento, e não encontrei nenhum, para grande desgosto meu.
 
Abordei então o Poeta. A sua simpatia e simplicidade fizeram jus à sua fama de um dos maiores poetas brasileiros. Lêdo Ivo não é uma vedeta. É simplesmente um Poeta. E isso faz dele o verdadeiro Poeta.
 
Faço questão de frisar este pormenor, porque, nesse mesmo evento, abordei um outro poeta, português, tido como de “grande craveira”, e saiu-me uma “vedeta”, o que me decepcionou sobremaneira, até porque tenho aversão a vedetas, de todas as áreas artísticas.
 
Continuando com o que interessa: abordei Lêdo Ivo, e perguntei-lhe, entre outras coisas, se não tinha nenhum livro dele à venda em Portugal. Não tinha. E acrescentou: «Se você quiser me dê o seu endereço que a minha editora lhe enviará um dos meus livros». Com certeza que aceitei. O Poeta tirou um papel do seu bolso, e entregou-mo para eu lá escrever o meu endereço, com a nota “enviar livro”. Assim fiz.
 
Entretanto, como sempre faço, amadoramente, fui captando na minha máquina fotográfica, momentos inesperados, os que me foram parecendo singulares. Foi então que vi Lêdo Ivo, recostado a uma das cadeiras do Auditório, com um olhar submerso em algum mundo íntimo, só dele, estava ali e não estava, e fixei esse momento e esse olhar únicos.
 
Escusado será dizer que este meu encontro com o Poeta brasileiro encheu-me a alma. Faltava porém, um pormenor: será que ele esquecer-se-ia da promessa que me fez?
 
Não esqueceu, ao contrário das nossas “vedetas” que não cumprem o que (quase de má vontade) prometem aos seus leitores (parecendo que temos obrigação de ser seus leitores).
 
Um destes dias, chega-me pelo correio o seu Plenilúnio (2004), publicado pela Topbooks Editora, com uma dedicatória muito simpática.
 
Um livro lindo, não só graficamente, como pelo seu conteúdo de palavras luminosas. Versos feitos de águas límpidas, onde mergulhamos e sentimos que o silêncio nos envolve, como num ventre materno, e todo um universo de sensações nos aquieta a alma, porque o «plenilúnio é lume que ilumina» (diz o Poeta), embora a morte ronde o lugar onde a vida se esconde. Porém, vida e morte fazem parte do mesmo percurso, um percurso que Lêdo Ivo tão bem sabe transformar em versos.
 
Tudo isto num Português que dá gosto ler (o que nem sempre acontece com os autores brasileiros das novas gerações). Um livro que nos transporta para o plano de um sentir profundo, de alguém que já viveu muito e sabe tudo, ou quase tudo da existência humana.
 
Arrisco-me – não podia deixar de o fazer – (e digo arrisco-me, porque pedi autorização à editora para o publicar e não obtive resposta) a reproduzir aqui um dos seus poemas, incluídos no Plenilúnio, que diz da dimensão da Poesia de Lêdo Ivo.
 
 
♥♥♥
 
O PORTA-VOZ
 
Falo em nome da noite
que traz a sombra e a morte
e o silêncio final.
 
Em nome do oceano
advirto os navios
que passam no horizonte.
 
À folhagem fremente
falo em nome do vento
e de suas rajadas.
 
Converso com as pedras.
As montanhas caminham
imitando os ciganos.
 
Falo em nome da água:
da água branca das fontes
e da água negra dos mangues.
 
Falo em nome de tudo:
da terra maternal
e dos céus transfigurados.
 
As estrelas se curvam
para ouvir o que digo
na noite iluminada.
 
Mesmo quando estou mudo
ouço em mim a torrente
da voz inestancável.
 
Em nome dos amantes
falo de amor na treva
guiando a mão errante.
 
Guinado a mão que encontra
a água de um mar escuro
na concha entreaberta.
 
Sou apenas dois lábios
que se abrem na noite
ferida pelo vento.
 
♥♥♥
 
Obrigada, Lêdo Ivo, por não ter se esquecido de mim.
Obrigada, por esta viagem ao fundo da alma de um Poeta.
Verdadeiro.
 
publicado por Isabel A. Ferreira às 11:52

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Segunda-feira, 9 de Março de 2009

DIVAGAÇÃO AO REDOR DE LIVROS

 

Copyright © Isabel A. Ferreira 2009
 
 
 
 
Quem escreve, logicamente gosta de ler, e os livros são a sua paixão.
 
Quanto a mim, sou daquelas que “devora livros”, desde que aprendi a ler. Quando era criança, lia tudo o que vinha ter-me às mãos. Os próprios para a primeira infância, dos quais pouco me recordo, e depois, Andersen, os irmãos Grimm, Emilio Salgari, Júlio Verne, Lewis Carrol, Hoffmann, Louise May Alcott, Alexandre Dumas, Daniel Defoe, Charles Dickens, Walter Scott, os 60 voluminhos da Colecção Formiguinha da Majora (que me faziam chorar), enfim, li tudo e todos, e li igualmente os “livros proibidos” (numa determinada idade, evidentemente) aqueles que não ficava bem a uma menina ler. Esses, claro, eram os mais cobiçados. E, ás escondidas, lia tudo o que a minha mãe (também uma leitora compulsiva, até aos dias de hoje, e já conta 85 anos) me proibia. Entre esse “tudo” estavam os livros de Eça de Queiroz, de Camilo Castelo Branco, de Stendhal, em suma, os que focavam temas “inconvenientes” para a educação de uma menina de família.
 
Bem, além dos proibidos, lia também o Tio Patinhas e companhia, Kit Carson,  Buffalo Bill, Matt Dillon, Mandrake (tinha (e tenho) um irmão, também leitor compulsivo) e Almanaques, o Seringador (que ainda hoje me fascina), os Caprichos (fotonovelas proibidíssimas), tudo, absolutamente tudo.
 
A propósito do Kit Carson fui protagonista de um episódio curioso. Quando tinha uns dez anos, durante as férias, frequentava a casa de uma mestra de Bordados, onde ia aprender a bordar, e levava o meu lanche e mais alguns pertences, dentro de uma sacola a tiracolo (ainda não havia mochilas). Para não ter de dar uma volta enorme, atalhava pela berma do caminho-de-ferro, e seguia por um beco onde havia umas casinhotas abandonadas. Pelo trajecto ia lendo o Kit Carson, e precisamente quando estava a ler uma passagem em que ele ia a cavalgar por um desfiladeiro e um bando de índios lhe saltou para cima, fui atacada à pedrada por uma miúda, um pouco mais velha do que eu, que queria roubar-me o saco. Inspirada, talvez, na valentia do Kit Carson, opus resistência. Houve uma luta corpo a corpo, depois pedradas e pauladas (havia paus e pedras no chão de terra do beco) e no final consegui que a miúda fugisse. Fiquei em muito mau estado e cheguei a casa da mestra de Bordados, mais morta do que viva, mas com o meu saco intacto. E isso é que foi importante para mim. Venci quem me atacou, tal como o Kit Carson.
 
Nesta senda, aprendi também algumas coisas úteis de socorrismo, ao ler o Almanaque do Luizinho, do Zézinho e do Huguinho (os sobrinhos do Pato Donald) quando eram escuteiros: como sobreviver na selva; estancar o sangue de uma ferida; estabilizar uma pessoa que parte uma perna e tem de ser transportada selva fora, utilizando os materiais que a selva e as circunstâncias nos proporcionam, enfim, algumas delas, já tive até ocasião de pôr em prática.
 
Conclusão: não me fez mal nenhum, ler todas estas “erudições”.
 
Seguiu-se a era dos grandes clássicos da Literatura universal: russos, alemães, franceses, americanos, espanhóis, gregos, ingleses, brasileiros, portugueses, entre outros. Todos. Bem, quase todos, porque o todo é impossível.
 
 
Esta experiência, riquíssima, de leituras na infância e na adolescência, deu-me uma capacidade extraordinária para conseguir discernir entre o que me convinha e o que não me convinha ler, à medida que fui avançando na idade, e evoluindo em mentalidade. Hoje sou demasiado exigente nas minhas escolhas de leitura. Já não leio tudo o que me vem parar às mãos. Já nada me é proibido, e nem tudo o que li, anos atrás, me seduz nos dias de hoje.
 
Hoje, selecciono, cuidadosamente, o que leio, por autores (não os leio a todos por ser completamente impossível – e o meu maior desgosto é morrer sem poder ler todos os livros que tenho nas minhas estantes, e que vou adquirindo, sempre na esperança de um dia poder lê-los).
 
Dou claramente preferência aos mestres da Língua Portuguesa, e esta minha preferência nem sempre coincide com a complacência dos nossos críticos literários, cuja apreciação é quase sempre subjectiva. Além disso, gosto de ler nas línguas originais. As traduções, ou são excelentes e colam-nos aos autores como uma pele, ou são péssimas e desvirtuam os originais, perdendo-se, por completo, a essência da obra. Reconheço, contudo, que é muito difícil traduzir as subtilezas específicas de um idioma, nomeadamente quando se trata de traduzir Poesia.
 
 
Entre 2000 e 2005 trabalhei para a Byblos, uma livraria on-line, com um banco de dados que continha 70 mil títulos, e cuja livraria física estava sedeada em Aveiro. O seu proprietário era igualmente um grande e dedicado amante de livros. O meu trabalho era recolher as críticas dos “especialistas”, biografias e entrevistas dos escritores, que iam sendo publicadas na comunicação social, e inseri-las nas respectivas páginas on-line. Um comprador virtual que estivesse interessado em determinado livro, tinha à sua disposição um ficheiro completo sobre a obra, o autor, a crítica e a entrevista.
 
Esta livraria teve um sucesso estrondoso. Continha uma ideia nova, numa época em que, para aqueles que gostam do impalpável, o livro tinha os dias contados. A Byblos era conhecida em todo o mundo. Os negócios corriam às mil maravilhas, até ao dia em que alguém muito, muito invejoso entendeu boicotar o projecto, e o que era útil, agradável e um extraordinário veículo de uma Cultura culta, afundou-se no mar turbulento do malquerer, para meu desencanto e profunda mágoa do seu proprietário.
 
Essa foi a época em que adquiri mais livros. Aliciada pela crítica, ia comprando obras, que fui lendo, e li-as todas, mas não até ao fim, algumas. Muitas delas, que a crítica considerava “obras-primas”, foram, para mim, um espantoso logro. Deixei-as a meio, por motivos vários (más traduções, más revisões, temas corriqueiros…). Poucas corresponderam às críticas, demasiado apologéticas, que se faziam delas. Gostaria de saber os critérios que levam alguns críticos a “dizer bem” de uma coisa má, ou a “dizer mal” de uma coisa boa. Se bem que os gostos não se discutem, e tudo nesta área é demasiadamente subjectivo.
 
 
 
Para mim, uma “obra-prima” tem de estar bem escrita, bem traduzida, num Português escorreito e sem palavrões (a não ser que estes se integrem no modo de falar da personagem, se esta pertencer ao rol dos que “falam mal” pela sua condição social e cultural, e apenas nessa circunstância e sem exageros; deve contar uma boa história, e ter uns acessórios mais, como uma apetecível apresentação de leitura, isto é num tipo de letra que se leia sem dificuldade, daquela que não seja preciso usar uma lupa; ser dotada de margens suficientemente largas, para não parecer que as palavras estão a fugir da página; e se existem notas, estas devem constar no rodapé da respectiva página, e não no final do livro, pois tal opção torna a leitura desagradabilíssima.
 
Selecciono igualmente as minhas leituras por temas. Há temas que não me interessam, como, por exemplo, os temas politizados (não os políticos) fora de um contexto histórico independente, e que contém “recados”, que favorecem os regimes vigentes, com o intuito de os seus autores tirarem proveito para si próprios. Uma questão de sobrevivência, dizem-me. Porém, há outras maneiras de sobreviver, sem se ser subserviente, submisso. Outros temas, como romances “açucarados”, vidinhas e “enchidos” à moda da moda, enfim, vulgaridades, não me seduzem.
 
 
Faço depois selecção por editoras. Existem editoras que sacrificam a qualidade em prol do lucro. Publicam autênticas aberrações no que diz respeito ao desrespeito pela Língua, más traduções, revisões catastróficas, obras vendáveis, mas intragáveis que, apesar disso, têm as suas parangonas garantidas, nos órgãos de informação. Inacreditavelmente.
 
Por outro lado, há editoras com muito bom gosto, na opção das capas, no design gráfico, na escolha das obras, no cuidado extremoso da Língua, das traduções e da revisão dos textos. São essas que salvam a Literatura. Infelizmente, raras, no imenso universo editorial português.
 
 
Li, há dias, no n.º 73, da Revista Os Meus Livros, na rubrica quem diria – citações, precisamente a seguinte citação de Manuel Alberto Valente (que já foi editor da ASA e agora está na Porto Editora) in Jornal de Notícias, 1/2/2009, que diz o seguinte: «A relação entre autores e editores é agora uma relação comercial como em qualquer outra área do negócio. A edição romântica do passado deu lugar a uma indústria».
 
Estas palavras atingiram-me como uma pedrada, talvez porque a minha circunstância de nefelibata me afaste um pouco das coisas demasiado mundanas (embora não tanto, pois tenho de sobreviver) e ainda viva na ilusão da edição romântica e de uma relação afectiva entre editor e autor, necessária ao “fazer” de um livro. Mas já tive motivos suficientes para me desiludir.
 
A ser verdade, esta relação comercial, de que fala José Alberto Valente, acabará por matar a Literatura. A verdadeira. A que é feita de palavras com honra. Daquelas de que nos fala Baptista-Bastos, no mesmo número, da mesma revista, na mesma rubrica, atrás referida. Disse este escritor ao Diário de Notícias, em 5/2/2009: «Há muito se perdeu a noção de que as palavras têm honra. Políticos servem-se delas para mentir, ocultar, dissimular a verdade dos factos e as evidências da realidade». Eu acrescento que não são só os políticos que se servem das palavras para dizerem ou escreverem coisas inadequadas. Hoje é muito comum lermos e ouvirmos, por todo o lado, palavras andrajosas, de tão gastas que estão, umas, e mal ditas que são, outras. E as novas palavras que são inventadas, parecem não ter qualquer utilidade.
 
 
Durante o Correntes d’Escritas, realizado há pouco tempo, na Póvoa de Varzim, ouvi um dos nossos intelectuais desdenhar de livros como O Código Da Vinci, de Dan Brown, e a Sombra do Vento (Prémio Correntes d’Escritas/Casino da Póvoa 2006), de Carlos Ruiz Zafón, numa mesa onde se falava precisamente da universalidade da Literatura. Tanto azar teve o nosso escritor, que escolheu precisamente dois exemplos dos mais universais.
 
Devo dizer que li sofregamente um e outro livro. Primeiro, porque os temas eram aliciantes; segundo porque que se quero ter uma opinião sobre o que se desdenha, tenho, pelo menos, de tentar lê-los. Se o tema me agrada leio-o até ao fim. Se não me agrada, deixo-o pela metade, mas leio o suficiente para poder ter opinião. Não posso avaliar sobre algo que desconheço, como alguns intelectuais portugueses avaliaram o Código, dizendo que o livro não prestava para nada, mas não o leram, nem o leriam nunca.
 
Pois, O Código Da Vinci é um livro sedutor, não só pelo modo como está escrito, como pelo tema que aborda, independentemente de se concordar ou acreditar nele. Isso é outra história. Não li mais nada do Dan Brown. O mesmo se passou com a Sombra do Vento, um enredo bem urdido, cativante do princípio ao fim, numa escrita escorreita. Tenho agora ali para ler, o outro livro de Zafón, O Jogo do Anjo, que ao que já vi, me parece interessante. Porque gosto de uma boa intriga. De um bom romance. De uma boa tragédia, tudo isto, bem escrito.
 
Li também o Harry Potter, como não podia deixar de ler. Uma leitura frenética, alucinante, electrizante, bem ao jeito dos miúdos. Não foi por acaso que teve o sucesso que teve junto dos leitores mais jovens. A J. K. Rowling soube captar, como ninguém, a fórmula mágica de como cativar o interesse dos mais novos, para que estes lessem aqueles calhamaços avidamente até ao fim.
 
O problema, no nosso país, é que alguns dos “intelectuais” (escritores, pensadores, ensaístas) portugueses têm ideias pré-concebidas e não conhecem, porque não querem conhecer, e não sabem quase nada ou mesmo nada sobre os outros, os que também são intelectuais, escritores, pensadores, ensaístas. Os nossos fecham-se nas alturas da sua intelectualidade e não evoluem. Os outros abrem-se ao mundo e às suas novidades. Por isso esses outros são mais universais do que os nossos.
 
 
 
publicado por Isabel A. Ferreira às 19:14

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